A ilustração é, por definição, uma imagem usada para acompanhar, explicar, interpretar, acrescentar informação ou até sintetizar um texto. O termo é usado com frequência para se referir a desenhos, pinturas ou colagens. Esse tipo de manifestação artística, como muitas outras, carrega um sentido social e político que pode ser explorado de várias formas, a depender da demanda e da intenção por trás da obra.
Em vista dos horizontes que se abrem perante às manifestações artísticas, diferentes grupos sociais podem utilizá-las como forma de resistência ou simplesmente para levar as próprias vivências para mais longe. O iG Queer conversou com alguns artistas cuja trajetória tem muito a dizer sobre a importância de cultivar a arte em todo e qualquer solo fértil.
A arte fala
Gabriela Tornai é artista visual, designer gráfico e artivista, termo usado para se referir a quem faz da arte um instrumento em prol do ativismo. Essa modalidade, por assim dizer, existe desde a época da ditadura militar, quando as artes eram o principal meio de protesto contra a repressão, a censura e a violência.
A artivista conta que a conexão com as expressões artísticas se deu principalmente pela convivência com outras áreas da arte que a influenciaram ao longo dos anos.
“Desde pequena eu sempre gostei [de arte], por mais que eu tivesse um contato muito limitado com ela. Minha mãe era empregada doméstica, e os primeiros contatos artísticos que eu tive foram quando eu saía da escola e ia para a casa onde ela trabalhava. Lá tinha MTV, então meu primeiro contato com a arte foi por meio da música, além dos filmes e desenhos. Comecei desenhando Pokémon e fui evoluindo a partir daí”, explica.
Dando um salto na linha do tempo, Gabriela diz que a época de faculdade também foi decisiva para a carreira na arte que ela possui hoje. “Eu cursei design de moda”, conta.
“Isso ampliou muito meu olhar. Sair de casa já tem um impacto bem grande. Mudei de estado para estudar, então recebi influências culturais, especialmente em uma faculdade federal, que possui alunos do Brasil inteiro. Entrei em contato com várias vivências diferentes”, diz.
“Desde pequena sempre gostei de fuçar muito e encontrar coisas novas”, continua ela. “Nesse meio tempo, trabalhei em vários lugares, como em uma empresa de bordados. Quando cheguei a Maringá, fiquei um tempo em uma agência de publicidade e tive mais contato com a parte gráfica. Isso cresceu ao ponto da política entrar no meu trabalho, principalmente por meio da faculdade, porque lá questões políticas são muito discutidas”.
Gabriela explica que começou a produzir de fato um pouco antes da eleição de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro (PL). Ela viu na arte uma forma de expressar o que sentia e pensava.
“Eu não tinha pesquisado sobre [artivismo], não sabia que existia um movimento. Só fui fazendo minhas obras até que um perfil chamado Design Artivista me convidou para fazer parte do grupo de artistas deles. Foi lá que conheci pessoas que, assim como eu, decidiram fazer arte para mostrar o que sentiam. Tudo foi crescendo e crescendo, até tomar proporções que eu não esperava”, conta.
Em paralelo ao artivismo, Gabriela também desenvolveu outras técnicas que impulsionam sua carreira: "Comecei a desenvolver minhas ilustrações e desenhos. Eu trabalhava muito com colagens, mas falei: ‘Ah, eu também sei desenhar, vou evoluir nisso’. Prestei tanto serviços de ilustração quanto de colagens com interferência de ilustração, que é o que eu mais faço hoje em dia. O meu trabalho tem várias vertentes, e foi algo bem despretensioso. Eu não sabia muito bem o que estava fazendo e até onde isso poderia me levar. Foi um empurrãozinho para que as pessoas começassem a me conhecer”.
A respeito da sexualidade, como uma mulher lésbica, a artista declara que a arte é construtiva em todos os aspectos possíveis.
“A colagem, por exemplo, é usada como arteterapia. Você consegue demonstrar os seus sentimentos ali. Todo o meu processo artístico diz muito do que estou vivendo. Teve uma época da minha infância na qual eu sofri um abuso. Eu tinha uns quatro anos, cheguei a contar para a minha mãe, e cada vez mais eu me apeguei na arte para conseguir lidar com tudo isso e organizar meus pensamentos. Não sei dizer se ela funciona exatamente como um escudo, mas é uma potência que dá forças para não deixar que as adversidades roubem os seus sonhos de você”.
Para ela, a arte é uma aliada poderosa na luta em prol dos direitos LGBTQIAP+, principalmente porque a forma como ela dialoga com as pessoas é bem mais democrática. “A arte torna [a luta] acessível”, explica Tornai.
“Qualquer pessoa consegue identificar o que for retratado ali, além de gerar identificação. A pessoa se sente acolhida e abraçada. Eu acho importante que exista a arte crítica e política, mas também considero fundamental a arte que traz esperança de dias melhores”, afirma.
Contudo, nem tudo são flores. Construir uma carreira artística é difícil, ainda mais durante e após um período pandêmico. Em 2020, quando a pandemia eclodiu, uma pesquisa do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura apontou que, só entre março e abril, o isolamento social comprometeu 100% da renda de mais de 40% dos artistas brasileiros.
Este dado, mais o fato de o Ministério da Cultura ter sido extinto no governo Bolsonaro, já mostra que a vida dos profissionais artistas foi totalmente virada do avesso.
Para além destes percalços, Gabriela Tornai pontua que ser artista e LGBT lhe torna alvo de críticas e discursos de ódio sem fundamento.
