Gui Lopes Teixeira, Bryanna Nasck e Júpiter Coelho, respectivamente, são pessoas não-binárias
Aquivo pessoaç/Reprodução Instagram
Gui Lopes Teixeira, Bryanna Nasck e Júpiter Coelho, respectivamente, são pessoas não-binárias



Nos últimos cinco anos, pelo menos, as discussões, polêmicas e questionamentos acerca da não-binaridade de gênero — o que é, como funciona e como se manifesta — emergiram e chamaram a atenção tanto daqueles que não fazem parte da sigla LGBTQIAP+ quanto daqueles que fazem parte da comunidade, porém ainda não tinham tido contato com o tema. Derivadas dessa discussão, outras questões também pautaram os debates sobre acessibilidade e representatividade, como o uso e a importância da linguagem neutra , por exemplo.

Embora a luta não-binária tenha ganhado força há pouco tempo, essa identidade não é inédita na história da humanidade, muito pelo contrário. Existem registros de povos da antiguidade que não se limitavam apenas ao masculino e ao feminino para experienciar o gênero, como os Mahu, na Polinésia, uma sub-região da Oceania. Na língua havaiana, “kane” significa masculino e “wahine”, feminino. A população que constituiu nesse arquipélago do pacífico uma civilização grande, com idioma, cultura e filosofia próprias, reconhecia que alguns indivíduos não são apenas “masculino” ou apenas “feminino”; esses são os “mahu”, uma identidade de gênero ambígua dos havaianos. 

Já no Império Inca, na América pré-colombiana, o povo cultuava a Chuqui Chinchay, uma divindade que incorporava os gêneros masculino e feminino, sem ser exclusivamente um ou outro. Os xamãs que conduziam os rituais em honra desta divindade pertenciam a um terceiro gênero chamado “Quariwarmi”. Indo para a América do Norte, temos os Two-Spirits (Dois Espíritos). Diversos povos originários reconhecem identidades de gênero não-binárias; a ideia é que em um só corpo habita um espírito masculino e um espírito feminino. 

Conforme o passar dos anos e com a evolução dos estudos sobre gênero, especialmente nos anos 80, em países norte-americanos, voltou a ser abordada uma vertente que não incluía apenas o masculino e o feminino, e a partir desses estudos criou-se o termo “não-binário” (ou “não-binárie”). Uma das estudiosas mais famosas que fala sobre questões de gênero, feminismo, filosofia, política, ética e teoria queer (que parte da ideia de que o gênero é resultado de uma construção social), é a estadunidense Judith Butler. Seu livro "Problemas de gênero" (1990) é uma das obras fundadoras da teoria queer e também uma das mais famosas de toda a sua carreira.  

Tendo em vista o histórico e a trajetória dessa identidade ao longo dos anos até o momento atual, o movimento não-binário está se organizando politicamente e reivindicando o reconhecimento das suas identidades e demandas, tanto por meio do ativismo e de projetos do terceiro setor quanto pelas decisões legais, como a  Argentina, que agora permite que os seus cidadãos possam se declarar não-binários em seu documento nacional de identidade.

Um dois maiores questionamentos que ainda persiste em torno desse tema é: o que é ser não-binário? Para Gui Lopes Teixeira , designer e Relações Públicas, a não-binaridade consiste em um espectro e em um termo guarda-chuva, que engloba múltiplas identidades que fogem do binário (masculino e feminino).

“Elas (as identidades) são diversas, afinal existem múltiplas formas de se experienciar gênero. Todas são trans, já que não se identificam com o gênero que lhes foi imposto ao nascimento. Para mim, ser não-binária é me desapegar de todas as amarras que essa definição limitante de gênero me coloca e poder existir dentro de um leque de possibilidades que me permita ser quem eu realmente sou e quero ser”, declara. 

A pluralidade de experiências trans não-binárias torna cada indivíduo extremamente particular e chama a atenção para o fato de que se basear em estereótipos e generalizações alimenta discursos transfóbicos que invisibilizam e impõe obstáculos na jornada desses indivíduos, impedindo que eles sejam reconhecidos e respeitados em toda sua particularidade. 

