O termo “genderfluid” (“gênero-fluido”) apareceu pela primeira vez oficialmente nos anos 1990 e se refere àqueles cuja identidade de gênero flui, ou seja, ao mesmo tempo em que uma pessoa pode se identificar com o gênero feminino ela também pode fluir para o masculino e até para o neutro, entre outras variações. Geralmente essas mudanças são periódicas, e para cada indivíduo funciona de uma forma e com uma frequência diferente.
Identidades gênero-fluido fazem parte do leque não-binário , que contempla todas as pessoas transgênero que não se identificam 100% com o masculino nem 100% com o feminino. Ainda se fala pouco sobre essa identidade de gênero no Brasil, tanto que não há muita referência ou respaldo na ficção e até mesmo no campo intelectual e científico. Ainda assim, pessoas gênero-fluido conseguem criar redes de apoio, especialmente por meio da internet, e utilizam os espaços disponíveis para levar suas vivência até outras pessoas que façam parte dessa mesma parcela da comunidade ou que desejam saber mais sobre.
Como em qualquer processo de autoconhecimento, se questionar é muito importante. Porém, quando se trata da própria identidade, esse caminho pode ser – ou não – mais conturbado, a depender do ambiente no qual os indivíduos estão inseridos. Luisa Marchese, por exemplo, cresceu em um ambiente pró-LGBT, então os conflitos familiares não tiveram protagonismo na trajetória dela.
“Ambos os meus pais tem irmãos abertamente homossexuais então eu fui exposta à comunidade desde muito cedo. A primeira vez que eu comecei a me questionar sobre meu gênero eu tinha entre 12 e 13 anos; meu padrinho me apresentou 'RuPaul's Drag Race' e eu fiquei obcecada na época e até comecei a fazer drag. Eu sempre fui muito tímida, mas isso me ajudou tanto no meu processo criativo quanto a explorar novas faces de mim que eu não conhecia. E foi basicamente assim que eu comecei a pesquisar a respeito da não-binariedade e as suas identidades como o gênero-fluido, que foi com o que eu me identifiquei”, conta o iG Queer.
Gab Arrata, por sua vez, teve a influência dos amigos como apoio no momento de se descobrir. Ele começou explorando mais a própria expressão de gênero antes de realmente compreender a sua identidade. “Eu queria parecer andrógino”, explica. “Mesmo assim, ainda me considerava cisgênero. Quando me dizia que eu tinha uma aparência andrógina, ficava muito feliz. Depois de um tempo, comecei a conversar com meus amigos que são não-binários e me descobri aos poucos. Desde o começo o termo gênero-fluido se encaixou muito bem em mim”.
Contudo, há também os casos de quem não tem respaldo nem na família e nem nos amigos, como é o caso de Yuki Mizore, que enfrentou esse momento sozinha. “Foi um processo bem longo e confuso na minha cabeça”, conta. “Até os meus 16 anos, eu não sabia que existia o termo gênero-fluido. Desde criança eu tinha sentimentos estranhos sobre meu corpo e a minha aparência sendo uma garota. Quando vi um amigo meu se assumir trans e pedir que o tratassem com o pronome masculino e um nome diferente do que era usado antes, minha mente foi à loucura. Pensei: ‘Como assim? Você é um garoto?’. Não fazia ideia de que isso era real, e foi aí que começou minha jornada”.
Yuki inicialmente se assumiu como homem trans, mas a longo prazo não foi o que realmente funcionou. “Eu tinha certeza de que não era uma menina cis, mas aquele sentimento estranho não passava. Parecia que eu não era apenas um garoto. Eu não entendia do que se tratava, porque pensei que adotar pronomes masculinos e mudar minha aparência ia me deixar feliz comigo mesmo, mas não foi o que aconteceu. Percebi que não deixei de ser uma menina, nem deixei de ser um menino. Em alguns momentos, eu não me encaixava em nenhum dos dois. Essa confusão me perseguiu até os 16 anos, até que, na época, eu vi um vídeo de uma mulher no TikTok explicando o que era não-binariedade e gênero-fluido. Pronto, finalmente eu tinha um nome para a minha ‘confusão’”, relembra.
“Eu não era apenas um indeciso que não sabia quem era, muito menos um louco, como muitos taxavam”, ressalta Yuki. “Eu me identifiquei e me identifico com muito orgulho como uma pessoa gênero-fluido. Ainda tenho um longo caminho para trilhar nessa caminhada, principalmente porque minha família acha que isso não existe, mas eu não vou desistir. Esse sou eu”.
