A busca pelo prazer e pelo entendimento do tesão das pessoas LGBTQIA+ pode ser, por muitas vezes, guiadas por caminhos muito diferentes do que os seguidos por pessoas héterossexuais e cisgênero. Seja na produção audiovisual como na literatura, é muito mais corriqueiro que se encontre exemplos de situações e personagens que expõem (e excitam), majoritariamente, esse mesmo público. A falta de representação queer e facilidade para encontrar títulos desse mesmo teor podem ser ainda maiores na literatura erótica.
A era da internet e da descentralização dos grandes monopólios facilitou a disponibilidade de conteúdos LGBT eróticos, sejam produzidos ou não por pessoas da comunidade. A abertura de plataformas e a existência de editoras independentes para a diversidade do prazer aumenta, consequentemente, o incentivo às pessoas leitoras e autoras que querem se aventurar nesse mundo.
Bárbara Leal Pippa, escritora bissexual, conta que se intressa por literatura erótica desde a adolescência. “Vi a literatura erótica como uma percepção de que o erotismo pode ser poético, não somente sexual. Algo que transforma palavras em dimensões atraentes”, reflete.
A escritora Amara Moira, travesti e lésbica, se atraiu às produções na faculdade de Letras. Para ela, a produção erótica pode ter diversas facetas além do prazer em si, já que o erotismo pode, muito facilmente, se transformar em violência, por exemplo. Ela demonstra ao dizer que se sentia fascinada por cantigas de escárnio e maldizer do trovadorismo, além de produções de Gregório de Matos, Manuel Maria Barbosa du Bocage e Marquês de Sade. “Hoje, muito em função das minhas leituras feministas, percebo o quanto essas obras são misóginas, o quanto a misoginia é base desse erotismo”, diz.
“Mas um dos aspectos que me intrigava nessa produção era a referências a figuras dissidentes sexuais e de gênero, mesmo com perspectiva era sempre profundamente LGBTfóbica. Pelo menos nessas obras havia menção a essas existências e isso me permitia me conectar a elas”, explica a escritora.
O designer Antonio K.valo, editor do selo autônomo O Sexo da Palavra, explica que há registros de presença de personagens homoeróticas na literatura brasileira e portuguesa desde os séculos 19 e 20. Esse enfoque foi dado na coleção “Decadentismo”, a segunda publicada pela editora, que tem como missão despontar obras que sofreram apagamento devido ao conteúdo homoerótico.
“Quando vemos que nossos corpos e desejos fazem parte de uma coletividade, mesmo que apagada pela sociedade há muito tempo, a noção de prazer se amplia”, explica Antonio. Ele complementa: “Parece pouco, mas numa sociedade heterosexista, saber que homossexuais e outras dissidências de gênero fazem ou fizeram parte de diversos âmbitos da sociedade, nos cria uma noção de pertencimento e a quebra de uma anormalidade imposta sobre nossos corpos”, específica.
O ato de escrever sobre seus próprios prazeres, fetiches, desejos e até experiências sexuais também transforma esses mesmos temas do ponto de vista da vida de quem escreve. Depois que começou a escrever, Bárbara passou a encarar seu próprio prazer de forma mais aberta a novas possibilidades que, antes, pareciam não existir.
Para Amara, o mero ato de trabalhar com palavras já dá outro significado ao prazer. “Às vezes, vivi experiências eróticas que foram bastante decepcionantes, mas quando me propus a colocá-las no papel, se tornaram profundamente prazerosas. O contrário também é bastante comum de acontecer: experiências incríveis já deram textos tenebrosos”, diz.
Mais pluralidade ao prazer
Nunca se questionou os padrões de gênero e sexualidade como hoje. É impossível atribuir novos significados a esses temas sem se deparar com o ato de repensar o prazer; já que até ele é cercado de noções heteronormativas, machistas e LGBTfóbicas. Agora, ao ter mais pluralidade ao abordar o gozo e a fantasia, as noções do que é o prazer são ampliadas de acordo com outras experiências.
Amara explica que as normatividades são capazes de moldar como pessoas LGBTQIA+ são e como querem ser, o que afeta as possibilidades a serem experimentada em relação ao sexo. No caso de travestis e pessoas transmasculinas, esses padrões inferiorizam seus corpos por estarem longe de se parecerem ao padrão socialmente imposto.
“Além disso, a maioria das pessoas acaba, muitas vezes, sem sequer se dar conta, reproduzindo discursos e comportamentos que nos violentam. Isso faz com que precisemos estar sempre em posição de defesa, aguardando um golpe inesperado”, acrescenta Amara.
