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Lógica capitalista impulsiona falta de consciência de classe de LGBTs

A ausência de noção coletiva e foco no lucro às custas das pautas de gênero e sexualidade dificultam que estes indivíduos reconheçam as próprias mazelas

Foto: Brett Sayles/Pexels
É preciso compreender as nuances da comunidade e o que está por trás da alienação de muitos LGBTs com relação à políticas públicas

Falar da organização e  luta LGBTQIAP+ em prol dos seus direitos e liberdade de acesso aos meios de manutenção da qualidade de vida é falar, também, de consciência de classe. Este termo, usado principalmente no ramo das ciências sociais e na teoria política, em especial no âmbito marxista – que será melhor explicado ainda neste texto –, designa uma série de atitudes do indivíduo acerca da classe social ou econômica à qual ele pertence. 

Pode-se dizer, então, que a consciência de classe inclui, entre outras particularidades, a capacidade de cada um de se situar na sociedade e identificar as mazelas e opressões impostas pelo Estado sobre si e sobre aqueles que compartilham da mesma classe social. A socióloga Silvia Guayaná-Muiramoni resgata estes conceitos básicos que vão embasar toda a discussão. 

“A definição de classe social sempre está relacionada ao sistema capitalista”, explica ela. “Dentro desse sistema, existem padrões nos quais as pessoas precisam se enquadrar socialmente. Se formos considerar as sociedades indígenas , por exemplo, a questão coletiva é muito mais presente do que a divisão de classes; é uma lógica mais colaborativa. Em vista disso, é importante dizer que a consciência de classe está relacionada ao sistema econômico e social sob o qual determinada sociedade foi construída”. 

Para compreender a influência do capitalismo nessa lógica, é importante resgatar os conceitos do marxismo, que é um método de análise socioeconômica desenvolvida por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Segundo Marx, no modo de produção capitalista, que atualmente é o sistema dominante no planeta, existem duas classes sociais: a burguesia, que é dona dos meios de produção, e o proletariado, aquele que vive da força de trabalho, ou seja, que ganha salário, se formos exemplificar de maneira mais prática. É importante ressaltar que na perspectiva de Marx a classe social não diz respeito a quanto ela ganha, e sim ao papel dela no sistema produtivo.

O marxismo reconhece que o capitalismo se baseia principalmente na luta entre essas duas classes, pois a burguesia, que detém não apenas os meios de produção, mas também concentra as riquezas, sempre irá oprimir o proletariado, uma vez que necessita da força produtiva dele para que as indústrias funcionem. Em vista disso, as péssimas condições de trabalho, por exemplo, são uma das formas de violência exercida pela burguesia, pois quem depende de um salário para sobreviver obrigatoriamente se submete às relações de exploração para não morrer de fome.

Para o marxismo, não existe uma forma de conciliar os interesses das duas classes, pois elas, além de antagônicas, estão dentro de um processo de produção que visa o acúmulo infinito de capital – riquezas –, logo a exploração é única forma de conseguir extrair cada vez mais recursos naturais e força de trabalho.

Há muitos textos de Marx que analisam com maior profundidade as contradições e mazelas do capitalismo, mas o tópico mais conhecido acerca do trabalho dele é o comunismo, ideologia que defende uma sociedade livre de classes sociais, sem propriedade privada dos meios de produção e sem Estado. Porém, para atingir esse ponto, Marx determina que é preciso que os proletários tomem os meios de produção, acabem com a burguesia enquanto classe e implementem o socialismo, que consiste em uma fase transição entre o capitalismo e o comunismo, até que este vigore. 

Tendo em vista esta breve contextualização, Silvia traz à tona que o Brasil, assim como muitos outros países do mundo, foi colonizado, então desde aquela época os padrões cis-heteronormativos já eram impostos. 

“Os portugueses chegam, se deparam com toda diversidade de cores, peles, cultura, sexualidade, espiritualidade e dizem: ‘Isso está errado, vamos ensinar para vocês a forma certa de viver’. A partir daí, esse povo estrangeiro estabelece uma história única, e por meio desse silenciamento podemos pensar no quanto é difícil para a pessoa LGBT se situar na sociedade”, expõe. 

