Por mais que 54% da população brasileira seja formada por pessoas negras, a lacuna da representação dessas pessoas nos espaços midiáticos ainda é gritante. Ao se tratar de pessoas LGBTQIA+, esse protagonismo é ainda menor. No entanto, mesmo que longe do ideal, os últimos anos têm sido mais otimistas, já que pessoas negras estão conseguindo tomar o centro de suas próprias narrativas, ampliando os olhares da sociedade para a diversidade das experiências da negritude.
AD Junior, head de marketin da multiplataforma de entretenimento focada em cultura afrourbana Trace Brasil, Alberto Pereira Jr., diretor de conteúdo e produção da agência, e João Luiz Pedrosa, professor e apresentador, estão inseridos em um cenário promissor nesse sentido. Gays e negros, os três apresentam o Trace Trends, que destacar a cultura afrourbana brasileira e a presença negra em diversas frentes. O programa, que está em sua quarta temporada, é exibido às sextas-feiras no Multishow e tem episódios lançados às quartas-feiras no Globoplay.
No ar desde 2019, o programa passou a ser exibido inicialmente pela Rede TV! e tomou rumos maiores. Desde então, nomes variados como Péricles, Mano Brown, Jup do Bairro, Djamila Ribeiro e David Miranda, para citar alguns, marcaram presença. Além de Alberto, João e AD, que apresentam e têm quadros dentro do programa, também estão na apresentação Magá Moura, Xan Ravielli e Babu Santana.
João Luiz conta que em uma televisão em que a persença central ainda é majoritariamente branca, o Trace Trends vem como um frescor por colocar pessoas negras em seus devido lugar: em todos os espaços possíveis. "Se a gente for pegar a nossa história na comunicação do Brasil e as experiências que foram televisionadas, a gente se encontra em dois momentos: em papéis coadjuvantes nas novelas e nos noticiários, por tragédia", diz.
Assuntos como racismo e diversidade, apesar de importantes, ficam de escanteio. O foco são nas narrativas, caminhos e saberes das pessoas negras. "É claro que parte do depoimento de ascensão de um entrevistado ou outro cruza com o racismo, porque nossas histórias se cruzam o tempo inteiro com o ele. Mas a gente tem outras histórias para contar", explica Alberto.
AD explica que mesmo com um tom que ele chama de "soft play", é possível convidar as pessoas para assistirem pessoas negras narrando suas histórias e experiências; e isso pode ser algo tão empoderador quanto "um grande grito".
"A gente está na periferia enquanto pessoas gays e negras, não estamos no bairro mais caro, então temos um olhar que tenta agregar um monte de coisa no que a gente quer falar e trazer novas visões. O legal é que estamos falando de forma muito natural. A gente está trazendo a normalização das vivências de pessoas diversas dentro da televisão", pontua AD.
Na visão dos três, vive-se um momento em que, pela primeira vez, a sociedade brasileiras (ou melhor, a sociedade brasileira branca) está interessada em conhecer quem são as pessoas negras e o que elas podem fazer. E já era tempo.
iG Queer: O Trace Trends está na sua quarta temporada e tem chamado atenção de diversas pessoas no Brasil todo. Como vocês se sentem ao verem o projeto ganhando essa proporção?
Alberto Pereira Jr.: Considerando que mais de 50% da população Brasileira é negra, é uma felicidade. Não é em todas as emissoras ou plataformas de streaming que a gente vê essa representatividade na frente ou atrás das telas, e ainda mais falando sobre outros assuntos a não ser diversidade e racismo. É claro que parte do depoimento de ascensão de um entrevistado ou outro cruza com o racismo, porque nossas histórias se cruzam o tempo inteiro com o ele. Mas a gente tem outras histórias para contar. Eu ainda acho que são passos de formiga, mas a Trace tem dois anos. Se a gente for olhar o quanto de tempo que tem gente negra na TV no Brasil, são passos de formiga que são passos de elefante. A gente chegou com esse pé na porta para trazer essas narrativas.
