“No Brasil eu sofro preconceito por ser feminina e LGBT
, e sinto que não pertenço a esse lugar. Depois, me mudo para a Suécia, onde os LGBTs são mais aceitos e tenho mais liberdade e respeito, mas sofro preconceito por ser uma imigrante latina”. Esse é o relato de Gabriel Fontana, mais conhecido como a drag queen Fontana, uma das finalistas do “Drag Race Suécia”
. A história parece algo incomum, mas é a pura realidade da comunidade queer que tenta fugir do ódio por um lado e dá de frente com outra discriminação fora do país.
Fontana se mudou para a cidade de Estocolmo, capital da Suécia , há 10 anos rumo a uma nova vida ao lado do primeiro namorado, que acabou tempos depois, mas optou por continuar no país europeu. Ela – que usa pronomes neutros, femininos e masculinos – nunca sonhou em morar lá, mas não pensou duas vezes antes de largar a vida oprimida pela homofobia em São Leopoldo, a 34 km de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
“Minha saúde mental não estava bem. Eu estava realmente muito deprimido, triste e com muitas crises. Quando vim para cá foi pelo instinto de sobrevivência”, lembra. “Achava tudo incrível e perfeito, mas depois de algumas semanas percebi que existem problemas e vi que sofria preconceito de uma maneira completamente diferente do Brasil. As pessoas têm esse preconceito conosco por ser imigrante e é algo muito difícil. Não é todo mundo que aguenta. Então, a gente precisa levantar a cabeça porque não é fácil”.
Na época que migrou para a Europa, a drag queen recebeu o visto de vínculo familiar, alegando um relacionamento estável com o namorado da época, que dá direito a uma residência de dois anos na Suécia. Quando esse prazo venceu, ela precisou ficar esperando mais dois anos pela renovação e não poderia deixar o território sueco em hipótese alguma, nem mesmo para visitar um país vizinho.
“Nos últimos anos, o partido de extrema direita aqui da Suécia cresceu muito. Os números são realmente exorbitantes. O que, para nós imigrantes, é muito assustador porque eles têm políticas e pensamentos completamente anti-imigrantes, além também de discursos anti-LGBTs, antidiversidade e antimulheres. Todo esse combo de preconceitos e problemas sociais que a gente viu nos últimos anos no Brasil com muita clareza.”
Ela lembra que quando se inscreveu para entrar no elenco do “Drag Race” não foi só para ficar famosa ou dar um close na televisão, mas queria dar mais visibilidade para a situação da comunidade LGBTQIAP+ do Brasil, que passa por violência, preconceito e tem que lutar para sobreviver. Fontana chegou a falar sobre tudo isso no Werk Room, o camarim das artistas do programa, algo que deveria ter sido exibido no episódio da semifinal, mas a produtora optou por cortar todas as falas da brasileira.
“Estar no ‘Drag Race’ é muito importante porque estamos numa franquia internacional, na maior emissora do país, a SVT, que é pública e gratuita. Estar lá é muito importante não apenas por eu ser LGBT e ser uma drag queen, mas também por ser imigrante e trazer essas questões. No episódio contei que eu era o único imigrante da temporada e, nos últimos anos, passei muita dificuldade com a imigração, como quando pedi uma renovação de visto, faltou entregar um documento e não tive a oportunidade de apresenta-lo. Quando esse visto foi negado já recebi uma carta de deportação”, relata.
Nesse momento, Fontana tinha um visto de trabalho como maquiadora de uma marca de cosméticos e não conseguiu a renovação dele. Por este motivo, foi ameaçada pelas autoridades locais, obrigada a voltar para o Brasil em até cinco dias e ser inserida novamente no mesmo núcleo onde sofria homofobia no Rio Grande do Sul. Sem alternativas, ela juntou todo o dinheiro que tinha e pegou um voo no dia 24 de dezembro de 2018 rumo a Porto Alegre.
