A competitividade é uma das principais características da comunidade gamer, seja para subir de liga ou conquistar campeonatos, os gamers se reúnem em equipes e comunidades diversas. Mesmo com tanta diversidade de jogadores, competições como CBLOL, do jogo League of Legends, que realiza sua final no dia 17 de abril, tem equipes predominantemente masculinas e cisgênero.
Para Bryanna Nasck, trans não-binária streamer e pro-player de League of Legends, a falta de mulheres e trans participando de jogos como esse é sintoma da desigualdade. "Se tem pessoas trans que não conseguem entrar nesse meio é porque a gente está tendo a dificuldade de existir, enfrentando preconceito em casa, lutamos para sobreviver, para comprar os hormônios, estarmos vivas", diz.
"Há tantas barreiras que impedem que essas meninas tenham o mesmo tempo de um menino hétero cis, que pode ficar o dia inteiro no quarto sem fazer nada, existe uma desvantagem gigantesca", afirma.
Para Lady Chokey, também streamer e transexual, a falta de investimento é um dos fatores para o déficit de LGBTs jogando em livestream. Ela também ressalta que, apesar deste momento ser difícil para qualquer um, não é qualquer pessoa que tem condições de investir em um bom equipamento.
"Se não tem uma boa ferramenta, sua rentabilidade no jogo e até mesmo para 'streamar', não vão ficar legais. Você não vai entregar produtos de qualidade. Então é algo que precisa de um investimento, de uma organização", afirma.
As duas sempre foram apaixonadas por jogar, mas o gosto por livestreams veio com a carreira na internet. Lady diz que nunca teve condições de investir em um bom equipamento e fazer os streamings, então, quando começou a pandemia, sua amiga streamer, Rainha Matos, lhe aconselhou a começar com o quem.
"Ela me perguntou: 'Amiga, por que você não começa a fazer lives jogando e tal, eu acho que você tem tudo a ver, sua cara, você é superespontânea, acho que vai dar supercerto. Por que você não faz a experiência? Então investi e comecei'", disse Lady.
"Comecei na internet com 10 ou 12 anos, com meu blog. Em 2011, conversando com uma amiga, criamos um canal, era o esforço que eu precisava para começar mesmo. Em 2016, entrei nas livestreams. Meu computador era tão ruim que eu tinha que recomeçar a live a cada 30 minutos! Consegui comprar um equipamento adequado e hoje faço lives profissionais", conta Bryanna.
"Eu conquisto tudo na minha vida na base da resistência e resiliência, aos poucos eu consegui isso. Debato sobre gênero e sexualidade para o mundo dos jogos, então se eu jogo LoL, eu discuto sobre o que rola no jogo, o ódio dentro da comunidade", comenta Bryanna.
Mas o ódio na comunidade gamer ainda afeta as streamers
Na internet, os desafios de ser quem é podem ser agravados, com ameaças de desconhecidos e dificuldade de apoio por parte de plataformas e empresas de jogos, como a Riot, que é a dona de League of Legends. "Sabe quando você acorda e sabe que tem que escovar os dentes? Eu acordo todo dia sabendo que eu preciso ler algum xingamento ou ameaça que alguém me mandou", narra Bryanna.
Lady conta que, apesar da maior participação de grupos minoritários em competições e livestreams, o caminho é longo e que não há abertura para outros públicos. "Não existe essa abertura, não irá ter, pelo menos não tão cedo, devido a uma questão social e cultural. Hoje em dia, as pessoas são muito opressoras nas próprias casas, com pais ou mães sendo superconservadores e os amigos também que acabam oprimindo outros amigos", conta.
"Um adolescente de 15 anos que assiste à live de uma travesti, pode soar -- na cabeça de quem está vendo ele assistir aquilo ali -- como algo que não vai agradar ou será motivo de piada", diz Lady.
Bryanna, que faz mais lives de League of Legends, conta que silenciou o chat do jogo por sofrer com machismo e transfobia. Ela comenta que já foi reconhecida no jogo e sofreu transfobia, por isso fechou o chat de seu jogo. Ela também trocou o nickname, mas diz que não adiantou muito.
