Há 42 anos, a Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) foi descoberta pela primeira vez nos EUA e, dois anos mais tarde, o HIV , vírus da imunodeficiência que provoca a doença.
A descoberta foi cercada de dúvidas, discriminação e temor — reações que ocorrem até os dias de hoje, sobretudo quando relacionadas às pessoas da comunidade LGBTQIAP+ , público que se tornou alvo de perseguição e estigma relacionados à infecção pelo vírus.
De acordo com a pesquisa "Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS – Brasil", de 2019, 64,1% de pessoas LGBT+ já́ sofreram alguma forma de estigma ou discriminação pelo fato de viverem com HIV, ou com Aids.
Os desdobramentos disso fizeram com que a comunidade queer fosse vista como único alvo da doença, algo que se provou mentira durante os anos. Contudo, esta população ainda sofre com resquícios do preconceito histórico quando precisam de aconselhamentos ou apoio médico para prevenção, rastreio e tratamento do HIV/Aids.
Hoje, no Dia Mundial de Combate à Aids, o iG Queer visa entender a importância de espaços LGBTQIAP+ no combate à doença. Para isso, o portal conversou com dois ativistas da causa: Eduardo Luiz Barbosa, de São Paulo, e Márcio Villard, do Rio de Janeiro.
“O tratamento para o HIV/Aids avançou bastante. Sou da época que só tinha o AZT e muito pouco conhecimento de seus efeitos. Ter o diagnóstico precoce permite que a pessoa possa ter acesso imediato ao tratamento que hoje pode ser feito com uma única pílula”, diz Eduardo Luiz Barbosa, vice-presidente e coordenador do (CRD) Centro de Referência da Diversidade — Brunna Valin, administrado pelo Grupo Pela Vidda SP (GPV).
“Quanto mais cedo souber o diagnóstico, mais oportunidades de manter uma boa qualidade de vida, controle sobre o vírus e a possibilidade de manter as relações afetivas e sexuais protegidas, ocorrerão”, acrescenta.
Para Eduardo é crucial a existência de espaços inclusivos e adequados para atender a população LGBT+, como o GPV e o CRD, que realizam uma série de atividades de apoio para pessoas queer em situação de vulnerabilidade.
Acolhimento, aconselhamento e orientação, reuniões de convivência e apoio em que são discutidas as experiências de viver com HIV/Aids e o desenvolvimento de respostas coletivas, estão entre as atividades desenvolvidas.
No campo do ativismo, a organização acompanha ainda políticas públicas, participa de fóruns, publica periodicamente informações sobre tratamento, prevenção, direitos e cidadania, realiza atividades culturais, — como o Cinema Mostra Aids —, e oferece capacitações e treinamentos em IST/Aids, além de sempre estarem nas ruas da cidade fazendo ações cidadãs.
Eduardo defende que a disponibilização de materiais informativos em todos os espaços de sociabilização LGBT+ e a promoção de discussões ampliam o grau de autonomia das pessoas para tomarem decisões sobre suas próprias vidas.
“Não podemos ser prescritivos e temos que respeitar as individualidades deste coletivo. Fetiches e as formas de interação nas relações sexuais devem ser levadas em conta, sendo discutidos seus riscos e oferecendo meios de redução de danos em torno delas. Quanto mais espaços para estas discussões, menos estigma e preconceito teremos", destaca o ativista, que também é coordenador do Mopaids (Movimento Paulistano de Luta contra a Aids).
Assim como Eduardo, Márcio Villard, coordenador geral do Grupo Pela Vidda RJ (GPV) — primeiro grupo fundado no Brasil por pessoas vivendo com HIV e Aids, seus amigos e familiares, em 1989 — também acredita que quanto mais cedo o vírus é combatido, menos ele se multiplica.
Desafios ainda são presentes
Na visão de Eduardo, o maior obstáculo para a população LGBTQIAP+ ainda é o estigma e a discriminação, especialmente para as pessoas trans e não binárias que enfrentam desrespeito às suas identidades.
