Nathália Rodrigues faz parte da Orquestra Sinfônica da Baixada Fluminense
Reprodução/Instagram
Nathália Rodrigues faz parte da Orquestra Sinfônica da Baixada Fluminense


A trajetória de  Nathália Rodrigues na música começou pelos avós. Desde cedo, antes mesmo da transição, eles a incentivaram a acompanhar André Rieu – violinista, regente e empresário neerlandês. “Eu me surpreendia com aquele espetáculo”, conta com exclusividade ao iG Queer. “Eu pensava: ‘Nossa, que instrumento bonito ele toca’. A partir disso, comecei a pesquisar mais sobre a música em si e sobre os instrumentos, até que encontrei a música celta, conhecida como New Age, o que me fez ficar ainda mais apaixonada pelo violino”.

Em meio a essa trajetória, veio a descoberta da transgeneridade. Nathália conta que se reconheceu do ensino fundamental para o ensino médio. “Naquela época, já comecei a tomar hormônios, mas com muito medo das represálias, afinal sabemos como o ambiente escolar pode ser. Eu fui aos poucos, mas ao terminar o ensino médio falei: ‘Não, agora está tudo bem, já tenho 18 anos’. Foi quando eu disparei na transição, deixei o cabelo crescer e continuei com a hormonização. Neste meio tempo, acabei deixando a música de lado devido à euforia da transição, porque eu não me enxergava de forma alguma e finalmente estava começando a me reconhecer”. 

Ela relembra ainda os momentos em que explorava os próprios gostos quando ninguém estava por perto. “Quando minha mãe saía e eu ficava sozinha em casa, vestia as roupas dela, me olhava no espelho e dizia: ‘Nossa, como eu sou bonita’”, relembra com bom humor. “Passei por preconceito sim, mas sempre tive em mente que não iria ligar para o que as pessoas pensavam ou tinham a dizer a meu respeito”. 

No meio tempo da transição, Nathália explica que os instrumentos continuavam por perto, mas o fato de ser uma pessoa trans despertou alguns receios. “Eu ficava olhando [os instrumentos] e sentia que seria rejeitada por ser quem sou, principalmente porque na época eu não tinha os documentos retificados. Quando eu estava planejando embarcar nesse processo de arrumar o meu nome, veio a pandemia”. 

O isolamento social trouxe uma virada de chave dolorosa e ao mesmo tempo importante para a vida de Nathália no ramo musical. Ela se emociona quando explica ao iG Queer de que forma a entrada profissional no mundo da música aconteceu. 

“No momento em que tudo estava congelado, passei por um desastre na minha vida: perdi meus avós para a Covid-19. Eu não tenho pai, ele morreu antes do meu nascimento, então fui criada pela minha mãe e meus avós. Eram eles que me inspiravam, que viam o DVD do André Rieu e diziam que um dia seria a minha vez, que eu ainda estaria em uma orquestra. Eu lutava contra esse sonho dentro de mim porque me perguntava como eu faria isso. Nós, pessoas trans, carregamos muitos traumas. Muitos nos acusam de vitimismo porque não estão dentro da nossa pele para saber pelo que passamos”, declara. 

Tendo em vista a perda dos avós, Nathália conta que passou por um momento divisor de águas. “Comecei a refletir, conversei com alguns psicólogos e decidi retificar meus documentos. No meio desse processo surgiu uma fagulha de esperança porque, uma vez que meus documentos estivessem ajustados, ninguém poderia negar quem eu sou, afinal estaria registrado tanto meu nome quanto o sexo feminino. Foi uma conquista muito gratificante. Com tudo certo, falei: ‘Bom, agora vamos dar continuidade àquele sonho’”. 

“Eu não poderia deixar esse dom morrer”, continua ela, relatando ao iG Queer como foram os primeiros passos para que conseguisse se firmar na carreira musical. “Foi quando eu busquei a OSBF (Orquestra Sinfônica da Baixada Fluminense). Conheci o maestro e tive uma conversa com ele porque é sempre bom deixar as coisas claras. Rapidamente voltei a fazer as aulas porque já fazia um tempo que eu não praticava devidamente desde a transição. Conforme voltei a fazer música, senti meu dom florescer novamente. Pensei: ‘Meu amor, não existe preconceito certo’, nada mais me segurava. Independentemente de qualquer coisa, eu continuaria com a música porque sei que sou capaz. Mantive a constância das aulas, afinal instrumentos são sempre aperfeiçoados, não há ninguém que toque perfeito ou igual aos demais”, diz. 