"Meu user é Lady Nasck, sempre foi esse. Não uso o Bryanna porque me reconheciam no jogo e se juntavam na minha lane (rota de jogo), para aparecerem na minha live, queriam fazer graça, me humilhar, então eu deixo algo que é referência a mim", diz.
Além do nome de usuário, a mudança de chat não impede haters. Ela ressalta que desligar o chat não impede que haters apareçam na seleção do campeão para ofendê-la. "Quando veem um nick feminino, escolhendo suporte, já começa o machismo. Hoje eu lido mais com machismo do que com transfobia no LoL. Ela vem mais de gente que me reconhece no jogo, mas o machismo é geral", comenta.
Fazer livestream de jogos "é algo que suga bastante o psicológico"
No GTA, uma jogadora precisa atuar, dirigir, raciocinar e conversar, muitas vezes tudo ao mesmo momento. A pessoa fica sentada, sem esforço físico, mas o desgaste psicológico é destruidor. Lady Chokey, por exemplo, que foca suas livestreams neste game tem medo de ser banida ou denunciada na plataforma que joga.
"A gente tem de ficar ligada até em uma brincadeira que vá fazer. É algo que suga bastante o psicológico, puxa muito do seu mental, não é fácil. Tem dia que acontece alguma coisa com o servidor e você fica de boa, mas outras vezes você realmente se estressa, acha que não está conseguindo entregar um conteúdo bacana. Aí tem de se virar, criar situações para entregar esse conteúdo, então, fácil é uma palavra que eu jamais categorizaria", afirma ela.
Bryanna conta que, apesar de ser algo corriqueiro nas livestreams, os comentários de ódio e o julgamento fazem mal. Ela declara que já ouviu todo tipo de xingamento, mas não existe ninguém se acostume a ser humilhada, ridicularizada e machucada.
"Me sinto como se fosse uma corrida: eu estou em busca dos meus sonhos e todas as pessoas me observam e jogam obstáculos para tentar me barrar. É um pedaço de pedra, pau ou um trilhão de xingamentos para tentar me distrair e tirar do foco. Eu acredito que o meu foco é estimular mais pessoas na internet", acredita Bryanna.
Diversidade (de verdade) no League of Legends
Patrocinadora da primeira copa para pessoas trans no Brasil, a Copa Rebecca Heinemann, Bryanna se diz decepcionada com o tratamento da Riot com a competição. "Ajudei a trazer um prêmio simbólico de R$ 1 mil para que as meninas pudessem começar. Acho que foi algo muito importante dentro de um meio tão preconceituoso, mas não deixo de criticar porque não teve um retorno tão positivo, foi muito pouco. Eles fizeram uma pequena divulgação, mas achei que faltou um pouco de incentivo da Riot para considerar a magnitude do campeonato", comenta.
"Eu esperava que tivesse uma iniciativa do League of Legends, de mostrar o respeito, a diversidade e ajuda para recompensar as meninas e dar visibilidade, auxiliando mais pessoas trans em times profissionais em Esports. Contudo, com tantas dificuldades, o que a Riot fez? Deu alguns pontos no jogo para as vencedoras", conta.
"Eles aproveitaram o movimento incrível, mas achei que faltou uma iniciativa mais direta e firme de uma empresa que é multimilionária, mas não me surpreende", diz.
O campeonato contou com 13 equipes, mas, no CBLOL, a principal competição do jogo no Brasil, todas as equipes são formadas majoritariamente por homens. A Riot afirma para o iG Queer que mulheres e LGBTs atuaram na competição, mas não apresentou estes dados. A empresa afirma ainda que muitas mulheres já atuaram no campeonato como atletas ou nos bastidores das organizações, mas não existem dados compilados dos últimos quase 10 anos de torneio para compartilhar neste momento.
"Somente nesta edição do CBLOL e CBLOL Academy, tivemos seis mulheres inscritas, de cinco organizações diferentes, das quais três jogaram na liga principal", declara a Riot.
De acordo com a empresa, há políticas de inserção de LGBTs na comunidade e em competições e que, em fevereiro deste ano, criou o programa Game Changers, cujo objetivo é justamente fomentar a presença de grupos minoritários no cenário de esportes eletrônicos.
