Luiz revelou ser um menino trans há um ano
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Luiz revelou ser um menino trans há um ano

Para a Marie Claire, o professor universitário Nicolau Centola deu um depoimento emocionante sobre a relação com o filho Luiz, que se revelou um menino transgênero há um ano. Ele celebra o Dia dos Pais pela primeira vez como pai de um menino trans.  'Meu filho trans me deu o melhor presente de Dia dos Pais: se tornou uma pessoa feliz', disse ele. 

Leia o depoimento: 

"Para contar o que aconteceu no último ano, preciso retroceder a março de 2006, quando eu e Bia resolvemos morar juntos. Depois de muitos percalços na vida, tivemos a certeza (e ainda temos!) de encontrar nossa cara-metade. Uma das condições para nos casarmos era ter um filho. Confesso que até então eu nunca tinha realmente tido a vontade de ser pai. Era até uma piada interna na minha família. Minha mãe já estava desenganada de ser avó… Mas como eu poderia dizer não à mulher da minha vida?

Depois de algum tempo tentando sem sucesso, resolvemos fazer uma fertilização in vitro. Logo na primeira tentativa, a Bia engravidou e, em novembro de 2009, tivemos uma linda filha. Esse bebê, muito esperado e querido, transformou nossas vidas. E filhos são o espelho dos pais. São como esponjas, que assimilam tudo que fazemos, dizemos e pensamos. Desde cedo, nosso bebê conviveu com a diversidade dos nossos amigos e aprendeu que existem inúmeras formas de amar.

Porém, em agosto do ano passado, nossa filha começou a ter crises de angústia, muita ansiedade, medos extremos, falta de ar. Geralmente as crises aconteciam à noite, antes de dormir. Também, tanta coisa acontecendo. Um ano e meio dentro de casa, por conta da pandemia. Onze anos, uma idade complicada, passagem da infância para a adolescência. Demos todo o nosso apoio, cuidamos, fizemos sessões de relaxamento e meditação e medicação antroposófica. Por fim, a levamos a uma terapeuta para tentarmos reverter esse quadro que nos preocupava. Claro que a pandemia era um fator causador de tudo isso, mas outras questões começaram a aparecer.

Nunca vou me esquecer quando a coordenadora da escola me mandou um e-mail pedindo um call, pois “uma situação” havia acontecido. E, na telinha do notebook, ela nos contou que nossa filha havia entrado no banheiro masculino da escola pra fazer xixi e que, casualmente, lá estava um professor, que a questionou e ela havia respondido que era um menino. Aparentando normalidade, mas com a cabeça a mil, fizemos a nossa melhor cara de “não estamos surpresos” e calmamente dissemos que iríamos conversar.

Sentamos para um papo e ele, com toda a firmeza do mundo, nos disse que era um menino transgênero e que todas as amiguinhas já o chamavam de Luiz na escola. Os professores, inclusive, o chamavam pelo sobrenome, Centola, para evitar problemas. Calmo e assertivo, nos mostrou que ele já havia resolvido toda a situação. E eu, internamente, pensava: 'Como não percebi isso, que pai sou eu que não notei uma mudança tão drástica no meu filho?'.

Marcamos uma sessão dos pais com a terapeuta, que nos explicou que Luiz era um menino muito decidido, ciente de si e bem-resolvido, que tratava o assunto com uma normalidade incomum. Uma sessão para abrir os corações, chorar e expor nossas dúvidas. Em nenhum momento tive uma reação clichê, do tipo: onde foi que eu errei, mas e se ele se arrepender desta “opção” no futuro… Nada disso. Só pensava à frente: o que fazer agora, como acolher e ajudar meu filho.


O primeiro passo: conhecimento! Porque uma coisa é você saber que transexualidade existe. Outra coisa é lidar com ela no dia a dia, saber como ajudar seu filho a se sentir feliz e confortável em qualquer percalço que acontecer. A única coisa que me preocupava era o preconceito que o Luiz sofreria pelo resto da vida. Porque uma coisa é a rede de apoio da família e amigos, outra coisa é o mundo cruel lá fora. Ainda mais no Brasil, amplamente conhecido pelo preconceito contra qualquer pessoa diferente da heteronormatividade cis branca e detentor da triste marca de país que mais mata pessoas trans no mundo. Como proteger meu filho?

