Há diversos aplicativos focados em encontrar parceiros sexuais e relacionamentos amorosos e, alguns deles, são voltados exclusivamente para o público LGBTQIA+
. No Brasil, país onde 63,7% da população considera que a raça interfere na qualidade de vida
dos cidadãos (IBGE), o racismo está presente em todas as instâncias, incluindo nessas plataformas onde comumente a discriminação racial é relatada como objetificação e sexualização do corpo negro.
O estudante Gilberto Santos, 32, possui um perfil no Grindr, aplicativo de encontros e relacionamentos para homens gays, há dois anos. Ele tem a pele escura e cabelo crespo black power e, em sua conta, se define como “negro”, “versátil”, “solteiro” e “cafuçu”. Morador de Sítio Novo, periferia de Olinda, em Pernambuco, ele conta que já sofreu alguns preconceitos na plataforma, de maneira direta e também indireta.
“Uma vez, um ‘carinha’ disse que o lugar em que moro é uma favela e que, por isso, não iria vir aqui [depois de convidado]. Em relação à minha cor, é sempre a mesma coisa: acham que negros são ‘dotadões’ e que têm que ser ativos [sobre a preferência de posições sexuais]. Já chegam assim na abordagem, pedem foto mais de perto e falam logo ‘você é negro, então deve ser bem avantajado’”, narra Santos.
Ele ainda relata que, muitas vezes, as descrições dos perfis dos homens que o abordam dessa maneira já apresentam frases discriminatórias. “A maioria é perfil de homens que se dizem casados. Eles já deixam claro na descrição que querem homens negros e dotados ou que não se relacionam com negros. Além, é claro, de afirmarem que não se relacionam com homens efeminados”, afirma o estudante.
Ao se deparar com certos perfis e abordagens, Gilberto diz que evita continuar conversando, por saber o quão agressivo pode ser o que ele pode ouvir. “É um problema que a maioria dos negros enfrenta, mas eu tento não me deixar atingir. Isso, para mim, é indiferente. Quando percebo algo do tipo, eu corto logo, bloqueio a pessoa”, diz o internauta.
O sociólogo Huri Paz, pesquisador do grupo Afro/Cebrap e do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra), da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que o racismo é um sistema de discriminação estrutural, presente em todos os grupos e instâncias da sociedade e que, por isso, aparece também dentro da comunidade LGBTQIA+ e nos aplicativos de relacionamento voltados para ela.
“A sociedade brasileira é formada em um sistema educacional que não apresenta as questões culturais, afro-brasileiras, indígenas, um sistema que não trata os corpos das pessoas pretas e pardas e indígenas como corpos humanizados, que têm desejos, que sentem dor, enfim, como corpos humanos. E a comunidade LGBTQIA+ está inserida nisso, então, claro que o racismo também se expressa dentro dessa comunidade e com tessituras específicas”, afirma Paz.
Para o pesquisador, o racismo pode ser expressado por mecanismos específicos de opressão que fazem dela algo costumeiramente velada: “Tecnologias do racismo”. “Muitos autores, como a Bel Hooks, a Patrícia Rio Collins e a própria Lélia Gonzalez falam sobre essas tecnologias, que são as formas do racismo se manifestar na sociedade e no cotidiano. A sexualização, a estereotipação e a objetificação [dos corpos negros nos aplicativos] são as formas como o racismo opera. Um corpo hipersexualizado não possui humanidade, só pode servir para o sexo”, explica Paz.
Segundo o estudioso, exemplos dessa hipersexualização estão presentes no cotidiano entre LGBTQIA+ ou não. Ele cita a entrevista de Xuxa e Taís Araújo, na qual a Rainha dos Baixinhos diz que gostaria de ter nascido “um negão”, fazendo gestos referentes a um homem grande e forte; cita também o governo Eduardo Paes que, ao entregar uma casa para uma mulher negra no Rio de Janeiro disse para ela: “Vai transar muito, né?”. Ou ainda a mulata do Carnaval, sambando e exibindo seu corpo, vista por muitos unicamente como objeto sexual.
“A grande perversidade de hipersexualizar um corpo é que ele nunca vai ser digno de receber amor e afeto, de viver um relacionamento amoroso a longo prazo, mas vai ser sempre lido como um corpo que deve ser usado apenas para descarregar pulsões sexuais. Essa tecnologia e outras ajudam a manter o racismo no nosso cotidiano”, opina Huri Paz.
