Gabriel Modesto saiu do Brasil com um sonho: tornar-se médico. O primeiro destino rumo a este objetivo foi a Argentina, onde reconheceu que esta carreira não combinava consigo. “Eu estava no curso de medicina, mas não queria realmente ser médico”, explica. “Quando percebi isso, pensei: ‘no Brasil, não vou conseguir um trabalho tão cedo’. Concluí que, se fosse para começar do zero, que fosse na Europa”.
Foi assim que, após escrever para um amigo ucraniano dizendo que precisava de um trabalho, Gabriel foi aconselhado a ir para a Alemanha. Posteriormente, o que surgiu foi uma oportunidade de lecionar inglês na Ucrânia. “Não estava planejado eu ir para lá [Ucrânia]”. Enquanto homem gay, Gabriel foi questionado pelo iG Queer sobre como é a experiência de uma pessoa LGBT no país, e a resposta imediata foi: “Eu tinha essa mesma dúvida”.
Ele conta que, de início, não sabia o que esperar da Ucrânia com relação à receptividade para quem não é hétero-cis. "Como as pessoas sobrevivem, o que elas fazem? Eu entrava no aplicativo Grindr, por exemplo, buscava por perfis de ucranianos e não aparecia nenhum resultado. Pensei: ‘Como assim?’. Em vista disso, ficava me perguntando como iria me relacionar ou até mesmo conseguir encontrar um namorado por lá”.
A Ucrânia possui um histórico de políticas e posicionamentos com relação à comunidade LGBTQIAP+ que levanta alguns temores. De acordo com o Relatório de homofobia patrocinado pelo Estado , divulgado pela ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais) , em 2012, o Projeto de Lei n.º 1155 e o Projeto de Lei n.º 945 foram introduzidos na Ucrânia em uma tentativa de “proteger” as crianças da “propaganda” de relações entre pessoas do mesmo gênero; contudo, os dois projetos não chegaram a ser discutidos em âmbito parlamentar.
Ainda de acordo com o documento, posteriormente, no ano de 2019, a Câmara Municipal de Rivne, no oeste da Ucrânia, proibiu que a comunidade LGBT realizasse manifestações. Essa decisão foi inserida para “vetar a propaganda de vários tipos de comportamento sexual desviante na cidade de Rivne”, inclusive por meio de paradas do orgulho e festas de cultura queer, realizadas em locais de lazer onde várias famílias frequentam com as respectivas crianças. Já em 2020, o Tribunal Administrativo do Distrito de Rivne declarou que essa proibição era inválida e ilegal.
No mesmo ano, dois deputados apresentaram o Projeto de Lei nº 3.917 no Parlamento, tentando proibir a propaganda do homossexualismo [sic] e transgenerismo [sic]". Ainda neste período, o Tribunal Administrativo Regional de Kiev – capital da Ucrânia – declarou como discriminatória uma resolução do Conselho Regional de Chernivtsi que, assim como diversas decisões emitidas pelo país, apelaram para o governo numa tentativa de “proteger o instituto da família” proibindo manifestações LGBTQIAP+ e adotando uma legislação contra “propaganda LGBT”.
Oficialmente no país, fazer parte da comunidade não é criminalizado, porém os embates políticos expostos pelo relatório da ILGA mostram que, estruturalmente, pelo menos por parte do Estado, existe certa resistência à livre expressão de sexualidade e identidade de gênero. Gabriel diz que, ao chegar à Ucrânia, o que ele viu e presenciou foi bem diferente do que esperava.
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“Tem muitas pessoas LGBT na Ucrânia, mas todas são bem reservadas”, começa ele. “Eu consegui fazer amizades. A sociedade jovem ucraniana, abaixo dos 35 anos, é muita aberta, já os que estão acima dessa faixa etária se mostram bem conservadores. As pessoas com quem fiz amizade eram jovens, então nos dávamos bem, mas também tive desentendimentos com pessoas mais velhas que não viam com bons olhos”, conta ao iG Queer.
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Gabriel também destacou algumas diferenças entre a forma com a qual os ucranianos se dirigem às pessoas LGBT e o modo como os brasileiros fazem isso. “Eles [da Ucrânia] falam o que querem na sua cara. Depois disso, acabou o problema. A pessoa dizia ‘cara, eu não gosto, não suporto [LGBT]’ e o assunto morria ali. A violência normalmente não se prolongava a partir disso”. Ao ser questionado se existia preocupação por parte da sociedade como um todo e dos órgãos públicos para com as demandas LGBT, Gabriel pontuou que via sim certa preocupação com relação a isso.
“Eu diria que tinha sim uma intenção de levar a Ucrânia a aceitar mais [as pessoas LGBT]. Falando pela maior parte da sociedade, as pessoas estão tentando abrir a mente e criar leis e promover mais paradas do orgulho, enfim. Então, em um panorama geral, há intenção de melhorar a vida de pessoas LGBT no país. Quando cheguei na Ucrânia, era praticamente impossível ver um casal não heteronormativo de mãos dadas na rua, mas nos últimos três anos já notavam casais LGBT na rua, juntos em um café e até se beijando publicamente”, explicou.
Vale ressaltar que, em setembro de 2021, membros do grupo neonazista Tradição e Ordem invadiram a Parada do Orgulho LGBT que estava sendo feita na Ucrânia e dispararam gás lacrimogêneo. Anos antes, em 2014, um grupo de cerca de 20 pessoas neonazistas tentaram invadir um clube gay em Kiev.
O iG Queer questionou Gabriel sobre qual foi a reação da população LGBT do país após o início do conflito com a Rússia , e ele explicou que muitos acabaram ficando na Ucrânia. “Alguns homens da comunidade, que são obrigados a servir no exército, por exemplo, permaneceram no país como soldados. Eu achei que as pessoas LGBT iriam priorizar sair de lá”, disse.
Novos horizontes
Após sair da Ucrânia em decorrência do conflito com a Rússia, Gabriel e uma amiga foram para Berlim e ficaram na casa de um casal de amigas dele até que a situação se estabilizasse um pouco. Atualmente, ele está na Croácia. Ao ser questionado se tinha interesse em retornar ao Brasil em algum momento, ele negou.
“Eu saí do Brasil há quase 10 anos e é um país maravilhoso. Mas me acostumei tanto com o estilo de vida aqui do exterior que é difícil encontrar um lugar no Brasil onde eu possa ter uma rotina semelhante à que tenho por aqui. Isso não inclui apenas situação financeira, mas cultura mesmo, principalmente segurança”, relata.
Dado o fato de que Gabriel já passou por vários países além da Ucrânia, ele pode dizer com segurança que existem formas bem diferentes de abordar a comunidade LGBT+ de um território para o outro. “Na União Europeia a diferença de tratamento é imensa. Aqui é normal vermos casais LGBT na rua, se abraçando ou de mãos dadas, algo que na Ucrânia não era comum porque existiam pessoas que poderiam ter alguma reação violenta a isso”, finaliza.
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