Na foto, última edição do bloco Meu Santo É Pop, em São Paulo, em 2020
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Na foto, última edição do bloco Meu Santo É Pop, em São Paulo, em 2020

O Carnaval de rua não vai acontecer pelo segundo ano consecutivo. Foliões, blocos e trabalhadores com atividades focadas na festa tinham esperanças de que o evento se mantivesse no calendário brasileiro. No entanto, o surgimento da variante da Covid-19 Ômicron, que é mais transmissível, fez com que as cidades brasileiras adiassem o Carnaval mais uma vez.

A ausência da festa por tanto tempo é sentida com pesar não só para quem vai para se divertir, mas também por parte da organização, artistas e funcionários de blocos de rua. Fernando Magrin, organizador do Bloco Minhoqueens e artista por trás da drag queen Mama Darling, aponta que o bloco fará um evento fechado seguindo todos os protocolos de segurança. No entanto, assume que a atmosfera não é a mesma. "Mesmo com as festas fechadas, não teremos aquele clima de bloco de rua, que é o clima do Carnaval que sentimos falta", afirma.

Zé Ed, artista que participa do Bloco Tarado Ni Você, de São Paulo, afirma que o segundo cancelamento do Carnaval de rua representa "um vazio tremendo" e "uma falta imensurável". “Além de toda a liberdade que uma festa na rua propõe, o Carnaval também liberta as vozes e modos de vida. A manifestação política em alegria que o Carnaval permite também está fazendo muita falta”.

Guigga, que faz parte do Bloco Me Leva, na Bahia, compartilha do mesmo pensamento. "A falta que o Carnaval de rua faz para nós na Bahia é enorme. A festa tem o poder de nos conectar com uma força em comum, que é a celebração coletiva de nossa cultura", afirma.

"O Carnaval para mim sempre foi um rito muito importante. É um momento de encontro e convergência de muitas forças, uma catarse do corpo, um encontro com a diversidade e com a contradição. Então, ficar sem Carnaval, antes de tudo, é como ser privado de um ritual de cura importante para começar o ano, e sinto que para muites brasileires é um pouco assim", aponta Yantó, artista que integra o Bloco Explode Coração, de São Paulo.

“O Carnaval também representa um momento em que nossos tabus e limites ficam mais porosos, maleáveis, e temos a oportunidade de trocar afeto com pessoas que, em outros contextos, talvez não trocaríamos. Então, com tanto luto a ser processado e num momento tão polarizado como esse, a ausência do Carnaval deixa essa lacuna”, continua o artista.

Esse momento de encontro e libertação proporcionado pela festa do Carnaval de rua é um sentimento geral. No entanto, para a população  LGBTQIA+ , a necessidade dessa liberdade é ainda mais forte.

"Por sermos um bloco LGBTQIA+, recebemos mensagens de pessoas que puderam quebrar seus próprios tabus de aceitação durante nossos desfiles. Blocos LGBTQIA+, como o nosso, trazem o sentimento de pertencimento para uma população tão vulnerável que sofre o ano todo e esconde-se por não poder se mostrar como são em um país tão LGBTfóbico", afirma a equipe de organização do Meu Santo É Pop, o primeiro bloco LGBTQIA+ da cidade de São Paulo.

Fernando aponta ainda que blocos LGBTs perpeturam o clima de acolhimento que se estende também ao público cis hétero, desde que todas as pessoas que queiram participar sejam respeitosas. "Queremos que todes possam vir sendo quem são e sentir muito orgulho por estarmos ocupando as ruas e mostrando para a sociedade que somos parte integrante e que só queremos o respeito que nos é devido", diz.

"Como bloco LGBTQIA+, acreditamos que precisamos ocupar cada vez mais os espaços que nos são negados, e isso inclui as ruas. Levar nossa comunidade às ruas em união é uma forma de lutar e nos mostrar presentes nos lugares que desejamos estar", acrescenta a equipe do Meu Santo É Pop.

Yantó comenta ainda que faz parte do papel fundamental dos blocos que esse encontro de todos os tipos de corpos seja uma oportunidade de conscientização política para diversas pautas além da diversidade sexual e de gênero, como a luta antirracista e a reparação ao genocídio contra povos indígenas, por exemplo.