“Muitas pessoas acreditam que somos todos iguais, pelo contrário, somos plurais. Também acreditam que por sermos não bináries temos que ter determinado estilo, uma estética andrógina ou algo do tipo, mas não tem nada a ver com maquiagem, roupas ou acessórios, não tem um jeito certo de ser não-binárie, afinal não é sobre expressão, é sobre identidade”, Gui chama a atenção. 

A multiplicidade do espectro

Ainda que possam existir semelhanças nas maneiras como cada pessoa não-binária se descobre e expressa o seu gênero, nunca há uma história igual a outra. Algumas dessas vivências podem começar a se manifestar já na infância, como é o caso de Bryanna Nasck , YouTuber , influencer, streamer e  podcaster que fala sobre a causa não-binária para os seus seguidores. Ela conta que desde pequena sempre questionou as imposições de gênero e sua binaridade. 

“Por volta dos 6 ou 7 anos, percebi que existia algo diferente em mim. O senso comum ao meu redor colocou na minha cabeça que era errado se ver de modo diferente, tanto que tive uma tentativa de suicídio aos 9 anos porque, a essa altura, eu compreendia minha atração por homens, e por me entender como homem cis na época, eu acreditava que isso simplesmente não podia acontecer”, explica. 

Além da pressão externa decorrente das imposições e da falta de representatividade, Bryanna acrescenta que inconscientemente impôs uma pressão religiosa sobre si mesma e pensava que Deus não gostava dela. “Lembro que cheguei a passar uma semana inteira chorando e orando antes de dormir, pedindo que Deus me tornasse ‘normal’ ou acabasse de vez com a minha vida”, relata. 

Bryanna então começou a se questionar de maneira mais profunda e isso abriu espaço para que ela se envolvesse com questões militantes relacionadas à comunidade LGBTQIA+. Ela conta que tinha muito contato com a internet desde a adolescência, e na época não existia muita informação sobre gênero e sexualidade na rede, então ela buscava outras formas de conseguir explicações mais profundas sobre quem ela é. 

“Eu tinha o costume de entrar no chat do UOL para conversar com homens gays que pudessem me dizer se era possível viver desse jeito e ser feliz. Eu não enxergava um futuro no qual eu pudesse ser eu mesma. Com 13 anos, tive meu primeiro namorado e me assumi como um garoto gay. Anos depois, percebi que a sexualidade não era a chave da questão”, relata. 

Bryanna, ao compreender que seus conflitos giravam em torno da sua identidade e de quem de fato é, ela começou a se perguntar a qual lugar pertence. “Antes de entender quem eu era, precisava entender tudo que poderia ser”, diz. Foi por meio da conversa com uma amiga que Bryanna conheceu o termo genderqueer, mais utilizado na América do Norte para abranger identidades que não são exclusivamente masculinas ou femininas. 

“Na época, em 2010, eu estava com 16 anos e mais engajada na causa LGBTQIA+, até escrevia um blog sobre o assunto. Quando minha amiga me disse que eu era genderqueer, eu pesquisei no Google brasileiro e não encontrei resultados, então tentei pesquisar em inglês e um novo mundo se abriu diante de mim. Assisti a documentários e conheci ativistas americanos que falavam sobre o assunto. Foi quando eu falei: ‘É isso!’”. 

Semelhante à história de Bryanna, Júpiter Coelho, analista de design da Raccoon , agência de marketing digital, passou por um longo processo até se descobrir. Ela conta que se sentia incomodada consigo mesma desde o Ensino Fundamental, mas não sabia dizer o motivo. Quando começou a fazer terapia durante o cursinho, entendeu que poderia ser uma questão de identidade e se descobriu inicialmente como uma mulher trans. 

“Eu gostava dos efeitos da terapia hormonal feminina, mas não parecia certo só me enquadrar no ‘ser mulher’ ou no ‘ser homem’, eu não me via performando o que era para ser feminino ou masculino, era apenas eu, ou seja, socialmente eu fluía entre os pólos binários de gênero. Desse modo, vi que a identidade não-binária era uma definição melhor para o que eu sou”, conta. 

Gui, por sua vez, relata que sempre se sentiu desconfortável com a definição masculina que lhe foi dada ao nascimento, e constantemente se questionava sobre como se via. Ela diz que em 2016, quando seu namorado levantou a questão sobre a existência de gêneros além do masculino e do feminino, finalmente conseguiu se sentir representada.

