
A cantora Majur acaba de lançar seu mais recente álbum “ Gira Mundo ”, que reúne 16 faixas inéditas com influências do afropop e da espiritualidade de matrizes africanas. O trabalho exalta orixás e elementos naturais por meio de canções cantadas em iorubá, com arranjos que misturam tambores e instrumentos orquestrais. A proposta do disco é valorizar a cultura afro-brasileira e resgatar narrativas apagadas da história do país.
Em entrevista exclusiva ao iG Queer, Majur falou sobre o processo criativo por trás do projeto. A cantora explicou que o álbum é o encerramento de uma trilogia que começou com “ Ojunifé ” (2020) e seguiu com “ ARRISCA ” (2023). Cada disco marcou fases distintas da trajetória pessoal e espiritual da artista, que se iniciou no candomblé antes mesmo de estrear oficialmente na música.
“Gira Mundo” foi gravado na Bahia, sob direção musical de Ícaro Sá e Ícaro Santiago. A faixa principal do álbum é “ Iroko ”, palavra que representa o tempo no candomblé. Para Majur, o tempo é o fio condutor do projeto. “Estou usando o tempo para demarcar a cultura no Brasil sob outro olhar, sob outra narrativa” , afirmou.
O álbum presta homenagem a divindades como Ogum, Iemanjá, Xangô, Oxóssi e Oxalá. Cada faixa representa um orixá e evoca a força de elementos da natureza, como vento, água, terra e fogo.
Segundo Majur, o ponto de partida do disco surgiu ainda em 2018, quando escreveu a canção “ Africaniê ”. A faixa, com raízes africanas e efeitos eletrônicos, foi o embrião de uma pesquisa mais profunda sobre ancestralidade e identidade. “Naquele início, eu queria entender o que as pessoas gostavam. Depois percebi que todas as partes que testei estavam dentro de mim” , revelou.
A relação com a religiosidade, no entanto, amadureceu com o tempo. “ Lati Kori Agbara dos Orixás ”, verso presente na primeira faixa do disco de estreia, significa “ eu canto o poder dos Orixás ”. Majur contou que aprendeu esse cântico dentro do axé, quando começou a frequentar festas e se conectar com a fé afro-brasileira.

Representatividade e ancestralidade
A cantora não esconde o orgulho de ocupar um lugar de destaque na música brasileira enquanto mulher preta, travesti e de axé. Para ela, estar onde está hoje é um ato de resistência e, ao mesmo tempo, uma resposta espiritual. “Tudo isso é sobre espiritualidade. Eu canto para encantar, para curar e para me manter viva. Não é só sobre sucesso, é sobre missão” , afirma.
Na conversa, a cantora lembra o início da carreira e o impacto de ver outras artistas como ela ganhando espaço. Um nome em especial vem à tona com carinho e reconhecimento: Liniker. “Quando a gente começou, éramos poucas sendo vistas. E mesmo sendo poucas, éramos gigantes. A Liniker é minha irmã, é alguém com quem troquei dores e também vitórias. A gente abriu o terreiro e o mercado juntas” , diz.
Majur, inclusive, relembra com emoção os primeiros encontros com a artista paulista e destaca como ambas se fortaleceram mutuamente em um cenário ainda carente de representatividade trans e travesti. “Lembro das conversas, dos choros, da força que uma dava para a outra. Não era só sobre fazer música, era sobre existir. Sobre sobreviver. E a gente entendeu isso desde o começo.”
A artista também reflete sobre a responsabilidade de ser referência para outras pessoas LGBTQIAPN+, especialmente jovens pretas e trans que encontram na arte um caminho de liberdade e expressão.
"Tem gente que olha pra mim e encontra coragem. Eu sei disso. Recebo mensagens todos os dias de meninas dizendo que começaram a se entender depois que me ouviram cantar ou falar. Isso é muito maior do que qualquer prêmio” , conta.
Além da representatividade de gênero e raça, Majur reforça o papel da ancestralidade como guia em sua trajetória. A espiritualidade, segundo ela, não é separada da arte, mas o próprio alicerce. “Eu me conecto com os orixás o tempo inteiro. Cada música que escrevo é uma reza, uma oferenda. O palco é meu altar” , explica.
Questionada sobre os avanços conquistados desde o início da carreira, a cantora reconhece mudanças importantes, mas também alerta para os retrocessos e violências que ainda ameaçam corpos dissidentes no país. “A gente subiu um degrau, sim. Mas ainda tem muita gente tentando nos empurrar escada abaixo. Por isso, sigo cantando. Porque cantar também é gritar, também é lutar.”
Para a artista, sua trajetória — assim como a de Liniker — abriu portas, mas também escancarou feridas. E é ao transformar essas dores em arte que ela acredita cumprir seu papel no mundo. “Eu estou aqui por mim, pelas que vieram antes e pelas que ainda vão chegar. Ser Majur é ser muitas. E é por todas que eu sigo girando esse mundo.”