Guigga concorda: "A visibilidade que as culturas LGBTQIA+ têm recebido nos últimos anos, especialmente nas festividades de rua, abre caminhos para o reconhecimento social de nossas existências, possibilitando que artistas e projetos liderados por pessoas LGBTQIA+ ocupem espaços importantes na cena. Este reconhecimento caminha lado a lado a uma realidade política que nos violenta, quando direitos conquistados nos últimos anos são ameaçados por um governo que agride nossas existências, num país que mais mata LGBTQIA+ no mundo".

Lacuna financeira e emocional

Além da musicalidade e da libertação, Guigga ressalta que o Carnaval é um forte fomentador da cultura e da economia do estado da Bahia. Por esse motivo, a não realização da festa impacta esses setores e afeta artistas e profissionais que dependem do Carnaval para sobreviver. De acordo com dados de 2020, último ano em que o evento aconteceu, o Brasil inteiro deve deixar de movimentar cerca de R$ 8 bilhões com o adiamento.

"Para muitos, a falta da festa representa ausência de trabalho e a maneira como o Carnaval é sentido por estas pessoas certamente se difere dos foliões que vivem o Carnaval apenas como um momento de diversão. Sem o devido suporte de políticas públicas eficazes, muitos profissionais se redirecionam para outras atividades no mercado de trabalho em busca de oportunidades de sobrevivência", aponta Guigga.

O artista explica ainda que, assim como outros grupos considerados de porte menor, o Bloco Me Leva sofreu os prejuízos das medidas de contenção e o impacto da pandemia. "A partir de 2021, fizemos alguns de nossos ensaios de Carnaval sem qualquer incentivo público ou privado e nosso afã por realizar estas edições acabou nos trazendo mais dificuldades, já que o público presente não deu conta de cobrir os custos dos eventos", lembra.

Yantó conta que o Bloco Explode Coração decidiu esperar até a onda da Ômicron diminuir para retomar os eventos e acrescenta que os adiamentos e cancelamentos só intensificam o clima de instabilidade e incerteza. "Fazer Carnaval dá trabalho e custa muito dinheiro. Leva-se tempo e as pessoas nem têm muita ideia disso. São quase seis meses de preparação só para o desfile oficial", afirma.

Os prejuízos financeiros do Explode Coração só não foram tão grandes porque a equipe do bloco ainda não havia se comprometido com serviços como aluguel de trio elétrico e infraestrutura de segurança, por exemplo. "Mas há um grande prejuízo social e emocional porque, antes de tudo, a gente faz essa festa pelo amor ao encontro, à arte, à música, e estamos privados disso desde o início da pandemia".

O artista continua afirmando que o Carnaval é uma engrenagem importante para a economia da cultura. "Quando digo economia não falo apenas da financeira, mais fácil de medir e quantificar, mas de uma porção de bens materiais, simbólicos, culturais e sociais que são gerados e multiplicados com o Carnaval. Então, dois anos sem a festa gera um déficit gigantesco para essa economia, para nossos afetos e nossas pequenas curas", afirma.

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"A pandemia nos impactou muito, porque até mesmo as festas que fazemos durante o ano para arrecadar dinheiro para o Carnaval não aconteceram", diz Fernando. O Minhoqueens retomou as festas fechadas com acesso apenas para vacinados, além de redução de capacidade, uso de máscaras e controle rígido das medidas sanitárias.

O organizador do bloco destaca ainda a dificuldade que artistas drags, que são destaque no Minhoqueens, sofreram ao longo desse período. "A pandemia foi cruel com muitas drags que viviam de shows e àquelas confinadas em casa com famílias que não aceitam um filho ou filha drag queen ou drag king. Nesse aspecto, o impacto foi muito maior para a comunidade LGBTQIA+", explica.

Outro obstáculo ainda mais gritante para LGBTs está relacionado ao patrocínio. “São poucas marcas que querem se associar com nosso público, apesar do crescimento. Ainda somos vulneráveis nas ruas”, afirma o Meu Santo É Pop. “Apesar disso, temos o apoio da nossa comunidade, que é para quem fazemos a festa. Sabemos que, quando o Carnaval voltar, contaremos com o apoio de todes”, acrescenta o bloco.

Diante da situação atípica, Guigga afirma que o Bloco Me Leva tem se fortalecido pela atuação de pessoas LGBTQIA+ presentes na equipe e na direção. "Para além dos festejos de rua, temos realizado ações de formação em meio a espaços alternativos que busquem dialogar com as nossas realidades e existências, abrindo espaço para novas possibilidades de vivenciar o Carnaval e discutir os caminhos para sua realização pós-pandemia".