Revolução e inspiração

Nathália Rodrigues toca violino, viola e violoncelo
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Nathália Rodrigues toca violino, viola e violoncelo

Nathália confidencia ao Queer que o gênero celta, conhecido como New Age, é o que gera mais identificação com ela no ramo musical. Após integrar a OSBF e voltar às práticas regulares, ela voltou a se aprofundar na música celta. Essa, como ela diz, foi a "chave de ouro" em sua vida.

“Esse tipo de música toca muito a minha alma porque são utilizados instrumentos como flauta e harpa, melodias que transcendem nosso espírito. Na época em que eu enfrentava transfobia no colégio ou quando estava passando por qualquer momento difícil, eu ouvia música celta porque me fazia sentir acolhida”. 

A musicista então decidiu mergulhar de cabeça nessa proposta e descobrir o que mais o gênero musical poderia lhe proporcionar. Ela confessa que não é amante de música clássica, embora estude violino, mas percebeu que não era sua área de preferência e começou a se dedicar ainda mais ao estilo celta.

"Estudava e tocava até que pensei: ‘Por que não entrar nesse nicho?’. Hoje em dia é comum vermos músicos que tocam os mesmos instrumentos que eu – violino, viola e violoncelo – atuando em vários estilos e, aqui no Brasil, a música celta não é tão bem difundida, então decidi: vou popularizar esse gênero musical no país”. 

Muito inspirada por Secret Garden e Celtic Woman, dois grupos influentes no gênero New Age, Nathália buscou assessoria e assistência para começar a solidificar a carreira e ir em busca do grande sonho de tornar-se referência da música celta em território nacional. 

“Em meio aos trancos e barrancos, comecei a tentar postar vídeos no Instagram. Sou a primeira violinista transgênero de uma orquestra sinfônica no Brasil, e isso me fez pensar muito. Por isso pretendo estar presente no meu nicho, tanto que futuramente pretendo lançar conteúdos no Spotify relacionados à música celta e torço para que o país reconheça a beleza desse gênero musical. Eu acho que vou ser uma boa surpresa”, declara. 

Ao ser questionada pelo iG Queer se encontrou algum tipo de resistência dentro do ramo musical devido à transgeneridade, Nathália oferece uma resposta bastante otimista, embora não negue que o preconceito é sim uma realidade palpável na vida de pessoas trans em diferentes espaços. 

“Nos nichos que eu costumo ouvir e pesquisar, nunca conheci nenhuma pessoa trans. Apesar disso, sinto que não vou ter muitos problemas. Dentro da música clássica eu fui bem recebida, inclusive há muitas pessoas LGBT na orquestra. Me senti acolhida e sempre recebi um bom tratamento. Sendo assim, acredito que em relação à música não terão tantos obstáculos, já por parte do público brasileiro sei que vai ser mais difícil. Percebo que a maioria não gosta de ver uma pessoa trans evoluir. Acham que temos que viver na solidão, sem amigos, que não servimos para nada. Hoje em dia estamos conseguindo mudar isso: temos pessoas trans no direito, na música e no jornalismo. Contudo, o lado conservador do Brasil sempre nos ataca”, discorre.

Para a musicista, investir na própria carreira e continuar fazendo música independentemente de quaisquer obstáculos é a melhor resposta para todo tipo de repressão enfrentada pela comunidade trans. “É um estilo musical [celta] que transcende a nossa alma. Todo repertório é feito para nos envolver. Quando eu ouvia, lembrava de todos os momentos dolorosos e tudo que eu passava por ser quem eu era”, declara, emocionada. “Acredito que eu e todos os representantes da letra T da sigla estamos trazendo um ar de esperança. Antes de começar toda essa trajetória, já recebia elogios dizendo que eu era a primeira pessoa trans que elas viram tocando violino. Tudo isso mostra a minha presença e a ação de tantos outros artistas diz justamente que não precisamos ter medo de ninguém, que nós podemos sim ocupar todos os espaços e vamos fazer isso. As pessoas precisam nos respeitar”, conclui.

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