Uma pesquisa de 2016 feita pela Travel Gay Asia e pela Gay Star News apontou que os usuários gays dão preferência ao uso do Grindr quando vão procurar parceiros sexuais ou paquerar on-line. De 2 mil pessoas entrevistadas, 74% afirmaram usar o aplicativo. Depois dele, as outras quatro principais plataformas a se destacaram no estudo: Scruff (31%), Hornet (27%), Tinder (27%) e Jack’d (24%).
Para Huri, o mecanismo de uso desses aplicativos não aumenta ou diminui o racismo neles, mas muda a forma como a discriminação chega, alterando a “tecnologia” utilizada para se expressar.
“O racismo se expressa de uma maneira mais aberta nos aplicativos em que a interação entre as pessoas é livre, independentemente delas indicarem que gostam uma da outra, como ocorre no Tinder, por match. No Grindr, não é preciso declarar que gosta de alguém para falar com esse alguém. E há diversos relatos de pessoas negras que recebem mensagens apenas de fotos de genitálias, algo que é mais comum entre negros do que entre brancos. Nesses espaços, os negros são mais impelidos a serem mais sexualizados”, explica o pesquisador.
Entretanto, em outros aplicativos nos quais é preciso declarar que gosta de outra pessoa e ela também para que um chat de conversa abra, como ocorre no Tinder, o racismo também está presente, mas se expressa na rejeição. “Quais são as pessoas que receberam o ‘like’ no Tinder? O gordo, o periférico, o efeminado e o negro podem simplesmente não receber ‘likes’. E isso não quer dizer que ele está sofrendo menos discriminação, menos racismo”, defende Huri Paz.
O usuário do Grindr “Boyzinho”, 22, que não terá seu verdadeiro nome revelado, se define na plataforma como “bissexual”, “negro”, “cafuçu”, mas não mostra o rosto, apenas o sorriso, prática comum no aplicativo. Ele afirma que, nos três anos em que usa o aplicativo para encontrar relacionamentos sexuais, sempre se depara com situações de fetichização.
“Acontece o tempo todo. Sou visto por muitos como o negro ‘pauzudo’, de estilo cafuçu. Principalmente os turistas, mas os brasileiros também me abordam assim. Na maioria das vezes, me sinto incomodado, mas, outras vezes, me sinto ‘desejado’. É um pensamento contraditório, mas é o que sinto”, relata “Boyzinho”.
Ele diz que quando recebe mensagens iniciais de uma conversa já falando sobre sexo, tamanho do seu pênis ou algo desse tipo, costuma dar foras ou bloquear a pessoa, para evitar mensagens racistas.
“Quando alguém me aborda dessa forma do nada, ‘e aí, negão, é roludo?’, me sinto incomodado, independente do ‘cara’ me atrair ou não. É muito invasivo. É como se eu só servisse como máquina de prazer e sexo para matar o desejo e o fetiche de alguém. Então, eu costumo dar logo um fora, mas quando a pessoa conversa normalmente e depois o assunto vai esquentando, aí é mais tranquilo. Acho que não tem mais relação com racismo, mas com o intuito do aplicativo”, conta o usuário do aplicativo.
Segundo o pesquisador, esse tipo de contato e abordagem em aplicativos de relacionamento pode gerar impactos na subjetividade das pessoas negras, apesar de ser apenas mais uma forma de impacto, dentre muitas conhecidas ao longo da vida.
“Os impactos subjetivos e psíquicos do racismo começam desde a mais tenra idade. Existem estudos que mostram como bebês negros recebem menos afeto quando estão dentro de estruturas educacionais do que bebês brancos. E essa de diferença na forma de tratamento se dá ao longo de toda a vida dessa pessoa racializada”, afirma.
“Existem muitos casos públicos, na internet, de professores que declaradamente disseram aos seus alunos negros que eles deviam servir para serem empregados domésticos e não acessar a universidade pública. E isso é muito sério na psiquê do indivíduo. Se objetificado sexualmente em um aplicativo é apenas a ponta do iceberg de uma longa história e jornada da pessoa negra”, completa Paz.
O pesquisador defende que, sendo o racismo expressado em forma de sexualização e objetificação nos aplicativos de relacionamento, algo que acontece em diversas outras instâncias da vida e em vários grupos sociais, a melhor maneira de combater o racismo seria aumentar a representação de negros e negras em todos os espaços.
“As pessoas pretas e pardas elas são retratadas nas cadeias, como domésticas, na pobreza. Isso ajuda a construir uma ideia de que as pessoas pretas e pardas só podem ocupar lugares subalternos. Quando alguém se relaciona com elas acaba reproduzindo esses estereótipos, inclusive entre pessoas pretas e pardas. Só vamos conseguir romper com essa lógica racista quando nós começarmos a representar os corpos negros como corpos humanos”, finaliza Huri.