Alistamento de pessoas trans depende da retificação de documentos

Advogada explica que todo homem, independentemente da identidade de gênero, precisa se alistar

Foto: Unsplash/Pixabay
A advogada Bruna de Andrade explica que o alistamento tanto, para mulheres quanto homens trans, só ocorre se no documento de identidade estiver sinalizado como gênero o masculino.

* Atualizada dia 06/11/2022 às 13h49

O alistamento militar no Brasil é obrigatório para homens entre 18 e 45 anos e o não cumprimento do dever implica em uma série de privações a direitos sociais como, se inscrever em concursos públicos ou assumir postos em cargos públicos, obter carteira de trabalho e resgistro de diploma de profissões liberais, entre outros, de acordo com o Serviço Militar Brasileiro.

Para muitos, a possibilidade de servir às Forças Armadas é um sonho de vida, enquanto para outros esta chance representa o medo de sofrer preconceito , como para as pessoas LGBTQIAP+. Muitos homens gays cis sentem receio de terem que enfrentar a LGBTfobia em quartéis, devido ao ambiente conservador de trabalho. Este medo pode ser ainda mais grave para pessoas trans, as mais marginalizadas e violentadas da sigla queer.

A advogada Bruna de Andrade, CEO e cofundadora da startup Bicha da Justiça - uma empresa de tecnologia que trabalha com educação sobre os direitos das pessoas LGBTQIAP+ e formação jurídica para empresas e advogados - explica que o procedimento de alistamento militar é obrigatório para todo homem, seja ele trans ou cis.

Contudo, para as pessoas da comunidade queer que transicionam, existe uma particularidade necessária: a retificação do documento .

"No caso de mulheres trans, se a transição documental tiver ocorrido antes dos 18 anos, elas não precisarão fazer o alistamento. Caso a retificação ocorra depois dos 18 anos, a mulher trans necessariamente precisará realizar o alistamento porque no período obrigatório [aos 18 anos], ela não estava com os documentos retificados para o gênero feminino", diz a especialista.

A assistente de marketing * Bianca, de 25 anos, afirma que aos 18 anos já tinha transicionado, contudo, seus documentos ainda não estavam retificados, então ela precisou passar pelo processo de alistamento. Ela lembra que a experiência "foi bem vergonhosa" por estar em um ambiente onde só havia homens, mas, na sua avaliação, não houve constragimentos, mas sim "apenas olhares diferenciados".

"Fui dispensada na mesma hora. Na época, eu fui assistida pela Defensoria Pública e informei na Junta Militar que iria entrar com ação judicial naquele ano para retificar meu nome nos documentos", diz. A assistente completa afirmando que só se alistou porque, para solicitar a retificação dos documentos, precisaria do Certificado de Dispensa de Incorporação (conhecido como Documento de Reservista).

Para mulheres trans existe um receio grande do procedimento de alistamento, o que faz com que muitas acabem "'mascarando' a identidade de gênero delas, quando já estão em transição", afirma a advogada Bruna de Andrade. Contudo, a profissional afirma que nunca recebeu em seu escritório um caso de transfobia explícita durante um alistamento militar.

"O que acontece muito são adolescentes meninas trans solicitarem a retificação dos documentos para não precisarem realizar o alistamento aos 18 anos", afirma.

Alistamento para homens trans

Foto: Pexels
O alistamento militar garante direitos como obter passaporte e assumir cargos em concursos públicos.


Em relação aos homens trans , a advogada Bruna de Andrade explica que se a retificação dos documentos ocorreu antes dos 18 anos, eles são obrigados a realizar o alistamento, contudo, caso a alteração dos documentos ocorra após os 18 anos, o alistamento é obrigatório a partir da alteração dos documentos. 

Assim como para as mulheres trans, a advogada defende que os homens trans também sentem muito receio ao realizar o procedimento.

"Em relação aos homens trans, por exemplo, o alistamento nem sempre é imediato à retificação dos documentos, mas sim quando eles precisam comprovar a quitação militar para obter algum direito, como tirar passaporte ou ingressar em alguma universidade. Isto ocorre por conta do medo de sofrer transfobia , já que as instituições militares ainda são muito conservadoras", afirma.

O consultor de viagens Thomaz Vidal Guimarães Andrade, de 23 anos, conta que estava "muito nervoso" quando realizou seu alistamento neste ano. Mesmo com a passabilidade , já que se identifica como um homem trans desde os 18 anos, além do tratamento hormonal que faz desde o ano passado, um dos seus receios era o de que a experiência fosse diferente da que ocorre com homens cis.

"Não há muitas informações sobre como é o processo para homens trans no alistamento militar e os meus amigos trans ainda não tinham passado [pela experiência]. Eu estava muito apreensivo sobre o que poderia vir a acontecer", afirma.

Contudo, o consultor de viagens diz que o procedimento foi tranquilo, o que o surpreendeu.

"O militar que estava fazendo o processo para encaminhar os meninos para os exames médicos falou comigo em privado perguntando se o meu alistamento era por conta da retificação da certidão de nascimento e foi superatencioso, assim como toda a equipe médica também. Logo, nesse caso, eu não precisei passar pelo exame ao qual teria que ficar sem roupa, fui dispensado ali mesmo", conta.

Thomaz critica a falta de informações sobre o alistamento de homens trans, o que o deixou com muitas dúvidas e receios de como o procedimento iria acontecer, além dele ter lido muitos relatos de transfobia, o que o deixou apreensivo.

"A maioria das coisas que se acham na internet são bastantes rasas e só explicam sobre como iniciar o processo, antes de fato você precisar comparecer ao Exército. Vi muitos relatos de transfobia e também da obrigação de tirar a roupa mesmo a pessoa informando que era trans. Acredito que isso tenha me gerado esse pânico e que também gere esse medo em muitas outras pessoas trans", diz.

O consultor de viagens conta que mesmo tendo sido dispensado, a partir da experiência, ficou interessado na carreira militar.

"Eu não tinha o desejo de seguir a carreira, mas não irei mentir que fiquei com vontade quando vi as oportunidades de empregos que existem lá dentro, e que fazem parte do meu interesse profissional. Aqui de fora a gente pensa que é só de militar que se compõe o nosso Exército, mas existem muitas outras oportunidades, inclusive em áreas da arte, o que eu achei incrível", finaliza.

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) criou, em 2018, um guia sobre o alistamento militar para pessoas trans que pode ser conferido  neste link.

O iG Queer procurou o Serviço Militar Brasileiro para obter informações específicas sobre o alistamento para pessoas trans, mas até a publicação desta matéria não houve resposta.

* Bianca é um nome fictício. A entrevistada preferiu não ter sua identidade revelada.


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