A Bienal do Livro acontece entre os dias 3 e 12 de dezembro, no Rio de Janeiro. Este ano, ocorrerá de forma híbrida, contando com atividade presenciais que também poderão ser assistidas em tempo real pelo site . Na edição atual, as vozes LGBTQIAP+ ganham destaque, já que o festival terá duas mesas que irão abordar temáticas como identidade de gênero, preconceito e sexualidade. A representatividade no evento recebe relevância principalmente por conta da tentativa de censura que ocorreu na edição anterior.
Em 2019, Marcelo Crivella, então prefeito do Rio de Janeiro, tentou realizar uma barreira aos livros LGBTQIA+ que estavam sendo comercializados no evento. A atitude ocorreu após o político desaprovar uma das páginas da HQ “Vingadores, A Cruzada das Crianças”, que mostrava dois homens se beijando. Na época, Crivella afirmou que publicações como esta deveriam ser embaladas em plástico preto lacrado, com avisos sobre o conteúdo. Ele chegou a enviar fiscais para confiscar os livros, no entanto, a atitude foi vetada pelo Tribunal de Justiça.
A primeira mesa sobre diversidade ocorrerá no dia 9 de dezembro, às 19h, intitulada “Os Novos Rumos da Literatura LGBTQIAP+ Young Adult”, que discutirá a importância da representatividade na literatura em ambientes juvenis. Entre os autores convidados estão: Elayne Baeta, Clara Alves, Pedro Rhuas, Deko Lipe e Juan Jullian.
No dia 12 de dezembro , às 19h, a mesa "Vozes LGBTQIAP+: O que vem pela frente?" finalizará o evento. Nela, estará presente Amiel Vieira, sociólogo intersexo e transmasculino; Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp; Letícia Nascimento, professora da área de Gênero e Educação; Samuel Gomes, escritor, palestrante e eleito Top Voices 2019 pelo LinkedIn; e Natalia Borges Polesso, autora do recém lançado “A Extinção das Abelhas”, da editora Cia das Letras.
O mediador da última mesa será Felipe Cabral, autor e roteirista que já escreveu roteiros para o Multishow e para a Globo, e acaba de lançar o livro “O Primeiro Beijo de Romeu”, com protagonismo LGBTQIA+. Ao IG Queer, ele contou como a representatividade na literatura altera a perspectiva dos leitores. “É muito complicado para uma pessoa LGBTQIA+, ainda mais na adolescência, construir uma imagem positiva dela mesma. A Igreja diz que somos pecadores, nas redes sociais vemos mensagens de ódio a todo instante, na escola o bullying corre solto, então, parece que o tempo todo que somos diferentes, que nunca seremos aceitos e que nossa vida será muito difícil”, explica.
Felipe ainda completa que os livros são uma forma dos jovens encontrarem apoio emocional. Além disso, para pessoas de fora da comunidade, pode ser uma maneira de diminuir a intolerância e gerar empatia. “São muitos estigmas que vão nos sufocando e nos deixando inseguros. Não à toa, o índice de suicídio entre jovens LGBTQIA+ é maior do que entre jovens heterossexuais. A pressão é real. A literatura pode nos ajudar porque ao ler um livro com um personagem gay ou lésbica ou bi ou trans, sendo você mesmo uma pessoa LGBT, diminui a sensação de que você está sozinho no mundo. Quando a gente encontra uma história que gera uma identificação, mexe em algo muito profundo dentro da gente. Nós nos sentimos pertencentes ao mundo, conseguimos ter mais esperança, conseguimos refletir mais sobre quem somos. E falando de jovens que não são LGBTs, se eles também lerem nossas histórias, certamente serão adultos sem preconceitos, tornando nossa sociedade um espaço cada vez mais diverso e democrático”, pontua.
O autor estava presente na Bienal de 2019 e comenta que fez parte das manifestações contra a censura. De acordo com ele, o ato do prefeito foi antidemocrático e homofóbico. “Quando eu me lembro de tudo que aconteceu fico emocionado com a resistência que fizemos, com aquelas pessoas marchando com seus livros LGBTs no alto, protestando contra a censura, a favor das nossas histórias e das nossas vidas. Para mim, era impensável que a censura pudesse voltar, mas ela voltou e foi um alerta de que nossa democracia ainda sofreria muitos ataques a partir dali. Infelizmente foi o que aconteceu até hoje. Um constante ataque à comunidade LGBTQIA+ e uma obsessão doentia contra nossos afetos. Basta ver que agora, em 2021, o beijo do filho do Superman em outro rapaz, dentro de um quadrinho que nem mesmo foi lançado ainda, gerou mais polêmica entre conservadores LGBTfóbicos”, diz.
