“Fui forçada a beijar alguém do mesmo gênero para provar que sou bissexual”

Do questionamento incessante à pressão de se relacionar com alguém do gênero oposto, sete pessoas bissexuais relatam situações de bifobias que vivem no cotidiano

Foto: Christian Sterk/Unsplash
Pessoas bissexuais relatam que se sentem menos parte da comunidade LGBTQIA+ e que são constantemente questionadas

A vida sexual e afetiva de pessoas bissexuais é constantemente cercada de questionamentos, interferências e invalidações. Além de desconfortáveis, essas práticas podem formar cenários extremamente violentos e traumáticos, e estão configuradas dentro do que engloba a bifobia .

A pressão para que uma pessoa escolha uma preferência de gênero ou os questionamentos sobre essa orientação afetivo-sexual vêm de todos os lados, do círculo de pessoas heteronormativas até da própria comunidade. Essas questões podem ser fortes em pessoas que vivem em um relacionamento com alguém do gênero oposto. Afinal, elas estão realmente tentando “se apropriar” da cultura e do "rótulo" LGBTQIA+ ?

O iG Queer ouviu relatos de sete pessoas bissexuais que se afirmam ter se sentido questionadas, pressionadas e que, em algum momento, foram consideradas “menos LGBT” por se relacionarem com pessoas do gênero oposto. A sensação de culpa, apropriação, incompreensão e inadequação são as mais presentes para definir a forma de atração que sentem por outras pessoas.

Entre as histórias contadas estão de pessoas que foram questionadas por amigos em ambientes de lazer, como bares, jantares e baladas; que ouviram violências em tom de piadas vindas de pessoas LGBTQIA+; e que sentiram que o julgamento se tornou tão intenso que começou a partir de si mesmas.

As histórias também abordam o deslocamento de mulheres bi que são mães, os questionamentos sobre “se tornar hétero” e a incessante necessidade de justificar e explicar a forma de amar outra pessoa.

“Existe culpa por estar em um relacionamento padrão e heteronormativo”

Nunca foi me dito nada diretamente, mas sempre senti que, de alguma forma, eu me tornava menos LGBT por me relacionar com uma pessoa do sexo oposto. Tenho vergonha de sair por aí falando que sou LGBT porque sinto que “sofro menos” que uma mulher que está numa relação com uma pessoa do mesmo sexo. Acho que isso acaba sendo uma forma muito violenta de invisibilização.

Todo dia entro em conflito com minha própria orientação sexual. Já cheguei a duvidar da minha bissexualidade porque demorei para começar a performá-la. Sigo sendo a pessoa que mais duvida de mim nesse sentido, parece que existe uma parcela de “culpa” por estar em um relacionamento padrão e heteronormativo.

Tenho amigos que são LGBT e se relacionam apenas com pessoas do mesmo sexo. Já escutei deles, em forma de brincadeira, que eu não sou bissexual de verdade por nunca ter tido um relacionamento sério com alguém do mesmo sexo. A famosa bi festinha (risos).

Ainda estou tentando aprender a lidar e a me aceitar enquanto mulher assumidamente bissexual, mas estou tentando fazer isso de uma forma mais leve. Aceitei que eu nunca vou estar 100% livre de julgamentos e estou tentando viver minha vida de uma maneira feliz e que faça sentido para mim – mas sem ficar quieta quando vejo algum tipo de bifobia, seja diretamente para mim ou falas bifóbicas no geral.

Eu posso, sim, amar horrores um homem hétero (entendendo todas as problemáticas e privilégios desse tipo de relação) e continuar sendo uma mina extremamente bi.

Martina, 25 anos

“Quando comecei a me entender, pensei: ‘Você está errado. Se decide’”

Eu sempre tive relações com mulheres, mas fui me entendendo bissexual há pouco tempo. Era a sensação de entrar em um país desconhecido, em uma cultura que a princípio você sente que não é a sua, mas que te atrai e você está disposto a aprender.

