O fim de ano, que compreende as comemorações do Natal e Réveillon, é sinônimo de reunião familiar e confraternização para uma parcela da população, mas outros precisam lidar com um cenário menos aconchegante. Segundo a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura de São Paulo, cerca de entre 5,3% e 8,9% da população em situação de rua da capital é composta por pessoas LGBTQIAP+.
Além disso, 63% dos jovens queer entre 18 e 25 anos se sentem rejeitados total ou parcialmente pelos familiares após se assumirem, e apenas 59% revelam a orientação sexual para a família. Tendo em vista esse panorama, é possível dizer que feriados cujo protagonismo cai sobre a reunião familiar podem conferir às pessoas LGBT um cenário de solidão e/ou receio, sejam elas assumidas ou não.
A psicóloga Bruna Rodrigues destaca que a instituição familiar está diretamente ligada aos valores cultivados pela nossa sociedade de que a família é uma prioridade e é sagrada. Com base nisso, a partir do momento em que uma pessoa LGBT não recebe o devido acolhimento nesse ambiente, o sofrimento emocional torna-se inevitável.
“Em nossa cultura, a família é muito significativa no que se refere a sentimentos de ligação. Na psicanálise, acompanhamos muitas teorias que abordam o desejo de ser amado que inicia ainda quando somos bebês, além da busca pelo olhar do outro, que pode se referir também a aceitação daqueles os quais amamos. Os conflitos familiares impactam diretamente o indivíduo emocionalmente, pelo embate inconsciente ou consciente de não ser aquilo que se deseja e não ter o amor daqueles que se ama”, explica ela.
A diretora e roteirista não-binária Gautier Lee expõe que momentos de confraternização podem evidenciar a posição marginalizada que as pessoas LGBT ocupam na sociedade, dentro e fora de casa.
“Por ser um período que promove a coletividade e a solidariedade, muitas vezes acabamos associando-o ao ‘estar em família’ e esquecemos que família é diferente de comunidade”, pontua ela. “Eu e meus amigos que também não são próximos dos familiares de origem organizamos uma comemoração na semana do Natal e fazemos um amigo secreto temático para que todos possam ganhar presentes. Ano passado o tema foi ‘a infância que não tivemos’, e eu ganhei uma pista de carrinhos Hot Wheels, minha namorada ganhou um patinete e uma amiga travesti ganhou uma Barbie. Todos esses presentes eram coisas que nós queríamos na infância, mas que nossas famílias nos proibiram de ter. Agora, adultos, estamos realizando nossos sonhos de criança e fortalecendo nossos laços de amizade”.
Em vista de casos como esse, vale pensar no que realmente consiste o conceito de família. O influenciador Vítor diCastro é um homem gay e ressalta que esse tipo de questionamento é fundamental para compreendermos não apenas o cerne da exclusão LGBT, mas também o motivo pelo qual ressignificar esses conceitos é importante.
“Qual é o verdadeiro sentido de família? É formado por várias pessoas que se apoiam, que se amam e se respeitam? O que é família? Qual a diferença entre família e parente? Como LGBT, a gente vive aprendendo a lidar com isso. O Natal é uma época muito familiar para ficar com pessoas que você ama, que não necessariamente precisam ser seus parentes que, é claro, você deve tratar com respeito, mas não é sua obrigação gostar ou ter intimidade. O importante é estar com pessoas que realmente te fazem bem”, destaca.
Bruna Rodrigues reforça essa importância e destaca que trazer novos sentidos a eventos e ideias socialmente alimentados e que prejudicam a saúde emocional de pessoas LGBT é uma ferramenta importante para conseguir se manter firme durante períodos como o fim de ano.
“Do ponto de vista psicológico, ressignificar nossas crenças sobre o que uma cultura muitas vezes determina é extremamente necessário para racionalizar mais sobre os acontecimentos em nossas vidas, as idealizações que criamos e os sentimentos que constituímos ao longo da nossa jornada e que são responsáveis pelo nosso sofrimento. Mudar a forma de pensar ajuda muito no equilíbrio das emoções”, recomenda.
Théo Souza é um ativista trans, preto e adotado. Ele ressalta que as interpretações estritamente biológicas das relações humanas colocam em cheque muito da saúde e da humanidade de pessoas LGBTQIAP+. “Essa questão de genética, DNA e o julgamento da sociedade perante à segunda família de um indivíduo LGBT, composta por amigos, por exemplo, ou a escolha de terem filhos sozinhos é um ataque arcaico e sem sentido. A família vai muito além de sangue e aspectos físicos, então é limitante ter um pensamento exclusivamente biologicista”.
Além desse trabalho interno e pessoal, o ambiente no qual nos inserimos também possui um papel de grande protagonismo. “Pode ser muito positivo estar em locais que promovam uma harmonia e uma experiência positiva. Não existe padrão de condições às quais devemos seguir em datas festivas, e sim ambientes e pessoas que nos fazem sentir confortáveis. É nessa perspectiva que devemos conduzir a vida”, aponta a especialista.
