Lei Maria da Penha foi validada por STJ para ser aplicada também para mulheres trans e travestis
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Lei Maria da Penha foi validada por STJ para ser aplicada também para mulheres trans e travestis

Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), que protege mulheres de atos de violência de gênero, foi validada para travestis e mulheres trans na noite da última quinta-feira (5), pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão aponta que o Artigo 5º da legislação respalda aquelas que sofrerem violências motivadas pelo gênero, sem especificar fatores biológicos.

É a primeira vez que o STJ faz menção ao tema, o que torna a decisão histórica e pode influenciar a maneira como a violência cometida contra mulheres trans e travestis é encarada pela Justiça e pela sociedade. O Brasil é considerado há 13 anos como o país que mais mata a população LGBTQIA+ do mundo, em especial as pessoas trans. De acordo com o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 140 pessoas trans foram assassinadas em 2021 – destas, 145 eram travestis e mulheres transgênero. Destas vítimas, 78% eram profissionais do sexo.

Mesmo se tratando de dados não oficiais (o Brasil não realiza a contabilização de dados com identificação de identidade de gênero ou orientação sexual), os números apontam que a proteção para mulheres transgênero e travestis é tão urgente quanto à de mulheres cisgênero (ou seja, que se identificam com o gênero atribuído no nascimento).

Ana Paula Kosak, advogada especialista em direito penal e criminologia, afirma que o posicionamento de uma das mais altas cortes jurisdicionais do Brasil é importante para que a lei cumpra seu propósito geral (de erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher) e para que não existam dúvidas de que a legislação pode ser aplicada em prol de mulheres trans e travestis.

“Como o objetivo da Lei é prevenir e coibir a violência doméstica contra a mulher, o objetivo é que, assim, a violência de gênero contra mulheres trans e travestis também diminua, e os números altos de violência e morte sejam reduzidos”, explica a advogada.

Com a validação do STJ, essas mulheres terão direito à rede de apoio e medidas protetivas de urgência para impedir ou interromper a continuidade da violência. A especialista explica que as medidas protetivas de urgência são “determinações judiciais para que o agressor, eventualmente, seja afastado do lar ou do local de convivência com a vítima; seja proibido de se aproximar da vítima ou familiares; seja suspensa eventual visitação dos filhos menores pelo agressor; dentre outras medidas”.

A depender do grau de violência da vítima, o juiz responsável pelo caso pode determinar que a mulher seja encaminhada para um programa oficial de atendimento e proteção para receber atendimento e orientações de atendimento multidisciplinar. Este programa inclui profissionais da área de saúde, psicossocial e jurídica.

Quando é possível recorrer à Lei Maria da Penha?

A advogada ressalta que a lei pode ser aplicada quando a mulher sofre algum tipo de violência doméstica ou familiar. “Quando falamos dessa violência, estamos falando de qualquer ação ou omissão por questões de gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou patrimonial”, diz. Kosak reforça que o agressor pode não necessariamente ser um homem.

De acordo com a Lei Maria da Penha, as violências podem acontecer:

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  1. No ambiente doméstico: é o espaço de convívio permanente de o grupo de pessoas, tendo ou não vínculo familiar;
  2. No âmbito da família: ou seja, a violência vem de pessoas com quem haja laços naturais, afinidade ou mesmo por vontade expressa;
  3. Em qualquer relação íntima de afeto: o que inclui pessoas com quem houve relacionamento afetivo, como ex-cônjuges ou cônjuges atuais, mesmo que não convivam no mesmo ambiente

A lei será reformulada após validação do STJ?

Kosak afirma que a decisão do STJ não indica uma reformulação na Lei Maria da Penha, mas enfatiza a interpretação jurídica sobre seu alcance. “Assim, as disposições, medidas protetivas e direitos previstos na Lei Maria da Penha alcançam situações que se enquadrem no contexto de violência doméstica e/ou familiar”, explica.

A advogada afirma que, em algum momento, há a possibilidade de o Poder Legislativo propor alguma alteração legislativa para, desta forma, incluir artigos na própria lei ou criar uma legislação nova que seja totalmente voltada para as violências contra travestis e mulheres trans.

Como fazer a denúncia?

A denúncia pode ser realizada em uma Delegacia de Defesa da Mulher. No caso de mulheres que vivem em regiões sem delegacias especializadas, a denúncia pode ser feita em delegacias convencionais. O atendimento também pode ser feito pela Central de Atendimento à Mulher (180), que funciona em todo Brasil, 24 horas por dia, e pode ser recorrido por qualquer pessoa (seja a vítima ou alguém que presencie a violência). O 180 também informa sobre locais próximos em onde é possível receber atendimento.

Kosak também reforça a Campanha do CNJ “Sinal Vermelho”, em que é possível pedir auxílio em estabelecimentos como farmácias, órgãos públicos e agências bancárias. O aviso pode ser feito ao colocar um “X” na mão para que as autoridades locais possam acionar a polícia ou outra autoridade próxima do estabelecimento.

O que fazer se sofrer transfobia na hora da denúncia?

Mesmo com a validação do STJ na prática, o processo de aplicação da lei pode contar com algumas interferências. A denúncia de violência de gênero feita mulheres cisgênero em si é cercada de receios e medo de sofrer algum tipo de violações ou ataques sexistas por parte de agentes. No caso das mulheres trans e travestis, há a possibilidade de sofrer transfobia na delegacia.

Kosak afirma que, para a implementação e amparo correto, os agentes que trabalham com o atendimento de mulheres trans e travestis devem ser devidamente treinados. Além de policiais, isso inclui profissionais como psicólogos, atendentes e assistentes sociais. “Este treinamento deve buscar tirar as dúvidas dos profissionais e orientar sobre o melhor tratamento e direcionamento dado às vítimas de violência doméstica e familiar”, aponta.

Caso sofra algum tipo de violência ou coerção por parte de um policial militar ou policial civil, a vítima deve recorrer às Corregedorias das Polícias, que são responsáveis por receber denúncias e apurar a conduta dos agentes. A advogada reforça que, em alguns casos, essa denúncia pode ser feita pela internet.

“Além disso, é importante que o abuso no atendimento seja provado, seja por meio de testemunhas ou mesmo filmagem feita pela própria vítima”, diz. Por esse motivo, a vítima precisa ter todas as informações da pessoa que realizar o atendimento e, caso sofra ataques transfóbicos ou sexistas, pode gravar o ocorrido.

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