Após dois anos sem lançamentos, Quebrada Queer volta aos holofotes com primeiro álbum a caminho e apoio da MTV
Gustavo Dantas
Após dois anos sem lançamentos, Quebrada Queer volta aos holofotes com primeiro álbum a caminho e apoio da MTV

O primeiro videoclipe do coletivo de rap  LGBTQIA+ Quebrada Queer bombou quase do dia para a noite na internet em 2018. Quem faz parte da comunidade e tinha uma conta no Facebook naquele momento sabia do que se tratava: um grupo de pessoas com rimas certeiras (e um figurino impecável) que cantavam sobre as experiências de ser LGBT e viver no Brasil, principalmente na quebrada.

A ideia consagrou o cypher como o primeiro coletivo de rap LGBT do mundo, título que Guigo, Harlley, Boombeat, Apuke, Tchelo Gomez e Murillo Zyess, que integram o grupo, tinham receio de usar. Afinal, seriam mesmo os primeiros a expressar as vivências queer brasileiras por meio do rap? A falta de presença desses tipos de grupo, tanto na América Latina como em todo globo, demonstrou que, possivelmente sim.

Até hoje, todo esse sucesso rendeu ao QQ, como o grupo é apelidado, mais de 5 milhões de streams e 8 milhões de visualizações no YouTube. O grupo conta que não esperava a recepção que recebeu naquela época. O intuito não era exatamente a fama, mas apenas se juntar com alguns amigos para fazer algumas rimas.

“Quando aconteceu, a gente foi jogado no meio do caos. Tínhamos pouca experiência de palco, nunca tinha cantado para um público grande. Fomos aprendendo muito no susto”, explica Murillo Zyess em entrevista ao iG Queer, ao lado de Apuke, Guigo, Harlley e Tchelo.

Com a pandemia do coronavírus, o coletivo precisou paralisar as atividades e ficou dois anos sem lançar novos trabalhos – algo que mudou em novembro de 2021, quando lançaram o single e o videoclipe de “ABC do QQ”.

O grupo explica que a identidade escolar se mostrou importante para que se reapresentassem para os fãs, a indústria e o público. “Analisando as mudanças do mercado, sentimos essa necessidade. Depois de todo esse tempo, eu agora me identifico como uma pessoa não-binária e a Boombeat se identificou como uma travesti”, exemplifica Harlley.

O grupo está se preparando para lançar um novo álbum, que deve apresentar uma mescla da bagagem musical e preferências dos seis integrantes, passando pelo trap, pop internacional e R&B, por exemplo. Apuke, no entanto, aponta que o foco maior deve ser o hip hop, seguindo a identidade sonora dos trabalhos do QQ.

O grupo também ganhou apoio da MTV Brasil neste mês de fevereiro, já que o canal escolheu o cypher para participar do selo Prestatenção, que tem como intuito apresentar as tendências e apostas musicais do Brasil. O Prestatenção coloca vídeos do Quebrada Queer nas redes sociais e durante a programação do MTV Brasil. Essa é a primeira vez que o QQ aparece na televisão.

Para o grupo, se trata de uma oportunidade extremamente importante não apenas para a trajetória do cypher, mas para poder ser espelho para que outras pessoas possam fazer o mesmo: rimar sobre o que é ser uma pessoa queer no Brasil.

“Há mais chances de que o nosso trabalho chegue a mais pessoas que podem se identificar com a gente. Lá atrás, quando a gente assistia, a gente não via LGBT fazendo rap e hip hop. Poder ser espelho e referência para alguém hoje é muito gratificante”, afirma Tchelo. Leia a entrevista completa.

iG Queer: Ao longo de fevereiro, vocês vão marcar presença na MTV, tanto na televisão como nas redes sociais, por conta do Prestatenção. Como é para vocês ter esse apoio?

