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"Cura gay" pode ser traumática para pessoas LGBTQIA+

O que as religiões falam sobre a comunidade LGBTQIA+ , sobre sexo ou sobre o amor entre pessoas do mesmo gênero pode, em alguns casos, ser violento. No Brasil, há templos e igrejas que praticam processos de “cura gay ”, que imputam culpa, constrangimento e humilhação a fieis que não se encaixam no padrão heterossexual.

Entretanto, segundo o psicólogo Claudio Picazio não é possível alterar a orientação sexual de ninguém em nenhum processo psicológico, terapêutico ou de “cura”. “O que pode acontecer com uma pressão, em um processo traumático, é a pessoa inibir a sexualidade. Ela joga como se fosse num buraco negro, oculta dela mesma o próprio desejo e mente para si”, afirma.

Ele explica que a negação dos desejos pode ocorrer por diversos motivos: a família, a igreja e Deus, a ideia de punição e inferno. “O que também pode acontecer, em alguns casos, é da pessoa ser bissexual, desejar tanto homens quanto mulheres, e abrir mão de ter relacionamentos com pessoas de um dos sexos. Mas isso não altera a orientação sexual, porque não se muda o desejo sexual de ninguém”, diz Picazio.

Para o psicólogo, processos que tentam alterar a sexualidade das pessoas podem traumatizá-las profundamente. “Em um processo desses, se diz para alguém que ele ama errado. Quando se fala de desejo e orientação sexual, não estamos falando só do coito, do gozo, mas de tudo, principalmente da maneira de amar. E ser apontado como alguém que ama errado, que nasceu errado, é um horror e pode dar uma dor imensa. Muita gente até tira a própria vida por isso. Um processo de ‘cura gay’ pode gerar desde o trauma até perda total da identidade”, completa.

A também psicóloga Nathalia Noveletto, 30, que sempre foi religiosa, foi vítima de um processo de “cura gay” em 2011, quando frequentava a Igreja Batista de Lagoinha, em Belo Horizonte (MG). Na época, ela começou a fazer um curso sobre a bíblia ligado à instituição, quando a coordenadora da atividade descobriu que ela estava se relacionando com a mulher com quem dividia o apartamento.

“Ameaçaram me expulsar, contaram para os nossos pais e me proibiram de ter qualquer tipo de contato com ela. Ela se mudou, mas voltamos a morar juntas depois e a coordenação descobriu. Me mandaram decidir entre ela ou o curso da bíblia. Quando viram que eu estava mal, ofereçam uma chácara para passar um final de semana. Pensei que era para descansar e ser acolhida, mas, quando cheguei lá, vi que era a ‘cura gay’”, conta.

Em um lugar “no meio do mato”, a 40 minutos de Belo Horizonte, Nathalia encontrou muitas outras pessoas de diversas cidades brasileiras em situações semelhantes. Todas levadas para “curar o pecado”. Havia um homem que teve um caso com a madrasta, uma mulher que gostava de fazer sexo anal, outra considerada promíscua. A maioria foi convencida de não passar apenas o final de semana, mas 15 dias, incluindo Nathalia.

“Todos os dias, a gente levantava, tomava café, participava de alguma dinâmica e depois ia para o culto. As dinâmicas eram sempre diferentes. Em uma delas eu tinha que ficar correndo e gritando que a homossexualidade era pecado e que não queria isso na minha vida. Em outra, precisava mexer com argila, enquanto falavam que ela simbolizava o pecado e que precisávamos ser limpos. Nos intervalos eu tinha que conversar com os pastores para confessar o que estava acontecendo. As pessoas me falavam que era necessário sentir nojo de outra mulher”, relata Nathalia.

Nathallia Noveletto foi levada para uma chacará sem saber que seria submetida a um processo de
Reprodução/Facebook/Arquivo pessoal
Nathallia Noveletto foi levada para uma chacará sem saber que seria submetida a um processo de "cura gay" com constrangimentos

Em nenhum momento, Nathalia cogitou fugir. De acordo com ela, não havia uma maneira de fazer isso de forma segura. A chácara era distante de tudo e ela não tinha contato com ninguém de fora da casa. “Fui levada até lá e era bem no meio do mato”, disse.

Para participar do “retiro”, as pessoas tinham que pagar R$ 2.500. Contudo, como Nathalia havia sido convidada pela igreja a participar, foi levada sem pagar nada. Assim como ela, as pessoas mais jovens haviam sido levadas para a “cura”, sem saber do que se tratava. Apenas os mais velhos estavam lá por vontade própria: "Eles ficavam jogando na minha cara o fato de ter ido de graça. Que era para aproveitar a oportunidade".

No último dia, Nathalia conseguiu trocar de quarto e dormir junto de outras mulheres da mesma idade – até, então, ela estava dividindo um quarto com mulheres mais velhas: “Eles tinham medo de eu dar em cima das meninas mais novas”. Na ocasião, ela e outras quatro jovens conversaram sobre tudo pelo que passaram na chácara. 

