Em 2020, a apresentadora, empresária, cantora e atriz Xuxa Meneghel anunciou o lançamento de uma série de livros infantis. Em novembro daquele ano, foi publicado o primeiro volume, “Maya: Bebê Arco-Íris”, sobre uma anjinha que precisava escolher a família perfeita para cuidar dela na Terra e acaba escolhendo uma família com duas mães .
A história busca abordar as experiências e as reflexões de uma criança despida dos preconceitos e julgamentos existentes na sociedade, além de falar sobre o carinho e amor que existe nas relações familiares de pessoas homoafetivas. A história que Xuxa narra nas páginas foi realmente vivida por duas mulheres, a compositora Vanessa Alves, 47, e Fabianne Geledan, 34, que em janeiro de 2020 tiveram sua primeira filha, Maya, afilhada da empresária.
Vanessa passou grande parte de sua vida cercada de crianças e é figura carimbada para os fãs do mundo da Xuxa, mais conhecida como Vanynha. Quando era adolescente, fazia parte de sua rotina acompanhar crianças portadoras de deficiência ao programa Xou da Xuxa. Sua presença e seu trabalho despertaram afeto na apresentadora, que a contratou.
Além de trabalhar na produção, Vanessa compôs a maioria das músicas infantis dos volumes de “Xuxa Só Para Baixinhos”, além de ter feito participações como a Ratinha Rosa. Mais do que colegas de trabalho, Vanessa e Xuxa se tornaram amigas.
Mesmo trabalhando desde os 19 anos com o universo infantil, foi só aos 27 que ela sentiu desabrochar o desejo de ser mãe. Mas, naquele momento, esse sonho foi colocado em pausa. “Eu estava solteira e achava que precisava ter alguém para compartilhar esse sonho comigo”, conta Vanessa ao iG Queer.
Ao mesmo tempo em que tinha esse desejo, a compositora acompanhava de perto a maternidade de Xuxa e sua relação com Sasha Meneghel . “Era lindo de ver. A Xuxa sempre teve muito amor, respeito e verdade. Incentivava a criatividade, o lúdico”, lembra. Esses valores ficaram frescos em sua memória e se tornaram inspiração e exemplo da maneira como ela gostaria de ser quando chegasse o momento de viver a maternidade.
A chegada de Maya
Vanessa passou a se identificar como uma mulher lésbica quando assumiu seu relacionamento com Fabianne há oito anos. O encontro das duas foi ainda mais especial porque Fabianne, agora sua esposa, sempre expressou que queria ser mãe. “Fabi é a melhor coisa da minha vida, agradeço tanto a Deus por ter encontrado um amor tão lindo, uma parceira. E quando ela me disse que nasceu para ser mãe, fiquei muito feliz”, diz.
Apesar do tom decidido, elas esperaram alguns anos para engravidar, o que aconteceu só em 2019. O parto seria normal, mas isso se tornou impossível porque Maya tinha o cordão umbilical enrolado no pescoço e estava sentada. Então, esperaram Maya querer nascer para correr para o hospital. Mesmo morando a 15 minutos dele, Vanessa e Fabianne decidiram se hospedar em um hotel ao lado, que ficava a cinco minutos.
Maya nasceu no dia 26 de janeiro de 2020. Xuxa estava na sala de parto com o casal. “Eu compus uma música para Maya que tocou na sala antes de ela nascer. Xuxa gravou e fez fotos. Foi inesquecível”, conta sobre os bastidores.
Vanessa se emociona ao falar sobre como foi a chegada de Maya. Ela diz que, apesar de parecer clichê, nenhuma palavra existente conseguiria expressar nem ao menos um pouco das emoções daquele dia. “Só vivendo para saber o que é. Nunca senti uma emoção tão grande na minha vida quanto o nascimento da minha filha”, diz.
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Maternidade não reconhecida
Apesar de desejar muito a maternidade, Vanessa descobriu que a tarefa não seria fácil ainda no hospital, quando foi fazer o registo de Maya. Enquanto casais heterossexuais conseguiam pegar a certidão de nascimento de seus filhos em, no máximo, dez minutos, ela precisou esperar por cerca de uma hora e meia.