Tchelo Gomez: É um sonho realizado. Nós todos aqui somos de 20 a 30 e pouquinhos anos (risos). A gente viveu assistindo os clipes na MTV e esperando por aquilo. Muitos já estavam sonhando em trabalhar com música, escrevendo. A gente sonhava em um dia estar ali. É uma oportunidade muito especial.

Guigo: Ver o “emezinho” ali na tela, sabe? (risos)

Tchelo Gomez: (Risos) Exatamente! É muito chique, muito luxo. A gente veio de lugares extremos onde tudo o que acontece desde que a gente nasce é a favor de que nada na nossa vida dê certo. Então conseguir ocupar esse espaço é tudo.

Guigo: Não é qualquer espaço. É um espaço que apresentou milhares de artistas à música, que conseguiu mudar os rumos da música no nosso país e que dita muita coisa. Tem uma importância para o que a gente faz que vai além de estar na tela. Ter a validação desse canal em si é surreal.

Tchelo Gomez: E assim há mais chances de que o nosso trabalho chegue a mais pessoas que podem se identificar com a gente. Lá atrás, quando a gente assistia, a gente não via LGBT fazendo rap e hip hop. Não tinha tanta referência. Poder ser espelho e referência para alguém hoje, em outros lugares do Brasil e do mundo, é muito gratificante e automaticamente se torna uma responsabilidade do caramba.

Apuke: É uma moeda de troca com muita importância como foi para quem era do rap ver o Emicida há anos na MTV. Foi importante tanto para ele como para quem era desse nicho visualizar que tinha como chegar ali. Todo mundo vai sair ganhando.

Harlley: É interesse porque a MTV também é porta de entrada para que essas próximas gerações do coletivo de rap surjam. Às vezes, alguém vê nosso clipe por lá e fala: “Nossa, que legal, vou juntar meus amigos pra fazer isso, a gente gosta tanto de fazer um freestyle”. Para a gente tudo surgiu de uma maneira inesperada. Isso pode acontecer a qualquer momento e estarmos ali pode, sim, ser uma ferramenta que vai ajudar nisso.

Guigo: A MTV está proporcionando isso para essas pessoas junto com a gente.

Murillo Zyess: Pioneira, né? É a primeira vez que a gente está na TV.

iG Queer: Vocês passaram dois anos sem lançar novos trabalhos. Em meio aos lançamentos dos novos singles, como vocês estão se sentindo?

Murillo Zyess: Na correria (risos).

Tchelo Gomez: Tá sendo uma maratona para fazermos tudo que a gente não fez nesses últimos dois anos. É louco porque o mercado e o cenário musical mudaram muito e a gente também enquanto artistas, indivíduos, corpas, corpes e corpos. Então são muitas transformações e ainda há muitos desafios. Quando a gente começou nosso trabalho lá em 2018 era outra coisa, nesses anos mudou muito. Acho que a pandemia fez com que o cenário musical se movimentasse de modo geral. Estamos superanimados.

Estamos na correria de organizar os próximos lançamentos. O álbum é o nosso primeiro trabalho maior que estamos fazendo com muito carinho e cuidado, abordando diversos temas. É um novo Quebrada Queer porque a gente vinha de trazer muito nossas vivências mais focadas nas nossas dores, de modo geral. Agora, queremos ampliar isso.

iG Queer: Há dois meses vocês lançaram “ABC do QQ”. Por que essa música era a aposta certa neste momento?

Harlley: Foi uma escolha muito boa para a gente reiniciar. Estávamos muito tempo sem nos ver, na correria e morando cada um num canto de São Paulo. Depois, analisando as mudanças do mercado, sentimos que precisávamos nos reapresentar como nós estamos agora. Depois de todo esse tempo, eu agora me identifico como uma pessoa não binária e a Boombeat se identificou com uma travesti.

Queríamos muito trazer um pouco desse lance do ensinamento e da temática escolar para que as pessoas prestem atenção também que, além das danças e de coisas para falar, também queremos dar aula de dedicação e talento. “ABC do QQ” foi a reaprestação perfeita para o momento para as pessoas terem um gostinho e saberem que a gente voltou.

