“O seu programa de televisão vai ser diário ou semanal?”, foi com essa pergunta que Valéria Barcellos, atualmente como a personagem Luana Shine em “Terra e Paixão”, da TV Globo, respondeu à primeira questão em entrevista ao iG Queer: “Qual pergunta simples, que não envolva ser uma mulher trans, preta e com mais de 40 anos você gostaria de responder?”.
Valéria Barcellos, conhecida também como Valéria Houston para os que estavam desde o início da sua trajetória no Rio Grande do Sul, tem uma longa caminhada artística, mas somente agora, aos 43 anos, passou a ser conhecida por todo o país.
Natural de Santo Ângelo, interior do estado, Valéria sempre deu lugar à arte na sua vida, sobretudo por não se sentir contemplada nas poucas representações de pessoas LGBTQIAPN+ na mídia.
“Toda essa construção da minha carreira artística nasce de um anseio, de estar em um não lugar, de não me sentir representada de nenhuma maneira. Por isso, eu busco com a arte, seja ela a música, a fotografia, a performance ou a atuação, construir uma imagem e uma solidez naquilo que acredito, para mim, enquanto uma mulher trans e preta.”
Seu desejo de estar na televisão sempre existiu, e fez vários testes ao longo da vida para estar em uma novela da Globo. Felizmente, agora ela pode comemorar essa conquista estreando no horário nobre da televisão brasileira e em uma das maiores emissoras do país.
“Está sendo incrível esse momento, e as respostas das pessoas também estão sendo muito bonitas. Apesar de já ter tentado algumas vezes, hoje, vejo que foi no momento certo, pois foi preciso esse momento de maturação para saber lidar com as pessoas, os comentários bons e ruins e isso eu só ganhei com o tempo”, comenta.
Para ela, quando via a representação de pessoas trans na televisão, não era algo que a fazia ter orgulho de ser quem era, pois as representações eram sempre feitas em tom de chacota ou marginalização. Agora, ela visa trazer para a casa dos brasileiros uma representatividade, não somente uma representação de uma mulher trans. Isso porque, Luana vive sua vida cotidiana sem precisar estar em uma posição de alívio cômico. “É um processo de naturalizar essas vidas, normalizar, de fazer com que as nossas existências sejam contempladas e inseridas na casa das famílias, algo que ainda é escasso de ser percebido”.
Valéria acredita que sua presença na televisão é uma conquista para muitas pessoas trans, mas ela reconhece que ainda é preciso de muito mais representatividade e que ela não seja a exceção. E sobretudo, que essa representação seja feita de maneia humanizada, e que os problemas das pessoas trans sejam comuns e não focados no gênero. “Queremos pautar, e não ser a pauta”.
“É preciso de muito mais porque ainda é difícil me ver em publicidades, porque as pessoas não estão completamente desamarradas de tudo que foi construído em relação às pessoas trans na cabeça delas. Será muito difícil me ver à frente de um programa, pois o meu objetivo é esse: ter um programa na televisão”, explica.
Na dramaturgia, Luana Shine é gerente do bar de Cândida, interpretada por Susana Vieira, e está envolvida em um dos muitos mistérios de “Terra e Paixão”. Ela esconde de todos a identidade de seu "cacho", um homem de Nova Primavera com quem se relaciona. Nas telas ela também expõe sua faceta cantora que acompanha ela antes de ser atriz. “Digo que sou uma cantora que atua”.
Cantora, atriz, DJ, performer, escritora, fotógrafa e artista plástica, Valéria afirma que, para ser quem é hoje, passou por muitas dificuldades. Primeiro o r acismo, que ela sofreu desde a infância, e depois a transfobia. E até dificuldades financeiras após a morte da mãe e falta de apoio do pai.
Em 2015, a artista foi vítima de golpes com chave de fenda e faca, chutes e socos. Mas ela prefere esquecer e dar lugar às conquistas. “A gente tem muito para falar, tem vitórias, talentos, ideias, oxigenação de pensamentos. Temos muito mais a oferecer que somente a mazela”, salienta.