Ele observa que as pessoas da comunidade LGBT+ têm receio de procurar serviços por medo da discriminação e por não tolerarem discursos moralistas e julgadores.
O ativista destaca que quando uma pessoa LGBTQIAP+ tem uma IST (infecção sexualmente transmissível) e procura um serviço de saúde, ela corre o risco de ouvir frases como “você não se cuida” ou “isto é promiscuidade”, dentre outras.
Eduardo argumenta ainda que os serviços públicos precisam sempre manter uma capacitação de seus quadros, desde o porteiro até os médicos, para um acolhimento que seja respeitoso e não vinculado às crenças e religiões. Ele acredita que o respeito à individualidade e à diversidade é fundamental para um atendimento de qualidade e sem preconceitos.
“A formação dos sujeitos ocorre na família e na escola, refletindo-se posteriormente nas relações sociais. Se a escola não está aberta para discutir esses temas, ela proporciona a invisibilidade da população LGBT+ e de todas as questões de saúde dessa comunidade. Isso dá a impressão de que são pessoas à parte da sociedade e que seus problemas não afetam toda a sociedade”, diz.
“Programas como o ‘Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE)’, extinto nos últimos anos de um governo conservador, deixam crianças e jovens sem orientação adequada e sem a possibilidade de conviver harmoniosamente com a diferença.”
Márcio corrobora com o colega: “A educação sexual é fundamental, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero. É importante que os mais jovens tenham contato com a temática de saúde sexual e reprodutiva.”
Eduardo também explica que em todos os serviços de saúde é imprescindível, e é lei, ter um conselho gestor, composto por administração, trabalhadores e representantes dos usuários nesses espaços. No entanto, quando existem, a participação da comunidade LGBT+ é baixa.
“Isso distancia os procedimentos e condutas dos serviços e profissionais das vivências LGBT+. Ter LGBT+ participando pode ajudar muito na difusão da ‘Mandala da Prevenção’, desmitificando tabus, quebrando preconceitos e proporcionando uma atenção humanizada e integral. Muitos ainda fogem de se testar por conta da associação Aids = Morte.”
Márcio acrescenta que o problema não é a falta de representatividade, mas sim o despreparo das equipes para lidar com a diversidade e promover acolhimento e cuidado especializado com equidade. “Um desafio corrente é descentralizar a testagem e orientar sobre prevenção combinada e tratamento.”
Ainda é comum muitas pessoas LGBT+ dizerem: “Prefiro não saber para não ter que tomar remédios e ser apontado como doente”. Contudo, Eduardo acredita que quebrar as barreiras de acesso e alcançar a eliminação da Aids só será possível com o protagonismo da comunidade.
“As políticas públicas não são eficazes se vierem de gabinetes, de cima para baixo. Só a própria comunidade LGBT+, com suas singularidades, pode auxiliar na construção de programas e ações capazes de fazer sentido para as pessoas e assim serem capazes de mudar uma realidade.”
Márcio também menciona que sempre existirão lacunas. “A PEP, por exemplo, é de 2010 e muita gente ainda desconhece. A PrEP é de 2018 e há um esforço para informar a comunidade LGBTQIA+. No entanto, ainda faltam campanhas educativas e projetos para ampliar a educação entre pares.”
O coordenador do GPV Rio de Janeiro completa dizendo ser fundamental a participação da comunidade LGBTQIA+ nos espaços de controle social para incluir suas prioridades.
Espaços LGBT+ devem ajudar na prevenção
Eduardo defende que todos os espaços LGBT+ podem oferecer insumos de prevenção e materiais informativos, solicitando ao estado ou município uma grade para seu estabelecimento.
A ideia de colocar um display em um canto, convidar ONGs para estarem presentes, e oferecer orientação de forma discreta e respeitosa são possibilidades que algumas casas noturnas e saunas já oferecem.
O ativista vê isso como uma oportunidade para a sociedade civil angariar apoiadores da causa e crê que os estabelecimentos têm a responsabilidade de oferecer não apenas prazer e diversão, mas também informação. “As ONGs sempre estão dispostas a colaborar, é preciso dar espaço e promover essa parceria.”
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