"Internamente, temos contratado profissionais de grupos minoritários para fazer parte do nosso time. Hoje já temos analistas, narradoras e jornalistas trabalhando em todos os nossos projetos de esportes eletrônicos, mas temos a consciência de que essa é uma jornada que está apenas no início e nosso objetivo é contribuir para um cenário mais diverso e inclusivo", diz.
Para Bryanna, esta não é a realidade. "Eu parei de assistir ao CBLOL porque a maioria dos jogadores, comentaristas e repórteres eram homens. Vi que o show não era feito para mim, era feito para homens. Há mulheres repórteres, mas não há analistas, comentaristas", avança.
"No setor internacional, até tem, mas ela não reforça esteriótipos femininos e é tratada como um homem. É muito fácil colocar uma mulher que lembra um homem do que uma mulher estereotipada feminina como profissional", comenta Bryanna.
Para ela, a empresa apenas reforça a imagem da mulher como objeto sexual e que servem apenas para ser sexualizada e lutar em uma guerra no LoL. "Então olhamos para o jogo num sentido geral, ele não é feito para diversidade e para mulheres e LGBTQIA+ se sentirem bem. Eu espero que a Riot entenda um dia que a diversidade faz parte do jogo dela", comenta.
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Transfobia e comentários de ódio ainda são frequentes
Em dezembro de 2020, o streamer Jovirone fez um comentário transfóbico durante uma livestream. "Eu posso ser cancelado, tá ligado... eu sou hétero, tá ligado? Eu sou hétero. Mas, tipo mano, esse Eclipse é tipo um traveco gostosão [sic], tá ligado? Ele te engana, é legal, mas ele te engana quando você tá lá, ele te engana, o traveco [...]", disse.
Jovirone pediu desculpas, mas não sofreu nenhum tipo de punição por parte da equipe Fnatic e muito menos da plataforma de stream Twitch. Bryanna ressalta a falta de respeito com a comunidade LGBTQIA+. "Ele não é ignorante, é tão voltado aos próprios privilégios que não viu o quão perigoso era o que ele estava fazendo. Ele tinha tanta consciência de que iria falar algo errado que, antes de ele ser transfóbico, falou: ‘eu sei que vou ser cancelado por isso’", disse.
Para ela, o mais grave é que Jovirone não foi punido. "Não teve nenhum reflexo na carreira dele, é um absurdo, estamos falando de uma coisa que virou crime, está no código penal. A transfobia que ele cometeu é um crime. A Fnatic aceitou o pedido de desculpas esfarrapado dele. Eu acho chocante porque não olham para as causas trans com o peso real. Recebo comentários transfóbicos da fanbase dele por causa da pressão que fiz", diz. A transfobia e crimes relacionados à comunidade LGBTQIA+ está previsto no Artigo 20 do Código Penal desde 2019.
Além disso, ela também não concorda com a forma que Jovirone convidou uma pessoa trans para explicar o porquê da fala ser errada. "Ele trouxe uma pessoa trans para ensiná-lo na livestream, eu achei um absurdo. Isso é apenas uma técnica de reestruturar a imagem dele, deu espaço para uma pessoa trans, mas ele enquanto homem, não parou, estudou e educou o público dele. Se você quer utilizar alguma pessoa trans para consultoria, pague! Não estamos aqui de graça, temos conta para pagar. Todas as pessoas trans têm conta para pagar, pague algum consutor para ajudar", afirma.
Bryanna também diz que muitos LGBTs se silenciaram com a transfobia por medo. Além disso, outras pessoas do meio gamer também teriam se silenciado por receio de boicotes, de não serem chamados para outros jogos e eventos. Para a Riot, o espaço do League of Legends tem a tendência de ficar mais saudável.
"Nossos regulamentos preveem penalidades para comportamentos tóxicos e disruptivos e estamos atentos. Ao lado das organizações, buscamos manter um ambiente de respeito e acolhimento para todos em nossos campeonatos", diz. "Além disso, estabelecemos uma cultura em nosso time e nas organizações parceiras de ação direta contra manifestações de intolerância e toxicidade. A diversidade e a inclusão são importantes em todos os segmentos e, é claro, que nos esportes eletrônicos não é diferente. Estamos empenhados em colaborar para essa mudança e sabemos que essa é uma jornada contínua, que está apenas no começo", finaliza a Riot.