João Luiz Pedrosa: Eu fico muito contente por fazer parte disso, principalmente com as figuras que estão comigo nessa trajetória que estou construindo agora. Eu fico pensando: em que momento da nossa história as pessoas negras tiveram visibilidade na mídia? Se a gente for pegar a nossa história na comunicação do Brasil e as experiências que foram televisionadas, a gente se encontra em dois momentos. Um deles é nos papéis super coadjuvantes das novelas, como as empregadas domésticas, o segurança e o jardineiro das novelas de Manoel Carlos. Elas não retratam nem 1% do que é a realidade da vida do brasileiro. Ou estamos nos noticiários por tragédia. O que vejo é que, agora, estamos conseguindo ampliar essa discussão.
AD Junior: Pela primeira vez na nossa sociedade brasileira, as pessoas estão começando a prestar atenção nas narrativas negras para além da denúncia e do racismo. Estão começando a olhar para as potencialidades das pessoas negras, e o programa está falando do que a gente está fazendo de melhor. Tem muita coisa ruim acontecendo com a gente, mas ao mesmo tempo a gente tá brilhantemente sobrevivendo a tudo isso. Nós estamos em tantos lugares, criando tantas narrativas, participando de tanta coisa. Acho que o Trace Trends veio também para quebrar paradigmas de uma sociedade que achava que a gente não era capaz de produzir se não tivesse a tutela de alguém que está chancelado pelo mercado. A gente está chancelando pela primeira vez uma narrativa construída sem nenhum viés do Brasil branco que acha que é dono de toda narrativa.
Queer: O programa também fala sobre pessoas negras LGBTQIA+ de forma muito diversa, seja ao buscar pessoas de diversas áreas de atuação dessas pessoas, seja por retratar diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Para vocês, qual a relevância de inserir essas pessoas nesse espaço?
Alberto: Enquanto diretor e roteirista do programa, eu tenho o compromisso de sempre trazer diversidade e outros olhares, porque todo mundo é diferente e é isso que nos une. Se a gente entender e respeitar as diferenças, aí a gente vai crescer enquanto sociedade. Além de nós três, que somos homens gays, a Xan Ravelli é uma mulher bissexual. Eu sou uma pessoa que vive com HIV há doze anos, e nunca vi uma pessoa com HIV apresentando nada. Eu não quero e não devo ser o único. Além disso, a base da Trace é em São Paulo, mas a gente não podia reproduzir o Brasil como a TV aberta faz: a partir do eixo Rio e São Paulo. O Brasil tem negros em todos os lugares, então precisamos pensar em assuntos que pensem essa complexidade. Queremos atrair o maior número possível de pessoas e mostrar que as barreiras criadas para nos separar não deveriam existir, porque todo mundo é gente.
João: Gosto de pensar que o programa está celebrando as nossas conquistas, e não apenas falando de nossas dores o tempo todo. Celebrar as figuras e falar sobre quem nem sempre está ganhando visibilidade está dentro da essência. Por exemplo, muita gente conhece artistas nos quadros musicais que não estão no mainstream, o que é muito legal porque nas letras a gente vê um monte de gente contando suas histórias. Eu acho que a gente tem que fazer um programa como se ele fosse realmente uma grande conversa. Como se todo mundo tivesse trocando experiências, um super encontrão.
AD: E isso faz um soft play também. O meu quadro é sobre cultura urbana, e eu vou falar de questões que agregam um monte de assuntos. A gente está na periferia enquanto pessoas gays e negras, não estamos no bairro mais caro, então temos um olhar que tenta agregar um monte de coisa no que a gente quer falar e trazer novas visões. O legal é que estamos falando de forma muito natural. A gente está trazendo a normalização das vivências de pessoas diversas dentro da televisão sem fazer um grande grito, mas de uma forma muito orgânica. É legal ver que até pessoas mais velhas estão curtindo o programa.
Queer: Acham que esse público mais velho veio aí para provar que é possível também criar um diálogo com gerações mais antigas?
AD: Com certeza! Estamos mostrando que se pode interpretar a sexualidade de uma forma diferente, mas não é algo que ninguém conheça. A minha vó conhece “viado” desde a década de trinta, só que tratava de outra forma. Mas minha vó não vai entender o que é gay? Pelo amor de Deus!