Para conseguir cultivar espaços como esse, ter uma rede de apoio mostra-se primordial, como Gautier Lee já exemplificou anteriormente. Ela ressalta que momentos sensíveis como Natal e Réveillon, junto às representações midiáticas de uma “família completa e feliz” mostram o quão fundamental é conseguir se reunir com pessoas do mesmo nicho, ou que pelo menos lhe acolham devidamente.
“A chegada das festas de fim de ano, junto com a midiatização de famílias felizes em comerciais de produtos natalinos podem agravar os quadros de depressão, ansiedade e idealização suicida. Sem uma rede de suporte, que em um mundo ideal também envolve acompanhamento psicológico com profissionais especializados em saúde LGBT, é muito difícil e desgastante o simples fato de viver os últimos dias do ano”, diz.
Para Vítor, essa mesma rede de apoio precisa ser constante, ou seja, não apenas um fenômeno natalino. “Quando você tem pessoas ao seu redor que podem te apoiar é importantíssimo. Para quem está passando o feriado longe da família esse ano, eu diria que está tudo bem. Eu espero que seu Natal seja lindo, e tenho a perspectiva de que é uma festa de renovação do amor, em que você deseja muitas coisas boas para quem ama. Tudo bem se você vai estar longe dos familiares, muita gente também está distante por conta do trabalho ou de uma viagem. E está tudo bem, é só uma data do ano. A gente não pode ficar colocando peso demais em uma data comemorativa”, aconselha.
“A exclusão infelizmente acontece de várias formas”, continua Gautier Lee. “Desde um atendimento em loja que se recusa a vender duas toalhas bordadas com pronomes femininos até a coação para que pessoas LGBT+ frequentem ambientes religiosos para se ‘curarem’. Parece defasado, mas ambas as situações ocorreram comigo esse ano. A sociedade ainda tem fortemente gravada em sua memória a imagem da pessoa LGBT+ sozinha, sem família, sem amigos e isolada. Felizmente seguimos nos conectando uns com os outros e criando nossas próprias pequenas comunidades que nos acolhem, nos orientam e nos respeitam”.
Levando em consideração o relato da roteirista e diretora, deve-se ter atenção ao fato de que a sociedade naturaliza a solidão das pessoas LGBT, partindo do ponto de que o fato delas serem excluídas de muitos ambientes, incluindo o familiar, geralmente não gera a insatisfação que deveria em quem está de fora da comunidade. Vítor diCastro concorda com esse aspecto.
“Existe um movimento para ‘desumanizar’ os LGBTs”, diz ele. “Se você coloca uma pessoa muito dentro do estereótipo, cria-se muita expectativa em coisas que quase não são humanas, então se ele não é aceito pela família, bom, ‘que pena’. Se questiona muito pouco o papel dessas pessoas que estão deixando o outro para trás, culpando sempre a vítima de uma família despreparada ou preconceituosa. Se ela tivesse nascido em um lugar com mais afeto, carinho e respeito, ela não estaria sozinha”.
“E isso não se restringe somente à população LGBT”, continua. “Muitas pessoas acabam afastadas da família, como uma mulher que engravida sem estar casada, uma pessoa com dependência química ou que cometeu algum crime. Esses indivíduos são retirados desse espaço e esse afastamento é naturalizado porque esperava-se que se essa pessoa fosse diferente e concordasse com todos os valores da família. Toda essa naturalização é muito profunda”.
Théo comenta com que a desnaturalização da vida LGBT e a romantização desse local marginal no qual a população é inserida se estende em diferentes instâncias. “Principalmente com pessoas trans, pretas, gordas e PcD, vão se acumulando mais marcadores em um único corpo, o que torna a exclusão mais evidente. Sofremos de uma solidão e negligência compulsórias pelo sistema mesmo e pelos espaços que nos expulsam e não nos reconhecem. Já de forma velada, vemos a falta de amparo em grupos de amigos, de faculdade e colegas de trabalho, nos quais nos vemos sozinhos”, pontua.
O processo de ressignificação da família, do que é ou não prioridade e a construção das redes de apoio pode ser difícil e desgastante, mas se mostra um dos poucos caminhos os quais pessoas LGBTQIAP+ podem recorrer caso queiram cultivar boas experiências de convivência – o que sim, é muito injusto. Dado o fato de que a humanidade desses indivíduos é retirada e seus corpos e vivências são esvaziados de sentido, cabe a eles se reerguerem para além da posição marginal para a qual são empurrados.
“Quando você entende que não precisa ficar ligado a relações tóxicas, você percebe que não tem motivo para se sentir obrigado a amar as pessoas só porque elas são seus parentes. É muito importante repensar essas relações que você está carregando ao longo da vida e escolher aquelas pessoas que realmente te amam e se importam com você”, conclui diCastro.
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