Quando comecei a me entender, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Calma aí, você está errado, se decide”. Antes, pensava que estava errado porque eu tinha que decidir se era hétero ou gay. A sensação de bissexualidade menosprezada, no começo, é mais uma sensação imposta pela sociedade.

Uma vez, em um jantar, um amigo gay chegou a me questionar sobre ter uma preferência, e falei que não tinha, porque gosto de pessoas. Existem homens e mulheres que me atraem. Meu amigo disse que isso era impossível porque eu só tinha tido relacionamentos com mulheres. Respondi que isso não significa que tenho uma preferência.

Ficou um clima ruim e pensei que uma pessoa que faz parte do grupo LGBT e entende todas as causas, mais velho que eu e que entende isso todos os dias, não mostrou nenhuma solidariedade ou compreensão.

O grande ponto de me entender bissexual foi quando tive relações com homens, mas comecei a me desvalidar por não ter tido relações sexuais. Coloquei isso na cabeça inconscientemente. O que me ajudou foi um vídeo que assisti que dizia que não existe uma carteirinha de bissexual ou uma cartilha a seguir. E aí entendi que não preciso me colocar pressão para transar com as pessoas para ter certeza do que gosto, do que quero, do que sou e do jeito que quero viver.

Tento manter a calma quando me questionam, mas confesso que não tenho muita paciência, não. Ao mesmo tempo, entendo que as pessoas não são obrigadas a saber lidar. Procuro sempre tentar entender o porquê de aquela pessoa estar falando algo e como ela pode fazer isso sem ser ofensiva.

Não saio por aí corrigindo todo mundo porque ainda me sinto um pouco retraído, mas não estou totalmente escondido. Se vejo que dá para ter um diálogo saudável, eu fico super a vontade na conversa. Se percebo uma resistência muito forte e que a pessoa não está a fim de ouvir e entender, aí minha forma de lidar é mandar se f*der e simplesmente virar as costas.

Lucas Mendes, 26 anos

“Acho doloroso tentar ‘solucionar’ minha bissexualidade”

Sempre houve muita tensão acerca da minha bissexualidade porque eu mesma não conseguia entender que minhas "preferências" sexuais não precisavam ser 50/50. Sempre me inclinei a ter preferência por mulheres, mas vez ou outra me envolvo com homens.

É muito recorrente que minha sexualidade seja questionada nos relacionamentos heterossexuais. Por outro lado, sempre rola o sentimento “você não era sapatão?” quando exponho relacionamentos com homens.

Percebo que minha bissexualidade, além de me trazer questões internas fortes, sempre acaba gerando insegurança nos homens com quem me relaciono. Ano passado tomei um “não” de um pedido de namoro que fiz a um cara, e ele justificou que é porque eu prefiro mulheres. Achei muito desrespeitoso.

Esse conflito interno parece nunca ter fim. Às vezes sinto uma espécie de sabotagem, uma heterossexualidade compulsória. É difícil de explicar porque é notável que não tenho olhos para homens, mas quando me vejo entrando em um relacionamento fico confortável a partir do vínculo emocional. Enquanto que com mulheres, consigo me envolver fisicamente de cara e muito aos poucos, quebro barreiras emocionais e me entrego. Acho doloroso tentar "solucionar" minha bissexualidade, muitas vezes me peguei me lamentando por não ser apenas uma pessoa homo ou hétero.

Não aceito mais questionamentos alheios enquanto pra mim as coisas ainda não são tão claras. Eu me vejo me relacionando com ambos os gêneros mas ainda penso muito nos porquês dos meus interesses. Então só ignoro e prefiro não me rotular quando questionada sobre minha sexualidade porque internamente isso é uma bagunça. Minhas próprias demandas já bastam.

Larissa Rodrigues, 22 anos

“Se referiam à minha bissexualidade como se estivesse apenas confusa”

Senti que minha bissexualidade foi invalidada várias vezes. Inclusive já ouvi que era uma fase e que é coisa de mulher ter esse fetiche de querer beijar as amigas quando bebem. As pessoas sempre se referiam a isso como se eu estivesse apenas confusa. Lembro que um amigo meu da escola ficou chocado quando contei que namorava um cara. Para ele, eu só seria bissexual se eu namorasse uma mulher. Fora isso, era indecisão.