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Tchelo Gomez: A escola também é um lugar que traz várias interpretações. Eu acho que é simbólico. Foi bem especial ter voltado com essa estética e essa temática.

iG Queer: Como é que funciona a dinâmica de trabalho artístico do grupo?

Tchelo Gomez: Trazemos misturas e vertentes muito legais, vamos juntando um pouquinho da bagagem que cada um criou nesses últimos dois anos. A gente é muito musical e troca muito, estamos muito antenados a tudo que está rolando no cenário musical, seja no rap ou no pop internacional. Estamos com o radar ligado para entender qual o nosso lugar para analisar tendência versus o que a gente quer passar.

iG Queer A sonoridade do último single de vocês tem funk, trap e hip hop. Os próximos trabalhos vão contar com essa mesma cara ou vão se aprofundar em outros gêneros?

Apuke: Todo trabalho do QQ em si já é um mix, porque a gente não se rotula dentro de nenhum ritmo específico. Cada um tem uma referência e isso agrega de uma forma positiva, a gente se permite transitar um pouquinho dentro de cada coisa. Mas acho que nesses próximos trabalhos o hip hop fica mais evidente, mas queremos trazer outras identidades. Nós somos seis pessoas completamente diferentes, então gostamos de pegar um pouco de cada coisa, desde a identidade visual até sonora, e transformar isso em uma originalidade do Quebrada. Na produção, gosto da liberdade de poder brincar isso e vamos abusar mais dessas características.

iG Queer: Ao longo desses dois anos, como a jornada pessoal de cada um de vocês mudou e como isso deve agregar na nova fase?

Murillo Zyess: Acredito que durante a pandemia, a gente teve muito tempo para se conhecer enquanto indivíduo. Acho que a gente amadureceu com todas as experiências que a gente teve, a gente pôde colocar na balança as coisas ruins e boas que a gente poderia levar para os próximos trabalhos. Aproveitamos para estudar e ouvir coisas novas, buscar outras referências. Eu mesmo, antes, focava muito no rap, e aí depois desse tempo acabei conhecendo outras vertentes, como o R&B. A gente acabou evoluindo pessoalmente e artisticamente.

iG Queer: Quando vocês lançaram Quebrada Queer, vocês estouraram e deixaram o público de queixo caído. Como foi para vocês ter a recepção que tiveram naquele momento?

Harlley: A gente não imaginava que teria essa recepção assim, de cara. Felizmente, estávamos em seis para dividir todas as emoções acontecendo. Sinto que hoje a gente tá mais preparada, realmente fizemos várias coisas interessantes desde então. Sinto que agora a gente está mais madura para poder lidar com a com os processos criativos e com a indústria.

Murillo Zyess: Quando aconteceu, a gente foi jogado no meio do caos. Tínhamos pouca experiência de palco, nunca tinha cantado para um público grande. Fomos aprendendo muito no susto. E aí tivemos essa pausa para poder digerir e absorver tudo aquilo para poder ter de volta o nosso caminho.

iG Queer: O que simboliza para vocês ser o primeiro coletivo LGBTQIA+ de rap do mundo?

Harlley: No começo a gente ainda tinha uma resistência de reafirmar isso. Pensamos: “A gente pode falar isso mesmo? Posso encher a boca para falar?”.

Murillo Zyess: A gente é modesto (risos).

Harlley: Com o passar do tempo, vimos que, infelizmente, ainda não surgiram outros. Tivemos a necessidade de usar esse título para convidar que outros também surjam em outras gerações. A gente está começando uma história agora que espero que seja eterna, que a cada dez anos surja um novo coletivo de rap que comente sobre o momento atual, porque o rap é sobre falar como está sendo o mundo para nós.

