Quando se fala sobre representatividade, o principal ponto de partida é a presença de pessoas LGBTQIAP+ em todos os nichos possíveis, a fim de desmistificar estereótipos e levar a voz da comunidade para quaisquer cantos em que possa e deva ser ouvida. Partindo deste princípio, fazer-se presente em um ramo majoritariamente branco, hétero-cis e patriarcal é fundamental para Melissa Miranda, uma das fundadoras da cervejaria Corisca.
Lésbica e nordestina, ela conta ao iG Queer que o ponto de partida da história dela e da cervejaria sempre foi o propósito de contibuir com a sociedade de alguma forma, indo além da ânsia por lucro financeiro. “Surgimos em 2017 com o desejo de estreitar as pontes”, começa. “Eu sou uma mulher nordestina, lésbica e periférica no mundo cervejeiro machista, então sempre foi um desafio muito grande. Nossa proposta é justamente trabalhar a inclusão porque o ideal de equidade tão desejado não existe – é uma luta diária. Eu e minha esposa estamos juntas há 19 anos e nos últimos anos temos receio de andar de mãos dadas, por exemplo. A intolerância é muito grande e costumo dizer que já somos velhinhas demais para correr”.
De acordo com ela, o sonho começou bem cedo. Melissa não se sentia feliz trabalhando em métodos tradicionais, pois a falta de valor por trás do trabalho exercido lhe desmotivava. “Em 2006, eu larguei o mercado capitalista. Cansei dessa vida, pois via o mundo sem um propósito, porque minha vontade não é apenas enriquecer. Eu queria que o coletivo ganhasse junto comigo. A partir daí, nos envolvemos com entidades sociais na Zona Sul de São Paulo, que eu sempre reforço que foi meu grande Mestrado e Doutorado na área da inclusão”.
Com base nos trabalhos voltados ao terceiro setor, Melissa encontrou o que lhe dá propósito: atuar no ramo cervejeiro. Ela ressalta que, mais do que produzir uma cerveja boa, a intenção é fazer um produto que gere identificação com o público e possa ser consumido por todos, independemente da classe social. Contudo, a pandemia afetou bastante este segundo aspecto.
“Nosso foco não é apenas ter uma cerveja de qualidade e que consiga agradar tanto quem conhece quanto quem não conhece as nuances da bebida, mas sim fazer um produto final que chegue para todos. Por exemplo, quem está nas periferias não consome cerveja porque não tem paladar, e sim porque não tem dinheiro mesmo. O litrão é mais barato, não tem como a gente concorrer. Se continuarmos pequenos, não conseguiremos diferenciar de preço porque eu trabalho com a mesma margem desde o início para dar 35% de lucro da economia solidária. Hoje eu tenho dois postos de venda na periferia, mas quando começamos, antes da pandemia, eu tinha 40”, explica.
Para conseguir manter a cervejaria de pé, Melissa explica que precisaram adaptar a forma de abordagem, mas que o cerne do negócio jamais será abalado justamente porque o que agrega valor é conseguir atingir aqueles que são socialmente jogados para a margem.
“Tivemos que mudar nossa presença nas feiras, por exemplo”, diz. “Antes, todas as feiras que íamos eram as das periferias, mas agora também vamos às feiras em bairros granfinos porque precisamos vender para quem está tendo poder aquisitivo, caso contrário meu negócio acaba. Eu preciso crescer para conseguir retornar com uma presença ainda mais forte nas regiões periféricas. O propósito inicial nunca vai ser deixado de lado, porque sem ele tudo perde o sentido”.
Criar elos para resistir
Em um ramo no qual ser mulher e lésbica por si só já dificulta, é importante ter uma rede de apoio. Melissa conta ao iG Queer que já realizou várias parcerias com outras cervejarias que, assim como ela, trabalham em prol do benefício da comunidade e da representatividade. Tanto que o lançamento mais recente, a cerveja “Do Brejo”, é uma colaboração entre a Corisca e Zuraffa. De acordo com ela, são esses elos que ajudam os produtores a manterem-se de pé e o brilho continuar habitando os próprios olhos.
“[Nós, por meio das parcerias] conseguimos ajudar quatro entidades com os lucros das vendas em um projeto realizado durante a pandemia”, conta. “Não é apenas sobre o produto, mas sobre a história por trás dele”.
Ao ser questionada sobre os obstáculos frequentes de ser uma marca abertamente pró-LGBT e comandada por pessoas LGBT, Melissa primeiramente ressalta que todas as cervejarias pequenas enfrentam, antes de tudo, a falta de investidores e o baixo fluxo de caixa – outro motivo pelo qual realizar parcerias com outros produtores pequenos é tão importante. Mas, de acordo com ela, “estamos crescendo. Nos conectamos porque vários negócios pequenos, quando unidos, podem ter impacto muito grande”.
Fora a questão comercial em si, ela traz à tona o machismo que ainda é totalmente escancarado no ramo das cervejarias. “Quando vemos mulheres relacionadas à cerveja é sempre em um comercial: uma loira ou uma morena segurando um copo transpirando e sendo alvo de desejo”. Para ela, ser mulher, LGBT e estar ativa em uma área majoritariamente comandada por homens cis, brancos e heterossexuais é um tipo de afronta necessária para dizer que elas são tão capazes de produzir cerveja de qualidade quanto quaisquer outras marcas, “ou até melhor”, como ressalta.
“Com certeza produzimos nossas cervejas com mais empatia. Cerveja é uma bruxaria”, explica com bom humor. “É uma espécie de alquimia que começou com as mulheres porque na época era função dela produzir o alimento e servi-lo. Então esse é um resgate e uma luta muito sofrida. Poderia ser bem mais fácil, mas precisamos de muito mais carinho e respeito”, finaliza.
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