Leia Também
Leia Também
Para Bárbara, a escrita do prazer de pessoas LGBTQIA+ feitas por pessoas hétero esbarram frequentemente no fetichismo. “Essas obras têm a intenção de nos demonstrar mais sexualizadas que eróticas, beirando ao extremo de exibicionismo, do que algo que poderia ser natural ou parte daquele contexto. Isso acaba transformando o ponto de vista héterocis como o único possível”, reflete a autora.
Amara explica que a questão em si não é a produção literária de pessoas hétero sobre pessoas LGBTQIA+. "Aprendo muito com obras de autoria LGBTQIA+, mas também com obras de autoria cis hétero", explica. A questão principal é a importância de que existam escritos de pessoas fora dessa heteronormatividade para que esse padrão seja rompido, independente de quem os escreve.
"Eu gosto que a produção de autoria LGBTQIA+ se expanda, mas não deposito nisso as minhas fichas de que aí teremos uma sociedade menos pautada pela normatividade. Nada impede, aliás, que uma obra de autoria homossexual cis ou até trans não seja transfóbica. Somos produto da mesma sociedade normativa e não é por sermos LGBTQIA+ que estamos livres de reproduzir esses discursos”, argumenta.
Porém, Amara afirma que é mais fácil aprender e reconhecer violências caso a pessoa que escreve faça parte daquele grupo subrepresentado e marginalizado. Por esse motivo, Antonio vê que uma pessoa trans que lê o texto de outra pessoa trans, por exemplo, provavelmente terá uma experiência mais acolhedora e de maior identificação.
“Nós, pessoas LGBT, temos autoridade suprema para nos auto-representar, visto que, ainda mais se tratando de nossos desejos, a heteronorma costuma nos ver pelo viés do deboche, do exagero e da caricatura”, explica o designer.
Ele acrescenta que a literatura não precisa (e nem deve) ser refém de suas próprias experiências para produzir histórias. “Também é parte dessa discussão que os espaços sejam melhor representados enquanto a pluralidade de corpos e vozes. Acredito que todo conhecimento seja capaz de transformar nossas percepções sobre todo e qualquer tema”, acrescenta.
Olhos fechados da indústria
A editora O Sexo da Palavra nasceu em 2016 e publica apenas títulos que sejam relacionados a gênero e sexualidade, desde coletâneas de contos homoeróticos até produções acadêmicas. Um exemplo disso é o último lançamento do selo, “(des)encontros em contos”, que reúne 35 contos eróticos que têm como ponto de partida o prazer durante o período de isolamento social vivido na pandemia do novo coronavírus.
Para Antonio, as editoras independentes e plataformas online que permitem que um livro seja publicado de forma autônoma, como o Kindle, por exemplo, são capazes de difundir um material de forma vasta e com qualidade, dando total atenção e suporte a autores LGBTQIA+. Essa adaptação é necessária já que, para ele, editoras maiores não se interessam devidamente pelo tema.
“A indústria literária está a serviço do capital. Toda vez que achar importante trazer nossos corpos dissidentes para a comercialização de nossas narrativas, assim farão. O mesmo ocorre inversamente, quando não se considera publicável os mesmos textos por não considerar atrativo comercialmente”, explica.
Essa lacuna de produções também mudou o comportamento do leitor, que agora tem se interessado em buscar literatura homoerótica e sobre gênero diretamente nas plataformas das editoras independentes.
Amara percebe um aumento no interesse em relação à literatura erótica queer. Ela e Bárbara pensam que o trabalho desses pequenos selos e sua grande repercussão é o que tem aberto espaços também nas grandes livrarias. “Para quem veio de um cenário em que tais obras sequer existiam, ou então estavam completamente inacessíveis, a realidade atual é muito promissora”, pensa Amara.
Mesmo assim, apenas isso não é o suficiente. Ela considera importante que cada progresso seja realizado de forma cautelosa, sem que um passo seja maior que a perna. O receio de uma aceleração é de que o tom urgente e apressado possa afetar de forma negativa as obras e o processo criativo de quem escreve.
Antonio contextualiza que essa preocupação faz parte da lógica do conglomerado literário. “De lá, não se pode esperar nada além de livros sendo produzidos como se fizessem parafusos”, diz. A resistência aos temas que Antonio aborda com seu selo também acaba sendo um impedimento de oportunidades e visibilidade quando colocados ao lado de livros de selos consolidados há muito mais tempo.
“Produzir literatura no Brasil de hoje é enfrentar todos os dias uma horda de medievais cristãos loucos por nos queimar em suas fogueiras santas. Produzir literatura de cunho erótico é saber que o fogo já nos alcançou. O que nos resta é acender nosso cigarro e continuar seguindo”, reflete o designer.