Quando eu era muito nova, com uns 15 ou 16 anos, eu já ficava com mulheres. Eu achava que isso era um treino para entrar em um relacionamento hétero. Com uns 17 anos eu já entendia que era bi e conseguia ver que essa é como eu sou. Cheguei em uma fase em que não explico mais coisas óbvias para as pessoas. Eu deixo elas pensarem que a letra B de LGBTQIA+ é de bolacha.

Gabrielle Correa, 23 anos

(Continue a leitura logo abaixo)


“Quando apareci grávida, todo mundo olhou torto: ‘Não gostava de mulher?'"

Eu descobri minha bissexualidade com uns 13 ou 14 anos e me assumi com essa idade porque estava apaixonada por uma colega minha. Nosso namoro não deu certo, mas nunca mais namorei ninguém, então ninguém ficava me questionando na família. Rolavam algumas piadinhas, mas nada que tomasse grandes proporções.

O grande bafafá rolou há três anos, quando eu engravidei. Eu já estava saindo com esse menino há um tempo, mas só minha mãe e minhas amigas íntimas sabiam. Quando eu apareci grávida, todo mundo ficou olhando torto. Sempre tem os inconvenientes que perguntam: “Ué, mas você não gostava de mulher?". Eu só respondo: "Gostava não, gosto”.

Para quem se descobriu e se assumiu na adolescência, ouvi frases como: "Isso é fase", "é safadeza" ou "é pra chamar atenção". É muito perturbador, me deixou bem confusa e eu cheguei a questionar se eu realmente gostava de mulheres, visto que era “muito mais fácil” se relacionar com pessoas do sexo oposto.

Mulheres bi já sofrem muito com a hipersexualização e com a invisibilidade mesmo dentro da comunidade LGBT. Quando você engravida de um homem cis, você sente que não cabe mais em lugar nenhum. Você sabe que não é hetero e que não vai rolar sentar na rodinha de família e ser aceita pelas mulheres hetero cis grávidas. Sempre vai surgir um assunto que você discorda, uma fala que te atinge diretamente.

Ao mesmo tempo, você é uma gestante e mãe, e muitas vezes não é bem aceita na rodinha LGBT. Teve mulher lésbica que já até me falou que sentia nojo de ter ficado comigo depois de descobrir que eu era bi, porque um p*u já tinha passado na minha boca. Para homem eu evito contar que sou bissexual, porque eles já emendam um: “Então vamo fazer um ménage". Ambas as coisas são péssimas de ouvir.

É um processo diário aprender a me amar do jeito que eu sou. Hoje, sou muito bem resolvida com a minha sexualidade e me respeito muito. Já conheci várias outras mulheres que também são bi e mães. Acho importante criar essa rede de apoio.

Leticia Matiazzo, 24 anos

“Fui forçada a beijar uma pessoa do mesmo gênero para provar minha sexualidade”

Minha bissexualidade é desprezada desde que consigo me lembrar. Eu só tive relacionamentos sérios com pessoas do gênero oposto e, por isso, fui chamada diversas vezes de bi de balada, até mesmo por amigos próximos. Também já tive a minha sexualidade questionada por fatores como o meu gosto musical, os lugares que eu frequento e as roupas que uso.

Tenho um ex-namorado hétero que afirmava que a bissexualidade não existia e eu estava sendo apenas influenciada pelos meus amigos e seguindo uma tendência. Porém, o meio LGBTQIA+ continua sendo o que mais concretiza o apagamento bissexual na minha vivência.

Já ouvi absurdos como não ser bissexual por não ter tido relações sexuais com pessoas do mesmo gênero. Já fui forçada a beijar pessoas do mesmo gênero para provar a minha sexualidade. Forçada mesmo, de empurrarem a minha cabeça na de outra pessoa!

Também já ouvi a clássica afirmação de que "tinha virado hétero" simplesmente por começar a frequentar mais rolês tipicamente héteros, não gostar tanto de música pop e não estar por dentro das fofocas e memes da comunidade. Esses últimos comentários foram sempre feitos em tom de brincadeira, mas repetidamente, e começaram a me ofender e estressar.