“Ali que tudo mudou. Eu pesquisei sobre identidades não-binárias, li e ouvi sobre essas vivências e tudo começou a fazer sentido na minha cabeça. Pareceu que as coisas se encaixaram e eu comecei a me permitir experienciar outra possibilidade de existência além dessa norma [binarista]. Comecei a de fato existir e me expressar como eu realmente era, buscando novos olhares para mim e para o meu corpo”, explica. 

Você viu?

Para Mariana Serrano que, em conjunto com a Amanda Claro, escreveu o livro ‘ Vidas LGBTQIA+, reflexões para não sermos idiotas’ , descobrir sua identidade não-binária é um processo pelo qual ela ainda está passando. De acordo com ela, pessoas trans sempre estiveram presentes em sua roda de amigos e foi um deles que gerou o gatilho para que ela se questionasse sobre isso.

“Após ler uma publicação desse amigo, em que ele elencava algumas maneiras de saber que você não se identifica como uma pessoas cis (alguém que se identifica com o gênero que lhe foi imposto ao nascimento), comecei a suar frio e fiquei bem nervosa, não porque eu achasse que não ser cis é algo positivo ou negativo, e sim porque eu nunca tinha parado para pensar no assunto, e assim consegui começar a reconhecer a minha verdadeira identidade”, conta. 


Do questionamento à violência: onde estão os corpos não-binários?

Questionar a identidade de gênero, com base no sentimento de não conformidade com o gênero que foi imposto ao nascimento, é o ponto de partida para que muitas vivências trans sejam descobertas e se manifestem. Porém, o ato de questionar está muito ligado às referências do dia a dia, uma vez que é difícil indagar e refletir sobre algo que não chega até o indivíduo de maneira orgânica, como é o caso da pauta não-binária, que ainda conta com pouca representatividade e não ocupa espaços de destaque para levar conhecimento às pessoas de maneira mais abrangente. 

“O pouco de estudo que existe no Brasil é elitista e academicista”, afirma Júpiter. “Ele precisa chegar até a população em geral. Um exemplo são os beijos entre pessoas do mesmo gênero que aconteceram em novelas de algumas emissoras: antes eram vistos como ruins, porém hoje a população tem maior conhecimento sobre as pautas gays e lésbicas, então o caminho seria focar nesse tipo de abordagem, algo que se relaciona com o dia a dia da população”. 

O caso de representatividade não-binária mais recente foi o de Demi Lovato , cantora estadunidense que, por meio de um vídeo em seu Instagram, assumiu sua identidade no dia 19 de maio deste ano e mudou seus pronomes para they/them (pronomes neutros). A notícia gerou grande repercussão e ter uma pessoa de destaque na música que leva a voz e a vivência não-binária para o público é uma forma de fazer com que mais pessoas não-binárias se sintam representadas. 

“Todo dia ao acordar temos a oportunidade de ser quem queremos e desejamos. Passei a maior parte de minha vida crescendo diante de todos vocês. Viram as coisas boas, as ruins e tudo o que há no meio. Minha vida não foi uma viagem somente para mim, também a vivia para todos os que estavam do outro lado das câmeras. E hoje estou feliz por compartilhar mais de minha vida com todos vocês. Tenho o orgulho de contar que me identifico como pessoa não-binária”, declarou em seu Instagram. 


Bryanna comenta que a falta de representatividade foi um dos fatores que culminou na demora para que ela se descobrisse. Durante a sua trajetória, não havia ninguém em quem ela pudesse se espelhar ou ter como inspiração para lutar pela sua existência, o que tornou a jornada mais difícil. Esse é um dos motivos pelos quais ela começou a produzir conteúdo ativamente para a internet. 

“Eu mesma tive que me tornar a pessoa que eu sempre precisei ter na minha vida, por isso decidi começar a compartilhar a minha vivência com as pessoas, assim eu poderia oferecer a elas a inspiração que sempre precisei, mas nunca tive. Precisamos construir um processo no qual os indivíduos se sintam livres para questionar o que lhes é imposto e buscar a sua própria verdade”, explica ela. 