Eu imagino que surjam novas pessoas LGBTs falando sobre como vai ser o momento deles lá na frente. Imagina estar bem velhinho olhando isso e falando sobre outra realidade. Então, passamos a dizer isso porque ainda não existem. Precisamos jogar essa mensagem e fazer com que novos coletivos também surjam.

Apuke: O sentimento é muito especial, mas também é muita responsabilidade. São duas coisas que andam juntas porque as pessoas vão, de alguma forma, se espelhar. É ônus e bônus, não tem como sair disso. Mas considero especial porque fazer algo de forma pioneira é um sentimento único.

Murillo Zyess: Mais especial ainda é ter criado o QQ de uma maneira totalmente despretensiosa, sabe? De amigos que estavam ali e queriam fazer a coisa acontecer por conta do do boom todo que deu. É gratificante saber que a gente está na história do rap nacional.

Tchelo Gomez: E que venham muitos outros! Pra ontem! Que outros coletivos possam ocupar esses espaços. Estamos dentro da nossa bolha reforçando esse estilo e trazendo as vivências para além dela. Tem o lado tanto das pessoas que se identificam quanto das que precisam ouvir e normalizar esses corpos e essas vivências na sociedade. Porque de minoria a gente não tem nada.

iG Queer: Então para vocês não houve nenhuma mudança desde que vocês surgiram?

Guigo: Na real, a mudança aconteceu, mas em um outro sentido. Esse espaço continua bastante fechado, ainda é muito difícil conseguir atravessar essa fronteira que existe entre o que a gente faz e o que já é normal. Não se enxergava e nem se sentia representatividade e, hoje, a gente consegue citar dez, vinte nomes tranquilamente de pessoas LGBTQIA+ nesse espaço.

Murillo Zyess: Hoje já tem um movimento do queer rap acontecendo como expressão. A gente vê isso acontecer. As oportunidades são bem rasas e poucas, mas há artista fazendo, estamos conseguindo fazer essa roda girar.

Apuke: São pontos específicos que melhoraram e não melhoraram. Se a gente for considerar pontos específicos na prática, acho que esse cenário quase não mudou. Em festivais e festas, por exemplo, tem uma proporção muito menor. Acho que a gente consegue alcançar mais pessoas e ter mais visibilidade dentre aqueles que se interessam. A gente não tá estampado em todas as mídias ou de fácil acesso pra todo mundo ver.

Murillo Ziess: É muito mais de quem tem interesse vai atrás.

Apuke: Exatamente. Por exemplo, quando um MC homem estoura com uma música, no dia seguinte ele está em quase todos os veículos e line-ups, em tudo. A gente, não.

Guigo: Mas há um lado bom de que isso denuncia e deixa mais em evidência o quanto existe machismo e LGBTQIA+fobia no ramo. Não tem mais como se cegar para o fato de que a gente vê duzentos line-ups de duzentos festivais com duzentos artistas, e você não enxerga nenhum LGBTQIA+ ali dentro.

As desculpas começam a não se sustentar, porque antes se diziam que não conheciam ou que não tinham. Hoje em dia não tem mais como, até porque esses artistas inseridos no rap e que são pessoas LGBTQIA+, na maioria das vezes, apresenta o que 90% desses duzentos nomes em um line-up não conseguem apresentar, que são os números que tanto se argumenta. Todos eles têm competência e talento. Cada vez que essa barreira é imposta, mais se evidencia o preconceito.

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** Camila Cetrone é formada em jornalismo. Desde 2020, é repórter do iG e tem experiência em coberturas sobre cultura, entretenimento, saúde, turismo, política, comportamento e diversidade; com ênfase em direitos das mulheres e LGBTQIA+, na qual está inserida como bissexual. É autora do livro-reportagem “Manda as Bicha Descer”, resultado da apuração de um ano na casa de acolhida LGBT Casa 1, no centro de São Paulo. Coleciona livros, vinis e estuda cinema nas horas vagas. Ama contar e ouvir histórias, cantar mal no karaokê e memes autodepreciativos (jura que faz terapia).

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