Por ser do Sul, ela também reflete o papel que o racismo tem na construção de sua identidade. “Quando digo que sou gaúcha, as pessoas ficam surpresas, porque acham que lá só existem pessoas brancas de olhos azuis, mas tem um movimento bonito agora, o ‘Tem Preto no Sul’, que visa difundir o movimento cultural de pessoas pretas por lá”, detalha.
Em sua carreira, ela já foi cover da cantora estadunidense Whitney Houston e a partir disso foi sendo vista e se tornou destaque em Porto Alegre. Já em 2016, ela passou a fazer apresentações no Rio de Janeiro. Dois anos depois, abriu o show de Katy Perry em Porto Alegre e seguiu realizando diversos shows. Para ela, todas as fases dentro da sua carreira foram importantes para construir quem ela é hoje.
“Algumas pessoas ainda me chamam de Valéria Houston e acho um máximo. Tenho enorme carinho por minha trajetória.”
Entre banda, atuação em teatro e carreira solo, Valéria construiu um alicerce para si mesma. A materialização disso tudo pôde ser vista quando se tornou a primeira mulher transgênero a ganhar o Troféu Mulher Cidadã da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (Alers) na categoria Mulher na Cultura, em 2016.
“As mulheres trans não são vistas como cidadãs e nem como mulheres”, foi o que ela disse no dia. Anos depois, ela ainda reflete que nada mudou. “Sei que ainda sou tolerada nos lugares, não me sinto completamente à vontade nos lugares. Há uma diferença entre estar nos lugares e poder ser nos lugares. Eu sempre estou nos lugares, e não consigo ser eu plenamente, porque sempre preciso lutar por permanência e pensar duas vezes em que roupa usar ou se devo usar o banheiro em espaços públicos. Se eu uso uma camiseta muito larga, me chamam no masculino”.
Além de ser ativista e agitadora cultural, ela é considerada uma das precursoras do MPBTrans, movimento musical que mescla questões de respeito ao gênero, sexualidade e música popular brasileira, e já fez parte do Conselho Curador do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MAC/RS).
“As pessoas acham que surgi agora, mas já tenho uma bagagem de anos. E mesmo com essa bagagem de mais de 30 anos na atuação, só agora tive a minha primeira oportunidade na televisão”, conta.
Em 2018 ela precisou dar uma pausa na careira porque descobriu um câncer que se manifestou na pele e pernas, mas ela não se abalou com a doença, pelo contrário. Ela usou daquele momento para aproveitar mais a vida, aprendeu novas formas de enxergar o tempo, e o que era importante para ela. Por sorte, ela se curou, e enquanto estava em tratamento, escreveu um livro.
“Entendi que o câncer não é uma sentença de morte, a medicina está muito mais avançada que o tempo da minha avó ou mãe, mas foi um processo enriquecedor para mim, não romantizando a doença, claro. Compreendi o quanto somos vulneráveis e como não estamos imunes a nada.”
O processo de Valéria com a doença pode ser mais bem entendido em seu livro “Transradioativa: você me conhece porque tem medo ou tem medo porque me conhece?”, que ela conta que escreveu como um diário e porque estava cansada de responder como era fazer quimioterapia.
À época, ela teve o apoio do seu ex-marido, que juntos, viveram uma relação de seis anos. Ela relembra que ele a apoiou muito e foi um aliado naquele momento, sobretudo por ser também uma pessoa transgênero. “Acredito muito nos relacionamentos transcentrados porque foi com ele que pude compartilhar vivências e experiências que tínhamos em comum por sermos pessoas trans”. Embora não estejam mais juntos, Valéria conversa com ele sempre que pode, pois se tornaram amigos.
De outra geração, ela iniciou seu processo de afirmação de gênero aos 17 anos de maneira independente. “Minha geração foi aquela em que as mulheres trans faziam o uso do silicone industrial, ele estava em alta, mas nunca fiz e nem recomendo para ninguém. Mas reconheço que minha externalização só ocorreu dessa maneira porque havia muito pouca informação e acesso às terapias de hormonização como já vejo hoje em dia”.
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