Mariana chama a atenção também para a importância de desconstruir a visão popular de que pessoas trans (tanto não-binárias quanto binárias, ou seja, homens e mulheres trans) estão única e exclusivamente associadas a cirurgias e procedimentos corporais. Ela diz que era adepta a esse ponto de vista antes de se descobrir. 

“Na minha cabeça, ser trans era querer mudar seu corpo de alguma forma, se hormonizar, fazer mastectomia, cirurgia de redesignação, etc., e me descobrir e questionar esses padrões me ajudou a quebrar esses mitos que estavam internalizados. Aprendi que ser transgênero está ligado a quem somos e não apenas a como nos apresentamos ou qual aparência nós temos”, acredita. 

Tendo em vista tanto a pluralidade de experiências quanto a importância da representatividade, do reconhecimento político e jurídico desses indivíduos e da desconstrução de estereótipos, o que se discute é: onde estão os corpos não-binários e a quais violências eles estão sujeitos? Para Gui, a interpretação binarista e a falta de inclusão das vivências não-binárias nos espaços públicos é um dos fatores que tornam seus corpos invisíveis e promovem ataques de ódio. 

“Tudo é segmentado pelo binarismo, desde as lojas, produtos, carreiras e até os banheiros. Então, na maioria das vezes, não somos nem considerades nesses locais. Na internet, sempre somos alvos de ataques. Eu mesma tenho um vídeo com quase mil comentários de pessoas invalidando meu gênero e dizendo que sou homem. Isso pode ter diversos impactos em nossas vidas, desde criar insatisfações, depressão e até suicídio”, diz. 

Byanna, por sua vez, ressalta que os corpos que não se traduzem como exclusivamente femininos nem exclusivamente masculinos são vistos como doentes e passíveis de algum tipo de tratamento para serem “curados”.

“A sociedade olha para as nossas identidades enquanto uma doença que precisa de ‘sintomas’ para conseguir se encaixar. A comunidade está lutando para termos as nossas identidades humanizadas e para que elas deixem de ser consideradas um distúrbio e sejam reconhecidas como parte da sociedade e do contexto geral”, explica. 

Com relação à expressão de gênero, ou seja, como as pessoas exteriorizam sua identidade (desde a forma como vestem até a maneira como se portam), Júpiter comenta sobre como os espaços sociais e virtuais ainda são violentos quando veem alguém que não segue as normas impostas e esperadas. 

“Uma pessoa que tem características consideradas mais ‘masculinas’ e usa um vestido ou roupas que não são ‘adequadas’ perante à sociedade sofre de bullying, assédio e até agressão física, e às vezes é impedida de usar o banheiro público que deseja e coisas do tipo. A internet é o pior lugar para essas pessoas se exporem, pois atrás das telas os indivíduos conseguem disseminar preconceitos de maneira ainda mais intensa”, diz. 

Presente e futuro: a expectativa da luta

A pauta não-binária ainda está dando passos pequenos para conseguir ocupar um lugar de peso nos debates do dia a dia e nos espaços coletivos. Para Bryanna o melhor caminho é produzir o máximo de conteúdo possível sobre o tema para que ele esteja presente nas redes e possa chegar a cada vez mais pessoas. 

“Temos cada vez mais criadores de conteúdo falando sobre o tema e produzindo uma material educativo relacionado a não-binaridade. Estarmos vivos e sendo vistos de alguma forma dá força para quem está tentando se entender e permite que outras pessoas conheçam as nossas vivências e possam se educar sobre isso”, pontua. 

Júpiter traz à tona os debates sobre linguagem neutra que estão ganhando mais espaço aqui no Brasil gradualmente e ressalta que, apesar do conservadorismo que ainda é muito presente na estrutura social do país, a jornada de pessoas trans não-binárias em busca do seu pleno reconhecimento, respeito, inclusão e visibilidade segue a todo vapor. 

“Os grupos LGBTQIA+ nunca estiveram mais engajados em mudanças quanto estão hoje. A linguagem neutra está sendo cada vez mais estudada e ainda tem-se um longo caminho para romper os estereótipos e acabar com as violências sofridas por nós, mas o Brasil, mesmo que a passos lentos, tem um prognóstico promissor”, conclui.

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