Mesmo assim, tive o privilégio de entender e aceitar a minha orientação desde muito jovem. Já tinha pessoas LGBTQIA+ assumidas na família desde que eu era criança – inclusive pessoas bissexuais que já sofriam com esse tipo de comentário. Inicialmente eu achei que todos os adolescentes eram assim e em algum momento da vida adulta eu decidiria a minha preferência, até que percebi que não precisava fazer isso.

Só consegui retomar a minha confiança e a minha certeza quando tive uma experiência emocional com uma pessoa do mesmo gênero. Foi incrível e extremamente importante para mim, mas é triste pensar que precisei passar por isso para reafirmar a minha própria identidade. Depois que eu consegui me reafirmar para mim mesma e retomar a minha confiança, eu comecei a mandar todo mundo se f*der (risos). É uma atitude libertadora!

Se for alguém próximo, eu tento conversar e fazer a pessoa entender que se não existem esses parâmetros pra provar a monossexualidade dela. Por que deveriam existir pra minha bissexualidade? Se dizer que um jovem gay não sabe sobre a sua própria orientação sexual porque nunca teve relações com outro homem é homofóbico, porque dizer isso pra mim não é uma discriminação também?

Esses comentários não são críticas ou leituras equivocadas, são bifobia. Isso tem que ser apontado, discutido e a tolerância tem que ser zero, especialmente dentro do nosso meio. Afinal, o B da sigla não é de biscoito.

Victoria Nascimento, 23 anos

"Uma ex-namorada me encaixava no rótulo de 'lésbica enrustida'"

Eu tinha atração por meninas desde que eu era muito nova. Quando criança, cheguei a falar para minha mãe que queria casar com minha melhor amiga, e ela dizia que só poderia me casar com um homem. Isso ficou muito na minha cabeça.

Quando eu tinha 14 anos, comecei a namorar com um menino. Eu era apaixonada por ele, mas tinha dúvidas se era lésbica porque pensava em meninas o tempo todo. Um dia falei para ele da minha atração por meninas e ele ficou muito ofendido. Nunca mais falei sobre isso.

Depois, quando solteira, eu só ficava com meninas, só que eu só tinha relacionamento com homens e não contava para eles sobre minha sexualidade. Não contava nem para minhas amigas. Depois de um relacionamento abusivo, consegui me identificar como bissexual e me apaixonei por uma menina. Só que era muito ruim, porque ela não aceitava e tentava me encaixar no rótulo de “lésbica enrustida”. Quando falava que me apaixonei por homens no passado, ela me tratava como se eu fosse suja. Ela me ridicularizava para as amigas e me expôs muitas vezes.

Eu achava que seria mais aceita, porque você pensa: “Estou no meio de pessoas LGBT, essas pessoas passaram por coisas que eu passei na infância e na vida sexual”. Mas foi muito difícil mesmo para mim. Fiquei meio traumatizada com o universo lésbico e acabei ficando muito próxima de mulheres hétero, mas percebi que parecia que eu era “uma mulher de teste”.

Alguns amigos e amigas próximas já falaram que, ao estar em um relacionamento hétero, eu não tinha contado que “virei hétero”. Comecei a brigar com todo mundo em relação a isso, porque não é só porque estou em um relacionamento hétero que deixei de ser bi. Me questiono muito por não ter tido relacionamentos mais sérios com mulheres, mas as meninas com quem eu fiquei eram bem mais novas e me encaravam melhor ao me rotular como homossexual.

A minha família sabe, mas acha que eu sou hétero. Recentemente, meu irmão saiu do armário como um homem gay e isso chocou muito minha família. Eles esquecem que sou bissexual. Minha família escolheu não lidar com isso. Ao mesmo tempo, não tenho tanta necessidade de ficar afirmando minha orientação sexual para os meus pais. As pessoas sabem que sou bissexual e, atualmente, isso não é umma grande questão da minha vida.

Laís Jesus, 32 anos