“As pessoas usam o nome de Deus em vão”, diz ela. “Tudo elas dizem que ‘de acordo com a Bíblia não pode’, e eu acho que usam esse discurso pronto para colocar panos quentes em cima do próprio preconceito”.
“A arte não é como um texto”, continua. “Ela toca em pontos sensíveis com muito mais facilidade, então eu acho que às vezes ela incomoda muito mais. Um exemplo é a repercussão da HQ em que o filho do Superman está beijando outro rapaz. Além disso, o bolsonarismo se incomoda muito com charges também. Eu já fui ameaçada por chamar o Bolsonaro de mentiroso, recebi uma intimação por isso. As pessoas se incomodam muito e quando descobrem que eu sou mulher fica pior ainda”.
A desenhista aponta também que ser artista exige certo instinto de autopreservação, principalmente porque os ataques são uma constante.
“A gente muitas vezes não tem condições de lidar com um processo, então o medo de sofrer represálias faz com que a gente recue. Por mais que lutemos, ainda corremos risco de vida apenas por existir. Muitas vezes é como uma corda bamba porque não é simplesmente lutar ou se reservar, é uma mistura dos dois”, finaliza.
Além das barreiras e estereótipos
Henri Campeã desenha desde pequeno. De acordo com ele, sua mãe o deixava livre para usar lápis nas paredes, então a arte se deu de maneira natural e como parte de seu desenvolvimento.
“Eu não sabia que a ilustração era um caminho possível”, confidencia ao iG Queer . “Na adolescência, comecei a pensar em qual carreira seguir e cheguei a fazer ensino técnico em design gráfico. Depois, entrei na faculdade pois achava que seria uma forma de utilizar a expressão visual para fins mais comerciais e viáveis no quesito trabalho”.
A caminhada para viver de trabalhos freelancer foi um processo gradual: “Eu trabalhei em algumas empresas como design gráfico, mas comecei a fazer ilustrações para mim mesmo. Eu postava na internet e foi ganhando repercussão, então começaram a surgir os primeiros freelas. Aos poucos, migrei apenas para os trabalhos como freelancer”.
Henri é uma pessoa não-binária e explica que a arte foi um dos meios pelos quais conseguiu compreender melhor a si mesma quando mais jovem.
“Eu fiz terapia durante uma época e minha psicóloga usava muito as técnicas de desenho. Foi um momento no qual comecei a perceber como isso poderia ser uma ferramenta de autoconhecimento. Se trata de como você expressa o que vem à mente de maneira visual. Acho que durante a minha adolescência, desenhar o que eu gostava e explorar a mim mesmo andavam lado a lado. Eu desenhava muito a Lady Gaga, por exemplo”, relembra.
“A arte permite que você crie o seu mundinho e seu espaço seguro”, continua. “O desenho me ajudou muito em momentos nos quais eu estava sozinho pensando na minha existência porque é uma coisa muito introspectiva. Era o meu refúgio porque a gente sabe que a realidade é muito cruel com pessoas LGBT”. A artista reforça ainda que toda essa trajetória e a própria compreensão dela de gênero e expressão de gênero transborda para o que produz.
“Por ser uma pessoa não-binária, eu acredito que quem eu sou influencia no meu trabalho e na forma como eu retrato as coisas. O meu estilo não é nem masculino nem feminino, acho que ele transita entre os dois e quem vê não consegue necessariamente colocar em uma caixa. Isso fica visível principalmente em trabalhos nos quais eu preciso representar figuras humanas. Às vezes a mensagem que eu quero passar não tem relação com o gênero; eu gosto que o personagem possa ser o que quem está vendo quiser que ele seja”, esclarece.
Aproveitando o gancho, Henri destaca como as lutas sociais ganham potência e forma por meio da arte, pois ela é capaz de representar a essência de uma pauta ou de um propósito de maneira que as palavras às vezes não conseguem.
“A gente se conecta com a arte de forma mais emocional”, diz. “A ciência tem os dados e as pesquisas, e isso é vital, mas acredito que as pessoas são mais impactadas quando algo as toca mais a fundo, seja uma música ou um desenho. A arte é um meio de luta muito importante. Eu gosto de trabalhar temas que não necessariamente esbarrem na causa LGBT porque somos muito plurais e nossa existência não se resume apenas a isso, mas sempre que posso eu fortaleço a comunidade de alguma forma. Toda vez que passo um orçamento eu incluo uma porcentagem que será doada para instituições, organizações e iniciativas que façam trabalhos voltados para a comunidade LGBTQIAP+”.
No âmbito profissional, Henri comenta que as empresas estão se abrindo mais para a diversidade, mas é um ramo difícil do ponto de vista da inclusão.
“Conheço amigos héteros que receberam briefing para trabalhos relacionados à parada LGBT, quando o mais coerente seria chamar alguém da comunidade, por exemplo. Existem sim muitos problemas. No meu ramo, que é a ilustração, acredito que há espaço para vários estilos diferentes, então se você é alguém que preserva sua autenticidade e faz algo que gosta, há como crescer no ramo – ainda mais por meio da internet”.
O artista, porém, não deixa de salientar que o ramo artístico é difícil e que ser um profissional LGBT exige que as pessoas tenham como se proteger e a quem recorrer.
“Acho que o mais importante é estar em contato com outros artistas”, aconselha. “É importante conversar com eles, compartilhar dúvidas, pedir ajuda. A comunidade da ilustração é muito unida e é importante que todos estejam alinhados para conservarmos nosso valor de trabalho”, conclui.
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