O curta-metragem “ Anba dlo ”, dirigido, roteirizado e co-produzido por Rosa Caldeira em parceria com Luiza Calagian, foi selecionado para a Berlinale Shorts, categoria oficial de curtas do Festival Internacional de Cinema de Berlim. O filme é o único representante brasileiro na competição, que é uma das mais prestigiadas do mundo.
Rosa Caldeira é um cineasta trans formado em Sociologia e especializado na Escuela Internacional de Cine y TV, em Cuba. Além da disputa pelo prêmio, Rosa participará da Berlinale Talents, plataforma internacional para talentos emergentes do cinema, criada em 2003. Ele já dirigiu videoclipes, campanhas publicitárias e produções premiadas, como “Perifericu”, que acumulou mais de 35 prêmios e foi exibido em 200 festivais.
Vivência trans na arte
Ao iG Queer, o cineasta afirma que sua transmasculinidade permeia o seu trabalho, mas, ao mesmo tempo, não o nicha, ressaltando que o "objetivo não é dialogar somente com a população trans", e sim conseguir "incluir as pessoas trans em conversas que normalmente não são nem considerados".
"Escutar uma pessoa trans contar sua história pode ser transformador para quem não convive com pessoas trans — não porque eu vá falar exclusivamente sobre transfobia e as dificuldades que eu enfrento, mas porque minha vida é feita de questões humanas que atravessam qualquer pessoa: identidade, política, gênero, amor, perdas e sonhos", afirma o artista.
Rosa explica o simbolista por trás do dia 29 de janeiro, que marca o Dia da Visibilidade Trans: "Para mim, é um reconhecimento das pessoas trans que abriram caminhos para que hoje possamos ocupar espaços antes negados. É um momento para lembrar que, em um país como o Brasil — que lidera os índices de violência contra pessoas trans e travestis —, essa visibilidade ainda é questão de sobrevivência."
Na conversa, o cineasta prestou um tributo ao colega Agnes Rodrigues Lemos, um dos pioneiros da luta Trans na Unicamp, que ajudou na idealização do Núcleo de Consciência Trans: "Um companheiro transmasculino, vítima de uma sociedade que frequentemente empurra pessoas trans ao limite, onde o suicídio se torna uma saída dolorosamente comum."
Ele continua: "Pessoas trans ainda estão restritas, na maioria das vezes, a posições na frente das câmeras, como modelos ou representações visuais, enquanto os espaços criativos e de liderança permanecem inacessíveis. É urgente que criemos políticas públicas e cotas específicas para a população trans, tanto em editais de incentivo cultural quanto dentro da indústria audiovisual privada. Essa mudança não é apenas sobre inclusão — é sobre garantir o direito à vida e à dignidade."
Festival de Berlim
O curta-metragem que levará o cineasta a Berlim é o "Anba dlo". Na produção rodada em Cuba, Rosa conta a história da bióloga haitiana Nadia, interpretada por Berline Charles, e explora temas como luto, migração e espiritualidade. Segundo Rosa, o filme foi inspirado por experiências pessoais, como a perda do pai, ocorrida enquanto ele finalizava sua especialização em Cuba.
"Como brasileiros estudando cinema na EICTV, em Cuba, Luiza e eu enfrentamos diferentes perdas significativas longe de casa - no meu caso, a morte do meu pai. Esse processo nos aproximou de Berline Charles, a protagonista do filme, e uma haitiana que também vivia um luto familiar longe de seu país de origem."
Rosa recebeu a notícia da seleção no dia 23 de dezembro, sendo um "presente de Natal": "Eu tava na casa da minha mãe, cercado pelos meus irmãos e família, e custei a acreditar—achei que era engano, sei lá. Estamos falando de um dos festivais mais prestigiados do mundo, com mais de 5.000 inscritos só na nossa categoria e apenas 20 selecionados. Quando caiu a ficha, a emoção tomou conta. Não consegui parar de comemorar."
Ele completa: "Assistimos ao filme juntos, e foi uma experiência única. Embora seja um drama forte, a minha família transformou tudo em uma mistura de comédia e emoção. Eles comentavam cada cena, faziam bagunça, riam ao mesmo tempo que se emocionavam e de alguma forma tornaram aquele momento ainda mais especial. É muito lindo poder compartilhar essa conquista com os meus."
Reflexo da obra no mundo
Rosa explica que o cinema brasileiro celebra um momento forte de internacionalmente: "O Brasil está cada vez mais voltado para premiações internacionais, como a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro e as indicações de Ainda Estou Aqui no Oscar, mostrando a força do cinema nacional", destacou o cineasta.
Ele ressalta o impacto de sua conquista como uma validação não apenas pessoal, mas coletivo, representando vozes marginalizadas. “A favela, as pessoas trans, os corpos dissidentes têm o direito de ocupar o cinema e outros espaços de criação. Precisamos construir uma narrativa no Brasil de que fazer arte não é um luxo, mas uma profissão tão legítima quanto qualquer outra”, afirmou.
Apesar do reconhecimento internacional, o cineasta alerta para os desafios enfrentados no mundo artístico, ainda marcado pelo elitismo, e a importância do apoio de políticas públicas e investimentos privados para democratizar o acesso à produção cultural.
Para ele, a seleção para a Berlinale é um símbolo do que o Brasil pode alcançar ao dar visibilidade e suporte às narrativas populares e dissidentes. "Espero que nossa seleção seja vista como um símbolo do que é possível fazer quando narrativas populares alcançam o espaço que sempre mereceram: o de incentivo público, privado e de criar arte para e pelo povo", concluiu.