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Por outro lado, o autor assegura que a tentativa de censura deu uma visibilidade maior para as obras LGBTQIA+. “Por dados levantados após a Bienal do Livro do Rio de 2019, eu diria que o Crivella alavancou as vendas dos livros com protagonismo e/ou autoria LGBTQIA+. As vendas dessas obras, de fato, aumentaram muito e eu acredito que aquele movimento retrógrado acendeu um alerta para as grandes editoras, que voltaram seus olhos para este público consumidor e para seus próprios catálogos. Houve um momento de perceber o quão deficitários esses catálogos ainda eram em questão de representatividade LGBTQIA+”, explica.
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“Para toda ação há uma reação. Com os avanços nos direitos da nossa comunidade, os conservadores ficaram enlouquecidos e reagiram com tudo, elegendo até mesmo um homofóbico assumido para presidente da República e um pastor fundamentalista para prefeito do Rio. Eles queriam interromper nossos avanços. Mas quando o Crivella censurou aquele quadrinho, nós também reagimos com tudo e eu sinto que estamos nesse momento exaustos e dispostos a lutar com mais força ainda. Muitos livros nacionais de autores LGBTQIA+ estão sendo lançados e eu sinto que o ritmo de publicações só vai aumentar cada vez mais”, destaca.
Natalia Polesso
A escritora Natalia Polesso revela que não obteve nenhuma referência LGBTQIA+ durante a infância e adolescência, algo que a motivou a seguir na carreira literária. “Me lembro, mais tardiamente, da novela Torre de Babel, que tinha um casal de lésbicas e que me permitiu abrir uma conversa com uma colega minha de escola, na época. Eu disse que talvez fosse como as mulheres da novela. E ela me disse que talvez eu não tivesse tido uma boa experiência com um homem. Não era verdade. Algum tempo depois, entrei na faculdade de Letras e conheci os livros de Caio Fernando Abreu e li ‘Orlando’, de Virgínia Woolf, eu já tinha 17 ou 18 anos, mas foi tão importante me ver, de algum modo, retratada ali, porque até os 17 anos, eu não tinha falado nada para mais ninguém sobre mim. E eu sei que tem gente que demora muito mais tempo”, afirma.
Natalia esclarece que a representatividade deu um salto espetacular nos últimos anos, mas a realidade está longe de ser a ideal. “Eu acho que tem melhorado muito, mas falta tanto ainda. No meu pós-doutorado, mapeei a literatura de mulheres e pessoas cis ou trans que se identificavam como lésbicas ou sapatonas. Comecei com 25 autoras e terminei com 583, sendo que 284 brasileiras e contemporâneas. Acho que isso de termos mais autoras e autores da comunidade publicando seus livros conta para a representatividade na literatura. Se essa diversidade autoral, certamente teremos uma variedade de personagens, mais chance de representações plurais”, elucida.
Renan Quintanilha
Renan Quinalha é autor do livro “Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT", publicado pela Cia das Letras em 2021. Para ele, a literatura é capaz de informar, sensibilizar e consegue combater estereótipos. Por outro lado, pode também contribuir para o aumento do preconceito, com obras que representam personagens caricatos.
“A literatura colabora num processo de humanização de pessoas que são desumanizadas por conta do preconceito e da discriminação, como as pessoas trans. No entanto, também a literatura pode reforçar estereótipos e alimentar estigmas, incentivando formas de violência contra pessoas trans”, diz.
“Historicamente, na literatura e em outras linguagens artísticas, prevaleceram as representações de pessoas trans como ‘falsas’, ‘mentirosas’, ‘espalhafatosas’, ‘criminosas’ e assim por diante. Apenas nos últimos anos é que temos visto um crescimento no reconhecimento de obras e vozes literárias trans, graças à atuação de entidades como ASTRAL e ANTRA, que lutaram e seguem lutando pelos direitos das pessoas trans”, salienta.
Vinícius Grossos
Vinícius Grossos é um dos autores do livro “Eu Chamo de Amor", antologia de contos da editora Melhoramentos. Ele declara que é fundamental desmistificar os livros LGBTQIAP+ como um gênero. “Nós escrevemos romance, fantasia, poesias, policial, terror. Estamos inseridos em vários nichos. Nossos livros são bons, nossas histórias são incríveis. A gente só coloca a diversidade nos personagens, diversidade essa que a gente vê na vida", diz.
No mais, ele alega que, apesar do público encarar com maior facilidade temáticas LGBTQIA+, ainda existem dificuldades para os profissionais. “Atualmente, há uma abertura bem maior. Mas acho que a grande mídia, as livrarias, as editoras ainda encaram os livros com protagonistas LGBTQIAP+ como um risco. Então todas essas etapas acabam nos afastando do grande público. Porém, a internet está aí para ajudar com que laços sejam criados de uma forma muito mais simples”, explica.