“Eu saí do Brasil com muito medo e traumas e eu não queria voltar. Quando eu tive esse visto negado e recebi essa carta de deportação meu mundo caiu. Isso me machucou muito porque eu não fui tratado como um cidadão pela imigração, parecia um criminoso e não tive um tratamento humanitário. Não deu para conversar, era próximo do Natal e a resposta que eu tive foi simplesmente ‘estamos em férias de Natal, você precisa deixar o país ou o seu passaporte, seu nome e suas digitais serão registrados no sistema e você não vai poder voltar pra Europa nunca mais’. Então isso foi realmente um trauma que eu tive”, lamenta ela.
“Isso me coloca naquele lugar que eu não pertenço a aqui, que não sou bem-vinda. Aí fica meu questionamento: eu pertenço a que lugar? Será que existe um lugar no mundo que eu vou ser feliz, onde vou ter esse sentimento de pertencimento? Sofro muito preconceito e é algo que no programa eu falei muito a respeito. Espero que a gente consiga levar essa mensagem porque a Suécia inteira está precisando receber.”
Visto quase impossível
Depois da exposição no “Drag Race Suécia”, Fontana começou a receber uma chuva de mensagens de brasileiros que sofrem preconceito por aqui e também querem se exilar na Suécia para ter uma vida mais digna. Por este motivo, a artista começou a receber várias perguntas de pessoas que querem saber qual é a melhor forma de conseguir entrar no país.
Para quem deseja viajar para a Suécia a turismo, não é necessário fazer a solicitação de um visto, mas precisa apresentar os comprovantes de passagens de ida e volta, um passaporte válido, portar os documentos provando que é uma visita turística, seguro viagem obrigatório e renda suficiente para se manter no país durante a estadia. Mas para morar lá é preciso tirar um visto de trabalho, estudo, au pair (para ser babá) ou vínculo familiar.
A grande questão é que qualquer um desses vistos tem um prazo longo para ser liberado, podendo demorar de três meses a dois anos, dependendo do tamanho da fila. Quando Fontana voltou para o Brasil à força foi obrigada a esperar por seis meses até que o visto fosse renovado.
“Precisei ficar esperando meio ano para voltar para a Suécia e, nesses seis meses, nós tivemos o coronavírus. Foi realmente uma grande experiência triste porque eu já não queria estar no Brasil e, nesse contexto de pandemia, foi algo difícil. Todos nós imigrantes estamos suscetíveis a esse tipo de situação. É muito importante para quem está aqui, ou para quem quer vir, tomar muito cuidado e ficar atento com as leis e documentos para não faltar nada.”
Outro ponto importante assinalado pela drag queen é que as pessoas esquecem que o idioma oficial da Suécia é o sueco e não o inglês. Por este motivo, o ideal é que a pessoa migre já sabendo ao menos o essencial do idioma para conseguir um emprego com mais facilidade.
“As pessoas aqui acabam conseguindo entender e se comunicar em inglês, mas o idioma oficial é sueco e existe sim uma diferença de currículo. Antes de aprender o idioma eu tinha muita dificuldade de conseguir emprego, mas depois que eu aprendi acabei tendo mais facilidade. É algo importante a se pensar porque muita gente vem para cá falando inglês e acha que vai ser fácil conseguir trabalho, se adaptar, mas se decepciona com a forte pressão para falar sueco”, avisa.
Para finalizar, Fontana deixa claro que não pretende criar obstáculos para quem sonha com um mundo melhor e mais justo na Europa, mas é preciso estar atento à realidade de um país que não abraça os imigrantes como se imagina. Ela reforça que não deseja que ninguém seja tratado como um criminoso como aconteceu com ela.
“Nós somos pessoas com sonhos e ambições de ter uma vida melhor e por isso que os brasileiros me escrevem. Sinto essa angústia no meu coração. Já estive no Brasil também, quis fugir de lá e entendo como é difícil. A chave de tudo é o planejamento, mas saibam que aqui também nem tudo são flores. Nós precisamos lutar duas vezes mais para nos provar no mercado de trabalho, para mostrar que temos caráter e capacidade. Quero que as pessoas já venham preparadas com esse pensamento porque a realidade de imigrantes no exterior é de muita luta”, pontua.
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