Comecei a consumir todo tipo de informação sobre o assunto. Existem muitos artigos e matérias curtas, mas descobri que ainda são poucos os livros com relatos sobre crianças e adolescentes trans que, claro, era o que mais me interessava. Os casos, e como lidar com eles. O primeiro foi “Minha Criança Trans?”, o relato da mãe de uma menina trans. Mas ainda não era o que eu queria. Era muito mais fácil achar informação sobre transexualidade feminina do que masculina. Uma amiga indicou “Viagem Solitária”, de João W. Nery, um soco no estômago, a trajetória de um dos primeiros trans masculinos a fazer cirurgia.


As histórias passaram a se multiplicar. “Trans”, de Renata Ceribelli e Bruno Della Latta, trouxe várias crianças e adolescentes e foi baseado em uma série de reportagens veiculadas na Rede Globo. Caramba, por que eu parei de assistir ao Fantástico? Toca a procurar na internet. O que me levou a Transhood: Crescer Transgênero, da HBO Max.

Ok, aprendi bastante sobre transexualidade infantil, mas como ajudar meu filho? Bom, a jornada é longa, uma batalha diária sem fim, onde precisamos estar atentos a cada minuto. Deixei um pouco de lado as mil coisas que pipocavam na minha cabeça e passei a me concentrar nos pequenos detalhes do entorno, para dar um maior acolhimento, além do básico: amor, carinho e pronome masculino.

O primeiro passo foi administrar a ansiedade juvenil. Sei que a juventude quer tudo para hoje (todos passamos por isso), mas precisamos deixar claro que essa transição é um caminho, um passo de cada vez, uma construção para uma nova identidade. O melhor argumento é que ele passou dez anos da vida como menina, mas terá outros oitenta como o que ele verdadeiramente é, um homem.

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Todas as roupas femininas foram doadas e um novo guarda-roupas foi comprado: camisetas, shorts, bermudas, cuecas, tudo para deixá-lo mais confortável. O quarto também foi remodelado, deixando de lado todas as referências femininas. Fotos foram tiradas, mas algumas ficaram, principalmente as de bebê. Afinal, é nossa história.


A mudança no comportamento foi imediata. Agora sim, o Luiz podia se sentir à vontade em casa, ser quem ele é, sem se preocupar se os pais o estariam observando ou tentando forçar nele algo que ele não é. Com o ambiente doméstico controlado, passamos para uma segunda etapa: a escola, onde ele passa grande parte do dia. A primeira constatação é que as crianças e adolescentes de hoje não são como nós fomos. Eles são muito mais abertos, assertivos, se adaptam e aceitam a diversidade. A partir do momento que o Luiz se assumiu menino, os amigos passaram automaticamente a tratá-lo como tal. Até agora não houve nenhum caso complicado de preconceito. Ponto positivo para a criançada.

Mas há toda uma burocracia e organização escolar que precisava ser mudada. Reuni todas as resoluções sobre transexualidade no ambiente escolar (e acreditem, ela existe e é clara) e marcamos uma reunião com a diretora. Um tradicional colégio particular de tamanho médio de São Paulo, onde a Bia já havia estudado. Todos muito receptivos, entendedores da diversidade, discurso bonito. Luiz é o primeiro aluno a se assumir trans na escola. Até o momento em que começamos as demandas. Boletins, chamadas, carteirinha, tudo precisa ter o nome social. Ah, mas o MEC… Saco do bolso a resolução que obriga escolas a alterarem a documentação. Ufa, o papel timbrado ainda tem força.

Tudo corre bem. Nome social aceito, professores já o chamam pelo pronome masculino, funcionários serão orientados a chamá-lo de Luiz na hora de pegá-lo na escola…Até que chega a hora do banheiro. Para mim parecia tão simples. Se eu me sinto homem, frequento banheiro masculino. Se me sinto mulher, feminino. Aprendi rapidamente que não é bem assim. Depois, descobri que esta é uma das questões mais complexas, desde a escola até o Congresso Nacional. O tema está no STF e o xará do Luiz, o ministro Fux, desde 2015 pediu vistas e sentou no assunto, impedindo que as pessoas possam ir ao banheiro que quiserem. O lobby do xixi é forte. É incrível como, em um país onde a nudez está nas praias, nas TVs e a erotização permeia o nosso dia a dia, o ato de fazer xixi possa causar tanto “constrangimento”.

