Maria Eduarda Viana é filha de barbeiro e desde cedo teve um salão em casa. Por conta disso, foi muito natural para ela seguir carreira na área. “Ao ganhar a minha bancada como cabeleireira, após ter sido auxiliar, teve um certo impacto o fato de uma mulher trans ter uma bancada em um salão. Meus primeiros dias foram um pouco complicados”, conta ela.
Assim como Maria Eduarda, outras mulheres trans estão inseridas -- ou tentam se inserir -- no ramo da beleza para garantir a renda do mês. Levando em consideração o quanto o mercado de trabalho ainda negligencia essa população, de modo que 90% recorra à prostuição, de acordo com dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), estar em salões de beleza é uma das alternativas encontradas por elas para conseguirem se estabelecer financeiramente.
“Desde pequena sempre fui muito atraída pelo mundo da beleza e da moda”, declara Isabelle Castro, maquiadora, cabeleireira e a primeira mulher trans eleita Miss Cuiabá em 2021 . “Acredito que a área [da beleza] é uma das melhores para mulheres trans trabalharem porque é onde temos liberdade para expressar nossos sentimentos e quem nós realmente somos”, conta ela.
Maria Eduarda, porém, diz que ainda existem barreiras para mulheres trans na área da beleza, e que nem tudo é um mar de rosas. “Acaba sobrando pouco mercado de trabalho para mulheres trans e e fica mais receptivo para os homens gays. Acredito que para as próprias lésbicas o mercado está se abrindo agora, mas há 18 anos, quando comecei, eu era a única trans trabalhando no shopping inteiro. Ainda hoje existem poucas oportunidades”, explica.
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Isabelle também ressalta que, por parte dos contratantes, existe resistência na hora de acolher uma mulher trans para exercer este trabalho. “Acredito que em primeira instância gera um impacto. Algumas pessoas têm receio de contratar por conta do preconceito que existe e impera, e também pela falta de informação sobre pessoas trans. Muitos acabam julgando ou esperam que ela aja de um determinado jeito ao invés de dar oportunidade e tratá-las como pessoas normais”, diz.
A passabilidade -- o quanto uma pessoa trans se aproxima da aparência esperada de um homem ou de uma mulher, baseando-se nos estereótipos de gênero --, de acordo com Maria Eduarda, também reflete na absorção do mercado para com profissionais trans. “Existem pessoas trans que, assim como eu, passaram pela transição cedo e acabaram se tornando bastante femininas e, de certa forma, tem uma ‘aceitação’ maior por passarem despercebidas, mas nem todas possuem essa oportunidade, tanto de transicionar cedo quanto de se descobrir cedo. Vejo que o mercado de trabalho ainda precisa abrir muitas portas”, explica.
Em se tratando de respeito ao atendimento, por outro lado, tanto Maria Eduarda quanto Isabelle contam que nunca sofreram situações nas quais foram vítimas de preconceito. A primeira conta que ser cabeleireira lhe abriu muitas portas. “Tive sorte de conhecer pessoas que me fizeram estar no lugar certo e na hora certa para que oportunidades certas se abrissem e as coisas acontecerem. Foi por meio do meu trabalho que consegui a minha cirurgia e o respeito por parte da sociedade e da minha família, então o ‘ser cabeleireira’ foi fundamental para que eu pudesse ser quem eu sou e conseguisse me afirmar para mim mesma”, declara Maria Eduarda.
Muito além de se sustentar financeiramente, estabelecer-se dentro de uma área de trabalho constitui muito do que cada indivíduo é e o que ele quer ser. Para mulheres trans, que se deparam com barreiras constantes simplemente por serem quem são, o êxito profissional possui um valor muito maior do que se pode medir, como comenta Isabelle Castro.
“A importância para uma mulher trans conseguir espaço próprio dentro de uma profissão é que as pessoas vão parar de banalizar essa mulher. Existe a visão de que a mulher trans obrigatoriamente é prostituta, então quando ela consegue uma vaga no mercado de trabalho é o mesmo que desmistificar isso. Como maquiadora, o que me ajudou muito foi que conheci pessoas, passei e expliquei como é a vida de uma pessoa trans e transmitir um novo conceito de pessoa trans, totalmente diferente do que elas carregam. Não apenas na área da beleza, mas acredito que uma mulher trans está apta a trabalhar em qualquer profissão desde que esteja qualificada”, afirma.
Para mulheres trans que desejam ter o próprio negócio, o mercado da beleza acaba sendo uma boa alternativa. Apesar delas ainda não serem tão aceitas nesses ambientes tanto quanto os homens gays, por exemplo, e da imagem delas estar atrelada à prostituição, continua sendo uma forma de começar uma nova vida.
“É um mercado gostoso de se trabalhar e há certa aceitação. No meu caso, apanhando muito, eu consegui provar que sou uma pessoa trabalhadora, que estava lutando pelo meu espaço e que não sou menos digna do que ninguém. A profissão me fez ser uma pessoa melhor. A trans ainda é olhada com desconfiança porque ainda existe aquela promiscuidade. Tudo também depende da vontade das mulheres trans de encontrarem uma alternativa além da vida nas ruas, então acho que o mercado da beleza é uma boa forma de tentar conseguir uma vida diferente”, conclui.