Como dito anteriormente, a falta de representatividade concreta faz com que essa identidade fique escondida na maior parte do tempo, ou vista de forma equivocada. Luisa diz que recebe alguns questionamentos curiosos, entre eles: “Um dia você acorda e decide ser menino e outro dia menina?”. “Eu acho engraçado porque, na maioria das vezes, é uma pergunta genuína. Comigo não é assim, mas não posso dizer por todos. Meu sentimento é mais interno e depende muito também do momento em que estou vivendo. Mas há dias em que sim, eu acordo, coloco um vestido e me acho horripilante e vice-versa”.
Ela chama atenção para o fato de que a luta gênero-fluido no Brasil ainda não possui raízes muito fortes, o que dificulta de muitas formas pautar esse tema e levá-lo até as pessoas de maneira mais orgânica.
“Internacionalmente eu até vejo bastante [essa discussão], mas no Brasil, não. Esse lado nunca foi muito levado a sério, até mesmo partes da comunidade às vezes não acreditam ou concordam. O atual governo [do presidente Jair Bolsonaro] também deu uma piorada na situação, então eu diria que a comunidade como um todo perdeu muito da liberdade e respeito que fomos conquistando com o tempo. Espero que os próximos anos as coisas se acalmem e essas pautas possam voltar a serem discutidas mais seriamente”.
Gab Arrata traz à tona que muitas pessoas ainda pautam o gênero de acordo com a genitália ou demais características biológicas, tópico que é tratado pela comunidade transgênero como um todo. “Eu tento explicar que meu gênero flui e que isso não está ligado à genitália, mas muitas pessoas ainda são apegadas a esses termos”, explica ele. “A principal coisa que eu ouço é: ‘Eu ainda te vejo como o gênero imposto ao nascimento’. Eu considero qualquer fator que invalide essa identidade como absurdo. O jeito como as pessoas tratam o pronome neutro e não aceitam que existe muito mais além do homem e da mulher chega a ser ridículo”.
Por falar em pronomes, vale ressaltar que pessoas gênero-fluido também podem ter preferência por pronomes masculinos, femininos ou neutros, e até mesmo alternar o uso deles, portanto é importante perguntar por qual pronome chamá-las quando não ficar claro no primeiro momento. Arrata chama atenção para o fato de que é mito que toda pessoa gênero-fluido usa o pronome neutro, por exemplo. “Nem sempre é certo”, observa. “Assim como há pessoas gênero-fluido que preferem apenas o pronome neutro, há outras que optam por outros pronomes ou que sequer tem preferências”.
Yuki Mizore conta que há muitos comentários transfóbicos envolvendo água que são direcionados às pessoas gênero-fluido. “O mais comum é: ‘Ah, você só está indecisa’, ou ‘então você é que nem água?’, ‘como é virar líquido?’, ‘como faz quando fica sólido?’. Além disso, as pessoas levam mais em consideração a roupa que estamos vestindo. Roupa não tem gênero. Não é porque alguém está fluindo para o feminino, por exemplo, que ela não pode usar uma roupa socialmente lida como ‘masculina’”.
“Já ouvi coisas do tipo: ‘Isso é para chamar atenção ou enganar as pessoas’, ou que ‘ser gênero fluido era uma desculpa por medo de transicionar’”, adiciona Luisa. “É desgastante às vezes não ser levado a sério, principalmente porque muitos gêneros-fluidos como eu não demonstram tanto visualmente, e por sermos ‘passáveis’ não acreditam nas nossas convicções. Independentemente da aparência as pessoas deveriam ser validadas”.
Gab Arrata destaca por fim que a falta de acolhimento e reconhecimento das identidades não-binárias não parte apenas de pessoas de fora da comunidade LGBTQIAP+, mas de dentro também. Esse tipo de violência também é pautada em certa rivalidade que coloca as pautas em conflito entre aqueles que deveriam ser os primeiros a se dar suporte.
“Queria que a identidade fosse mais respeitada no meio LGBT. Tenho a impressão de que grande parte das pessoas na comunidade não aceitam essa identidade, e isso incomoda muito, pois fragmenta ainda mais o movimento. Nós não deveríamos nos apoiar? Também queria que não tivesse competições de ‘quem sofre mais’. Cada sofrimento é diferente, não tem porquê medir a dor do outro só porque ele tem uma identidade que você não entende completamente”, conclui.
Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram! Clique aqui para entrar no grupo. Siga também o perfil geral do Portal iG .