Cancelamento é prudente, mas os critérios não

Acervo pessoal
"A pandemia foi cruel com muitas drags que viviam de shows e àquelas confinadas em casa com famílias que não aceitam a arte. Nesse aspecto, o impacto foi muito maior para a comunidade LGBTQIA+", diz Fernando Magrim, artista que dá vida à drag queen Mama Darling

A equipe da organização do Meu Santo É Pop afirma que é de extrema importância acompanhar com atenção e agir diante da disseminação da Covid-19, bem como o aumento do número de mortos. No entanto, o bloco afirma que o cancelamento do Carnaval foi feito de forma seletiva.

"Festas fechadas, igrejas e jogos de futebol não foram proibidas, não pedem passaporte de vacina e promovem aglomerações", aponta a equipe por trás do bloco. "O Carnaval democrático, de todos, não existirá mais um ano, enquanto clubes que cobram caro pelo evento seguirão fazendo festas", acrescenta.

“Por um lado, acredito que cancelar foi a decisão mais responsável. Por outro, me pergunto se faz sentido só o Carnaval ser cancelado, enquanto festas gigantescas, eventos, cultos e restaurantes continuam funcionando da mesma maneira”, continua Yantó.

Guigga reitera que existem outras aglomerações sendo provadas sob o aval do poder público ao permitir que grandes produtores e mercados culturais organizem festivais privados com controle de público e poucas medidas de segurança. Para o artista, o cuidado com o público é maior por parte dos pequenos produtores, que são as maiores vítimas das políticas públicas sem eficiência ou as de caráter emergencial, que são passageiras.

“Isso reforça as contradições que sempre demarcaram a realização do Carnaval, além de evidenciar a importância das políticas públicas de cultura para atender às demandas de setores produtivos que não se comunicam com as grandes empresas e que dependem do poder público”, aponta.

“É preciso compreender que o Carnaval vai além de uma simples ocupação das ruas. O espírito de liberdade e de festividade que demarca a festa fica fragilizado em meio ao atual contexto, não sendo possível garantir esta ocupação do espaço público de forma segura a todes”, conclui.

Esperança para o Carnaval 2023

O Meu Santo É Pop já tem planos traçados para o Carnaval do próximo ano, mas reforçam que é necessário que a captação de recursos dê certo para colocar o bloco na rua. Já Fernando, do Minhoqueens, aponta que o sucesso da festa na rua vai depender da progressão e do cumprimento das medidas de segurança sanitária. "Esperamos que tenhamos uma população 100% vacinada e que o passaporte vacinal seja uma exigência para que assim possamos ter a nossa grande festa em 2023".

Yantó afirma que os planos para o próximo ano são necessários, assim como cobrar o poder público para que haja mais responsabilidade com os blocos e com a população que depende do retorno financeiro do Carnaval.

"Precisamos de planos A, B e C, de iniciativas que dêem sustentação a toda essa rede de profissionais que são responsáveis por fazer a festa acontecer para que, independentemente do cenário da pandemia, tenhamos condições de fazer um Carnaval seguro no ano que vem", opina.

Guigga afirma que esses questionamentos já estavam em curso antes da pandemia do coronavírus na Bahia. "O Carnaval já vinha sendo questionado quanto à sua organização, ocupação do espaço público e garantia de oportunidades para novos e pequenos produtores".

O artista aponta que, com o segundo ano de adiamento, esse contexto deve fomentar mudanças e adaptações que devem ser percebidas nos anos seguintes. Guigga não sabe dizer como será a próxima união da rua ao Carnaval, mas que definitivamente ele será diferente do que era nos últimos anos.

"Novos atores, novas demandas, novos artistas e manifestações culturais ocuparão as ruas, criando visibilidades em meio aos seus nichos de formação. Espero que possamos vivenciar uma festa mais democrática, em que todes sejam respeitades em suas existências", deseja.

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** Camila Cetrone é formada em jornalismo. Desde 2020, é repórter do iG e tem experiência em coberturas sobre cultura, entretenimento, saúde, turismo, política, comportamento e diversidade; com ênfase em direitos das mulheres e LGBTQIA+, na qual está inserida como bissexual. É autora do livro-reportagem “Manda as Bicha Descer”, resultado da apuração de um ano na casa de acolhida LGBT Casa 1, no centro de São Paulo. Coleciona livros, vinis e estuda cinema nas horas vagas. Ama contar e ouvir histórias, cantar mal no karaokê e memes autodepreciativos (jura que faz terapia).

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