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Alberto: Acredito que é sobre propor diálogo. Ao fazer isso, as pessoas entendem que somos um país diverso. Queremos falar com o tiktoker de 13, anos mas também com a dona de casa que tá lá passando a roupa e, de repente, vai assistir entrevista com o Péricles ou com a Ludmilla; mas também vai descobrir que tem uma clínica médica no Rio de Janeiro que está fazendo um trabalho incrível. É esse mix de coisas.
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Queer: Vocês acreditam que o modelo que vocês tão criando, tanto com o Trace Trends como com a Trace em geral, acabou virando um exemplo do que fazer no mercado de comunicação e como representar devidamente pessoas negras e diversas?
João: Eu acho que sim. Afinal, em que momento da vida você viu um programa apresentado somente por pessoas negras? Você não vê isso. Mesmo assim, acho que a gente tem muito para caminhar ainda, vai ser um pouco difícil. Não queria ser pessimista, mas pensando muito na realidade do que é o nosso país hoje, acho que é um caminho longo. Há uma realidade que ainda nos nega.
Alberto: Na verdade não nos negam só agora, né? Se hoje a gente está como a gente está é um reflexo dos últimos 521 anos.
João: A gente tá aí esse tempo todo e quantos nós somos na TV? Não somos muitos. Queria que fosse bem mais rápido e que isso pudesse servir de exemplo. Por exemplo, que ano que vem a gente tenha um programa de auditório apresentado por uma pessoa negra no Brasil, algo que nós não temos.
AD: Mas isso porque há um jogo de interesses muito interessante. Apresentar um programa de auditório coloca muito dinheiro em jogo e transforma aquela pessoa como representante de um monte de marca, alguém vai ganhar muito dinheiro. Ainda assim, há outro ponto interessante no Trace Trends: o programa é colocado no ar por um monte de gente preta e o dinheiro está rodando entre elas, as marcas estão participando. Mas a barreira de ter um apresentador, uma apresentadora negra, âncora em programa ainda é muito complicada.
João: Temos que ser referência para as coisas, mas acho que a gente não tem que ser a única referência. Eu preciso que tenham outras referências. Acho que é isso que eu quero, que tenha uma diversidade em referências e não apenas ideais brancos e masculinos.
Queer: O Brasil vive uma realidade marcada pelo racismo e pela LGBTfobia, e quando essas duas coisas são aliadas as barreiras são ainda maiores. Quais são as experiências vividas por pessoas LGBTQIA+ negras que não são vividas por pessoas LGBTQIA+ brancas, por exemplo?
João: É difícil, são muitas camadas a serem analisadas. Eu acho que isso [o racismo e a LGBTfobia] acontece com a gente, não tem jeito, mas sabe quando você fica meio calejado do que está escutando? Não são novidades. A questão é que agora parece que as pessoas estão preocupadas em ouvir o que a gente escutou a vida inteira, parece que elas não sabiam que acontecia. Eu tenho vivido esse processo de me agregar aos meus e tentar tirar um pouco dessas coisas que chegam para mim. Elas acabam chegando, ainda mais agora que sou uma pessoa pública. Estou tentando fazer com que esse tipo de sentimento não chegue a mim. Eu não consigo muito não, queria conseguir mais. Não quero ficar contando do que eu sofri, porque disso todo mundo já sabe. As pessoas fingem que não sabem e sempre querem ver a gente pra baixo. Não quero ficar falando sobre isso porque isso a gente vive. Eu tenho que falar sobre isso porque tem gente que ainda finge que não existe.
AD: Eu penso muito em como a internet potencializou outras narrativas, outras pessoas começaram a contar outras histórias. A partir daí, outras pessoas gays puderam se identificar. Eu vi muito essa revolução acontecer ao entrar neste lugar. Em 2012, eu ajudei a fundar o primeiro site para a comunidade LGBTQIA+ negra, chamado Lista Gay. Lembro que muita gente falava: “Nossa, não sabia que tinha isso”. Agora, a gente está numa geração que tem muito mais informação para poder se identificar com aquilo que de fato gosta.