“Achávamos que aquilo não precisava acontecer, que era muita exposição. Todas tínhamos um sentimento em comum, de que aquilo tudo não resolveria absolutamente nada, apenas nos constrangia. Eu sempre me senti exposta em todas as atividades que se realizei, humilhada, porque sempre fui muito reservada, mas precisava me expor o tempo todo e para pessoas diferentes, dizendo o que estava acontecendo para eu estar ali”, afirma Nathalia.

Ao deixar a chácara, a psicóloga conta que a relação dela com a igreja nunca mais foi a mesma. Todas as mulheres ficavam afastadas dela nos eventos religiosos. “Quando eu voltei, todos já estavam sabendo o que tinha acontecido e a coordenação do curso pediu para as mulheres não se aproximarem de mim, como se eu fosse contagiosa. Eu sentia culpa de manhã, tarde e noite”, conta.

Quatro anos depois, quando já não suportava mais a pressão, decidiu deixar a igreja e procurar ajuda psicológica. “Eu entendi que, naquele universo, jamais seria aceita ou acolhida. Hoje, não tenho nenhuma culpa. Só faço análise mesmo. Como psicóloga, afirmo que a questão pela qual passei era puramente culpa da religião. Se eu pudesse falar com quem está passando pela mesma coisa, diria para buscar uma rede de apoio, amigos, psicólogos, coisas que façam bem. Na época, eu não tive ninguém para me apoiar. Todos meus amigos eram religiosos e isso dificultou bastante”.

Há dois anos, Nathalia está casada com outra mulher e quer ter filhos em breve. “Estou contente por ser quem eu realmente sou. Até a minha mãe, que é evangélica, aceita a minha esposa. Ela não acha que vou ser condenada por amar alguém do mesmo sexo. Ela acompanhou todo o processo, sabe que foi bem penoso”, finaliza Nathalia.

Mas não é somente nas igrejas evangélicas que processos de “cura gay” são executados. O caso do ator Fernando de Souza, 31, não foi como o de Nathalia, mas, dentro do seminário, quando ele tinha 14 anos e estudava para ser padre, foi exposto a diversas situações constrangedoras devido a sua orientação sexual.

Muito tímido, Souza diz que gostava de conversar com a psicóloga constantemente, em um dia, revelou para ela um sonho em que beijava um outro rapaz. “Eu contei, sem maldade, que tinha sonhado que uma vez tinha beijado ‘um cara’. Depois disso as coisas mudaram, ela começou a me tratar muito mal e se mostrava preocupada com minha cabeça, dizia que eu iria ficar louco, que se eu rezasse, jejuasse, fosse um bom religioso, Deus poderia me curar, me dar a graça da libertação”, conta ele.

Depois do ocorrido, outros padres e funcionários do seminário pareciam ter descoberto e ele era constantemente penalizado por algo que nunca tinha cometido. “Na confissão, o padre me questionou se estava tudo bem com meus sonhos. Fui obrigado a falar. Ele me passou a penitência de varrer uma escadaria, que era enorme, debaixo para cima antes das primeiras orações do dia, quando estava clareando. Era horrível, principalmente, porque outros religiosos me viam fazendo isso”, relata Souza.

O rapaz recebeu um extenso trabalho sobre o pecado da luxúria, outros sobre o que seria morrer no pecado, inferno etc. Por isso, começou a ter pesadelos. “O que eu tinha comentado na confissão era abordado por três pessoas diferentes que aparentemente não tinham ligação entre si. Diziam que era tudo por inspiração divina. Eu vivia num inferno, cada vez me sentindo mais mal”, comenta.

Apesar de sempre ter sonhado ser padre, seis anos depois, quando os desejos já falavam mais alto, Souza decidiu abandonar o seminário. “Eu não conseguia mais viver lutando, mentindo, eu estava crescendo, as vontades também, eu me sentia cada vez mais inferior [no seminário]. Eu me cobrava muito, mas, como os desejos aumentavam, eu me sentia um lixo”, diz Souza.

Ao sair do seminário, ele acreditava que se sentiria mais leve, sem toda a pressão e constrangimento ao qual estava acostumado a ser submetido nos últimos seis anos. Entretanto, percebeu que seria muito difícil, porque havia sido criado na igreja e sentia falta dela. “A igreja era mais importante do que eu pensava, eu precisava de Deus. Fazer as pazes com Deus foi algo realmente importante para mim”, conta Souza, que encontrou na Catedral Anglicana o seu lugar para professor sua fé e ser quem é e amar do seu jeito livremente.

De acordo com o psicólogo Claudio Picazio existem várias maneiras de ser feliz e buscar a felicidade: “Hoje em dia, é possível buscar ajuda lendo, estudando, tem uma gama enorme de livros e pessoas já dizendo por aí o quanto não é pecado [ser homossexual]. Não existe só uma maneira de se viver, pensar isso é uma pobreza de espírito”.

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