Pessoas trans denunciaram a situação enfrentada pela comunidade na Ucrânia em meio ao conflito com a Rússia. Em reportagem exclusiva da Vice World News, afirmam ter medo de deixar o país e, por isso, estão "totalmente presas" e "temendo por suas vidas". Os principais motivos para isso são a possibilidade de integrar o exército de maneira forçada, ataques transfóbicos dentro do país e falta de apoio em países com leis anti-LGBT rígidas.
O processo de retificação de documentos na Ucrânia é dificultado, e em muitos constam com o nome morto e o gênero errado – no caso de mulheres trans, o gênero “masculino”, por exemplo. Também é levada em consideração a brutalidade como pessoas trans são tratadas na Ucrânia e na Rússia e como isso poderia resultar em casos de agressões transfóbicas, até morte.
Com isso, há receios de que elas sejam impedidas de sair do país e forçadas a integrar o exército. Devido à lei marcial, que está em vigor desde o último dia 25 e impede que homens entre 18 e 60 anos deixem países em conflito. A medida foi anunciada pelo Serviço de Guarda de Fronteiras do Estado. À VICE, uma mulher trans afirmou ter medo de integrar as forças armadas "como um homem".
Para que tenham mais chances de sair do país, muitas delas foram aconselhadas por movimentos de ativistas de direitos humanos a "perderem" as identidades. As orientações são que as pessoas escondam a documentação consigo mesma, em um sapato ou garrafa, e, ao falar com policiais ucraniânos, afirmem que perderam a documentação.
No caso de homens trans a situação é mais complicada. Há a possibilidade de esconder a identificação, mas muitos acabam sendo parados para integrar o exército de maneira forçada. Além disso, há represálias por parte de soldados que afirmam que "se são homens de verdade, devem lutar pelo próprio país", no caso dos que se identificarem como trans.
Artista trans está sozinha e teme por sua vida
A artista Zi Faámelu, 31, que vive em Kyiv, afirma à reportagem que o processo de retificação na Ucrânia é humilhante e que viu muitas pessoas serem enviadas à instituições psiquiátricas por meses, tendo que passar por diversas avaliações para "provar" seus gêneros de identificação.
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"Não queremos passar por isso, só queremos manter nosso passaporte como eram e ficar quietos. [...] Vão me ver, ver meu passaporte, dizer meu nome de nascença, me chamar de homem de vestido e me atacar", explica. "É um inferno para pessoas trans aqui. Eu deveria ter saído muito antes, mas eu estava esperando meus documentos de emergência relacionados ao meu gênero, mas os médicos de repente negaram", continua.
"Como milhares de pessoas trans na Ucrânia, sou uma mulher, mas tenho a palavra 'masculino' no meu passaporte e em todas as minhas identificações. Então é uma guerra dentro de outra guerra. Pessoas trans da Ucrânia já lutavam por suas vidas. Há milhares de nós presos aqui, vivendo vidas miseráveis. Precisamos de influência fora do país. Precisamos que as pessoas escrevam a seus políticos e para entidades para nos ajudar", afirma a Faámelu.
Ela diz que sua vida está em perigo e que não pode deixar o país. A reportagem aponta que, no momento da entrevista, Faámelu estava sozinha em sua região sentada no escuro segurando uma faca afiada. O motivo seria autodefesa, já que ela tem medo de quem pode estar fora de seu apartamento.
Faámelu cita ainda que o armamento de civis, que foi autorizado e incentivado pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, intensifica seu medo, já que pode acabar sendo agredida e morta por ser trans. "Agora meus agressores têm uma justificativa para descarregar violência e ódio. As pessoas sabem onde eu moro. Todo som lá de fora dá medo".
"Estou completamente sozinha agora. Todos na minha vizinhança foram embora. É uma situação muito perigosa, mas tento ficar otimista. Vejo pessoas fugindo por suas vidas e gritando umas com as outras para deixar tudo para trás e só sair, mas eu preciso ficar onde estou. É minha única opção por agora", conta a artista.
Território desconhecido
Um homem trans que vive com os documentos com o indicativo de gênero "feminino" contou que, apesar da situação difícil para as pessoas trans na Ucrânia, tem medo de deixar o país. Em meio ao relato, ele ouviu explosões do lado de fora de sua casa, mas mesmo assim afirmou temer ir para países em que as leis contra LGBTs são bem mais rígidas, como a Hungria ou a Polônia. Ele afirma que, lá, seria ridicularizado e não reconhecido. "Preciso escolher entre meu próprio país, onde aprendi a circular, ou um local totalmente estrangeiro em que posso me sentir ainda mais excluído e em perigo", explica.