“Você via que até os profissionais que estavam trabalhando batiam cabeça em relação à documentação. Apesar de já ter me informado muito tempos antes de irmos para o hospital, diziam que eu não tinha os documentos certos. Tive que dizer que não sairia dali sem a certidão da minha filha”, lembra.
Nas redes sociais, ela descobriu que uma situação similar aconteceu com outro casal de mulheres que passaram por dificuldades para registrar as crianças. As duas descobriram, por meio de uma consulta do CPF das crianças na Receita Federal, que não estavam registradas como mães. Apenas uma delas aparecia vinculada às crianças.
O conceito de família, tanto do ponto de vista cultural como burocrático, ainda é assimilado de forma que é necessário que uma figura paterna esteja envolvida, ou que os responsáveis sejam um homem e uma mulher. No entanto, não são só crianças de casais lésbicos que crescem sem uma figura paterna, mas crianças vítimas de abandono paternal.
“O abandono paterno parece ser mais validado na nossa sociedade do que duas mães”, diz Vanessa. De janeiro a junho de 2020, existiam quase 81 mil crianças registradas só com o nome da mãe no Brasil, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores Civis de Pessoas Naturais (Arpen Brasil).
“É muito triste você não constar como mãe do seu filho em um sistema. Isso simboliza uma exclusão enorme da dupla maternidade. Essa história mexeu comigo porque não se trata só da família delas, mas da minha e de todas que lutaram tanto para ter seus direitos reconhecidos. Temos muito o que melhorar na nossa sociedade”, afirma Vanessa.
Por outro lado, o tratamento recebido por outras pessoas tem sido respeitoso. Vanessa explica que isso se dá ao fato de que, por conta da pandemia do novo coronavírus, Maya ainda não interagiu com o mundo. “Eu imagino que venha muita coisa por aí, mas a Maya é filha de duas mães fortes, então ela já nasceu forte, com uma missão de amor. Tenho certeza que vou ter muito orgulho da minha filha”, diz.
O livro de Xuxa inspirado por Maya
Em uma noite de 2020, Vanessa recebeu uma ligação por vídeo de Xuxa. “Eu preciso contar uma história para vocês. Cadê a Fabi?”, perguntou. Fabianne estava dormindo, mas foi imediatamente acordada por Vanessa. Na ligação, Xuxa disse que precisava contar uma história para as amigas.
“Ela começou a ler a história e eu comecei a achar a coisa mais linda do mundo, fui me emocionando. Quando chegou no fim e eu entendi que ela tinha escrito para a Maya, foi uma choradeira! Nunca vou esquecer esse dia”, conta Vanessa. O choro foi coletivo: além dela, Fabianne, Xuxa e Junno Andrade, que estava ao lado da esposa na ligação, deixaram as lágrimas caírem.
Vanessa explica que o processo criativo do livro partiu totalmente de Xuxa e foi uma surpresa para ela e Fabianne. “Ela me disse que era uma carta que estava com vontade de escrever para a Maya, e acabou saindo a história”, afirma.
Apesar de serem grandes amigas há anos, Vanessa diz que ficou impressionada com a sensibilidade de Xuxa ao levar a história de sua filha para as páginas. “Tem tanto amor ali que eu não sei nem explicar. É um presente que não tem preço e que está eternizado. Minha filha tem uma madrinha especial e única. Foi um lindo presente”, diz.
Mais do que uma história com muito valor pessoal para a família, Vanessa acredita que o livro sobre Maya será de extrema importância para pessoas de todas as idades sobre como existem outros tipos de família. “Eu acredito no poder de transformação pela arte e leitura porque assim temos a oportunidade de ganhar conhecimento e sabedoria”, explica.
Vanessa acredita ainda que “Maya: Bebê Arco-Íris” pode incentivar produtores de conteúdo, desde livros aos produtos audiovisuais, passem a contar histórias sobre famílias LGBTQIA+ para que mais pessoas possam se identificar e para que a sociedade respeite as diferentes configurações familiares. Ela própria afirma que demorou muito para encontrar músicas, animações e filmes que representassem sua família, mas encontrou muito poucas.
“Xuxa foi a primeira a fazer conteúdo infantil no país porque sentia falta disso, e até hoje existem frutos. Realmente acredito que o livro de Maya tem esse propósito também. A sociedade tem muito a evoluir nesse sentido”.