A escola bateu o pé. O Luiz não pode ir ao banheiro masculino porque as pessoas podem se sentir “constrangidas”. Mas, espera aí, ele vai entrar no banheiro, fechar a porta, sentar e fazer o xixi dele. Ninguém vai ver um centímetro do corpo dele. 'Não, não pode'. Quer dizer, as pessoas não podem se “constranger”, mas ele pode ficar constrangido por não ter a permissão de ir ao banheiro do gênero do qual ele se identifica? 'Não, não pode'. A solução mequetrefe, uma derrota, na verdade, é que ele poderia usar o banheiro de deficiente físico. Detalhe: só existe um na escola e é trancado. Ele precisa pedir a chave para alguém e sair correndo para o andar do banheiro. Que trabalho e constrangimento para um único xixi! De fato, ele raramente vai ao banheiro em locais públicos, evitando constrangimentos desnecessários. O que pode dar até problemas de saúde. Que tristeza…


Depois da escola, partimos para a família. Comunicar, principalmente aos avós, que o Luiz é um menino trans. Fiquei apreensivo, principalmente com meus pais, que moram no interior e são mais conservadores. Como eles encarariam essa novidade? Do lado da minha família, Luiz é o único neto, então seria uma mudança drástica. Depois de um tempo enrolando, criei coragem e fiz da única forma possível: contando tudo de uma vez, explicando calmamente todo o processo e como ele estava muito mais feliz agora que há um ano. A tecnologia também ajudou: uma chamada de vídeo resolveu o problema.

Para minha surpresa, os avós, de ambos os lados, aceitaram numa boa, e continuaram a amar o neto da mesma forma. Claro, eles às vezes trocam o pronome ou o chamam com o nome antigo, mas eles mesmo se corrigem, dizendo que são velhos e ainda precisam se acostumar. Minha mãe até notou, na última visita, que o Luiz está muito mais feliz, falante, conversa sobre tudo, bem diferente do que ela havia visto no ano passado. Claro, agora ele pode mostrar para todos como ele é verdadeiramente.

Próximo passo: inclusão do nome social nos documentos. Um alívio. A legislação brasileira é clara sobre o assunto. Qualquer pessoa pode incluir o nome social em todos os documentos. Se for menor de idade, basta os pais autorizarem. E funciona, é muito fácil. Demorei dois dias para mudar o RG e CPF, só porque eram em lugares diferentes, senão bastaria uma manhã. E que felicidade o dia que o RG chegou pelo correio com o nome novo!


Claro, é só inclusão do nome social, não é mudança de sexo nos documentos. Luiz sempre me questiona, pensando nas viagens internacionais: e o passaporte? Explico que este é um documento internacional, que só pode ser mudado quando ele mudar oficialmente o sexo na certidão de nascimento. E isso só pode ser feito quando ele tiver 18 anos. Calma, filho, é sempre um processo, um passo de cada vez, lembra?

Aproveitamos que o RG novo chegou próximo ao Dia do Orgulho LGBTQIA+, e pensamos em fazer uma postagem nas redes sociais minha e da Bia, para oficializarmos a comunicação para amigos e parentes. Até então, só os mais próximos sabiam da mudança, e imagina ter que contar toda a história centenas de vezes. Temos muitos amigos e as famílias são grandes. Tiramos uma foto do Luiz segurando o RG novo com um sorriso nos lábios e pagando mico com os pais dando beijos dos dois lados. A Bia escreveu um belíssimo texto e publicamos nas redes. O retorno foi emocionante. Literalmente, centenas de curtidas e comentários carinhosos nos desejando felicidades. É tão bom ver que o amor está aí, por todos os lados. É só chamar que ele aparece.

A jornada continua, e sei que teremos muitos obstáculos a superar. A questão da mudança do corpo é uma das mais problemáticas. Como o Luiz só se assumiu depois da primeira menstruação, ele não pôde tomar bloqueadores de hormônios. Então, seu corpo continua a se desenvolver como uma menina, e os seios causam os maiores constrangimentos, principalmente na praia. Tentamos contornar da melhor maneira possível mas nem sempre os resultados são bons, o que deixa o Luiz triste. Mas esta é outra coisa que só vai poder ser resolvida com 18 anos. É a lei.

Mas todo dia o Luiz me deixa muito orgulhoso de ser seu pai. Ele demonstra uma maturidade enorme para seus apenas 12 anos. Articulado, decidido, com jogo de cintura para se adaptar aos problemas e encontrar as melhores soluções, Luiz me deu este ano o melhor presente que eu poderia querer no Dia dos Pais, se tornou uma pessoa feliz!"


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