Alberto: A gente precisa apontar os bons exemplos, mas a gente não pode dar esses exemplos como únicos. Então, é sobre naturalizar essas coisas. Infelizmente, no nosso recorte ainda precisamos sair do armário, falar e processar essas informações, mas há outras maneiras de fazer isso.
Queer: Vocês imaginavam que em algum momento da vida teriam essa influência para chegar em mais pessoas e contar outras histórias?
João: Eu não. Há dez anos atrás eu era um jovenzinho, nem sabia o que queria da minha vida. Mas se eu for pegar dos últimos cinco anos, não me imaginaria no que estou fazendo agora, mas estou muito contente no que estou fazendo agora.
AD: Eu já imaginava porque eu trabalhava com tendências na área de tecnologia. Eu via o pessoal entrando na universidade e imaginei que, quando saíssem, as pessoas iriam começar a falar. Por isso comecei a lançar um monte de projetos. Só que não imaginava que isso ia acontecer tão rápido porque poucas pessoas brancas estavam dispostas a participar dessa conversa. As pessoas achavam até que eu era louco. Eu também não imaginava que ia encontrar outras pessoas tão incríveis assim, que passaram por coisas parecidas que eu e que a gente ia se gostar tanto.
Alberto: Um mês atrás, meu pai mandou uma foto de um currículo meu que ele achou nas coisas dele. Quando eu quis fazer jornalismo, ele disse: “Meu filho, eu não conheço ninguém na Folha nem na Globo para te ajudar”, e eu entendi o que ele quis dizer. Meu pai é engenheiro e funcionário público. Em uma família preta, todo mundo tenta dar o próprio passo para a geração seguinte. Apesar de meus tios terem estudado na universidade, algo diferenciado dentro do que é a negritude, meu pai ficou preocupado. Quando contei para ele que o Trace Trends ia para o Multishow e para o Globoplay, ele se emocionou e chorou. No objetivo do currículo estava escrito: “Trabalhar com apresentação”, mas nunca tinha me visto na frente da televisão.Por muito tempo eu criei conteúdo para outras pessoas falarem. Mas teve um momento que eu entendi que tem coisas que eu não posso escrever se a outra pessoa. Eu preciso falar, colocar a minha opinião e meu jeito de falar para mostrar coisas diferentes, se não continua sendo a mesma coisa. Eu não imaginava que eu estaria trabalhando exatamente num meio de comunicação preto, mas eu com certeza estaria batalhando pra poder trazer mais negritude para comunicação.
Queer: Vocês esperam que o trabalho de vocês como pessoas públicas seja uma ferramenta para uma sociedade antirracista anti-LGBTfóbica? Se sim, como esperam que isso aconteça?
João: Acho que a gente deve continuar fazendo o que está fazendo. Estamos em um caminho muito bom, trilhando nosso espaço de forma muito coerente. Não estou querendo me gabar, mas estamos fazendo isso de uma maneira excepcional, mesmo. Espero que a gente consiga ampliar o nosso espaço cada vez mais, porque eu acho que é disso que a gente sempre está precisando na comunicação em geral. A gente tá muito branco ainda.
AD: Nós, como pessoas negras e gays, estamos projetando o futuro para muitas pessoas. A gente está falando sobre o que o Brasil pode ser amanhã, que faça a nossa cara e não a cara da novela de antigamente. Eu acordo todo dia para acreditar nas potencialidades desse nosso país e das pessoas pretas que estão mudando os parâmetros da nossa sociedade.
Alberto: Na verdade, a gente mostra o que o Brasil já é hoje. Já somos essa diversidade, só que infelizmente, escondemos as diferenças do que é ser brasileiro. A gente já é criativo, é um um povo que, apesar de tudo, segue, cria, brilha. Acho que o Trace Trends inspira outras iniciativas e mostra para o mercado que isso também dá dinheiro. Pensam em negritude como só social e beleza. Não! Somos uma empresa, um grupo de comunicação que quer ganhar dinheiro, trazer mais criadores, mais narrativas... Então que toda essa diversidade que a gente traz na TV, nas nossas redes sociais e que a gente a gente busca trazer no nosso dia a dia, seja de alguma maneira um caminho, uma inspiração ou pelo menos uma possibilidade para outras existências.