Trilogia une identidade, risco e maturidade
No segundo disco, “ ARRISCA ”, Majur se permitiu explorar novos territórios musicais e pessoais. A artista se mudou de Salvador para o Rio de Janeiro, rompeu com antigos vínculos profissionais e buscou novas conexões. “Eu arrisquei um casamento, arrisquei mudar de cidade, arrisquei tudo. Foi uma fase de celebração e de crescimento”, disse.
Já em “ Gira Mundo ”, a cantora afirma ter alcançado plenitude. O projeto é tratado como uma obra de legado. “Eu tô falando de uma construção histórica como artista, oferecendo arte como reflexão e inserção cultural” , declarou.
Majur também destacou o uso de cantigas de domínio público, reorganizadas em novos arranjos com respeito às raízes religiosas. " Não é um trabalho novo no sentido de inédito, porque essas cantigas já existem. Mas eu recriei, juntei pedaços, trouxe novas leituras. É uma obra sobre maturidade”, afirmou
Entre os destaques do álbum estão as faixas “ Oxumarê e Ewá ”, “ Ibeji ” e “ Oxalá ”, que encerram a tracklist com mensagens de transformação e reconexão com os ancestrais. A artista explicou que o visualizer do projeto convida o público a vivenciar um dia em um terreiro e a entender sua relação com a espiritualidade.
Apesar das referências religiosas, Majur reforça que o álbum não se limita à fé. “Esse álbum não é sobre religião. É sobre recontar a nossa história nos tempos de hoje. É sobre transformação e conexão, informação para o povo, sem mais”, disse, ao explicar a intenção de combater o preconceito com arte.

Orixás e natureza em 16 faixas inéditas
As canções seguem a seguinte ordem: “Bará”, “Ogum”, “Odé”, “Ossain”, “Obaluayê”, “Oxumarê e Ewá”, “Xangô e Ayrá”, “Iroko”, “Logun Edé”, “Oxum”, “Oyá”, “Obá”, “Yemanjá”, “Nanã”, “Ibeji” e “Oxalá”. Cada título carrega uma simbologia ligada à natureza e ao sagrado.
Majur também revelou que teve aulas com Letieres Leite, fundador do grupo Orkestra Rumpilezz, instituições que preservam a música de matriz africana no Brasil, que faleceu em 2021. A convivência com esses mestres foi fundamental para a construção sonora do álbum.
O disco chega ao público em uma data simbólica. Seu lançamento aconteceu na véspera do 13 de maio, Dia da Abolição da Escravidão. “É uma coincidência, mas reforça ainda mais o propósito do trabalho”, pontuou a cantora.
Turnê internacional
A cantora revelou detalhes da nova turnê internacional do álbum. Diferentemente dos shows vistos no Brasil, Majur afirma que a produção internacional será mais intimista devido às limitações de tempo dos locais de apresentação, além de não contar com a equipe completa. "Vou com a banda reduzida, não vou com o meu com os meus bailarinos. É uma interpretação sozinha, porém, eu estou dançando muito, tudo dirigido pelo pelos meus coreógrafos. Então, lá fora eles vão conhecer quem é a Majur! ".
No palco, Majur assume o papel de guia espiritual, conduzindo a plateia por um repertório que mistura ritmos como ijexá, samba-reggae e soul. “É um espetáculo pensado para provocar sentimento, para abrir caminhos. Quero que as pessoas saiam do show com o coração mais leve e a mente mais aberta” , afirma a cantora.
A cenografia e os figurinos também foram desenhados para reforçar a atmosfera mística da turnê. Com referências visuais aos orixás e à estética afro-brasileira, Majur promete entregar não só um show musical, mas uma verdadeira experiência de cura coletiva e conexão com as raízes.