“Toda voz precisa primeiramente da consciência de si. É um processo muito conflituoso porque você primeiro tem que entender a si mesmo e desconstruir aquilo que foi imposto a você para se estabelecer em bases fiéis a quem realmente é para depois desenvolver a consciência de classe”, desenvolve. 

A especialista volta para a lógica capitalista e como ela alimenta uma alienação sistêmica. Uma vez que este modo de produção visa o acúmulo do capital por meio da exploração da força de trabalho, a burguesia precisa que os proletários, que incluem por sua vez grupos socialmente marginalizados, como a comunidade LGBT, mantenham-se “mansos”. Para isso, a percepção do impacto social precisa ser esvaziada. 

“O sistema em que a gente vive alimenta uma ideia de meritocracia e desconstrói a noção de coletivo. Ela ‘premia’ e ‘recompensa’ dentro de um entendimento individualista do mundo de que ‘esse indivíduo vai trilhar o próprio caminho e se tornar um campeão’. Desde a primeira alfabetização, aprendemos na escola que precisamos ser melhor do que os outros para sobreviver. Claro, essa é uma questão de socioeducação, mas está ligada ao capitalismo e é interiorizada como algo natural. A prova disso é que ver alguém em situação de rua, por exemplo, faz com que os outros pensem que é um problema específico daquele indivíduo e não uma problemática coletiva de distribuição de renda”, explica. 

É dentro dessa estrutura que as pautas LGBT são negligenciadas. O  pink money – “dinheiro rosa”, em tradução livre – é um bom exemplo. As grandes marcas e empresas costumam, especialmente em junho, durante Mês do Orgulho, lançar  campanhas e iniciativas de apoio à comunidade LGBTQIAP+ que não existem no resto do ano . Essa ação, por sua vez, reflete em lucros ao invés de realmente beneficiar essa parcela da população. 

Em 2017, a Out Leadership, coalizão global de empresas para a igualdade LGBTQ+, apontou que o público LGBT é responsável por 7% do PIB brasileiro. Já um estudo de 2018 desenvolvido pela LGBT Capital, focada no setor de consumo desse grupo, aponta que a comunidade faz circular 3,7 trilhões de dólares.

“Pessoas LGBT sofrem dentro e fora de casa,  nas relações trabalhistas, são hostilizadas e estão majoritariamente ausentes das discussões acadêmicas , mas a visão que se tem é ‘que pena, mas isso não tem nada a ver comigo’. A questão sempre volta para o individualismo alimentado pelo modo de produção capitalista”, aponta a especialista. 

O impacto na prática

Levando em consideração que o sistema despe pessoas LGBT da consciência coletiva e da politização da própria existência, vale observar de que modo isso interfere no movimento e no dia a dia da comunidade.  Lucas Der Leyweer é um homem cisgênero, gay, preto e trabalha como escritor. Para ele, a principal discrepância está na forma como muitos indivíduos da comunidade não enxergam as diferentes vivências dentro do mesmo grupo.

“Alguns gays brancos e padrões dizem nunca ter sofrido homofobia, mas os gays pretos da periferia sofrem. Todo mundo deveria se unir para combater a LGBTfobia e ter consciência de que alguns podem estar mais acima e não sentir a homofobia tanto quanto quem está embaixo, mas ela não deixa de existir e não deixamos de ser da mesma comunidade”, diz ele.

Lucas adiciona ainda que pessoas LGBT inevitavelmente irão ser atingidas pela LGBTfobia, mesmo que seja em grau diferente ou que a pessoa em questão não perceba. “O preconceito vai te atingir de algum jeito e em alguma fase da sua vida. O pior é que às vezes sequer notam. É triste como [LGBTs] podem ser tão alheios com relação a isso, principalmente os que só andam com pessoas hétero-cis e nem percebem que estão sendo usados de chaveiro para o heterossexual alegar que não é homofobico porque ‘tem amigos que são gays’”. 

O escritor também traz à tona para o debate a alienação e o fato de que muitas pessoas LGBT, tanto por falta de acesso à educação quanto por ausência de interesse ou falta de estímulo, não entendem a própria história do movimento e de que lado elas foram colocadas ao longo dos ano – o lado da “ameaça à família tradicional”. 

“Eu vejo muita gente que não parece se ligar que nos anos 1960 e 1970 os gays, lésbicas, pessoas trans, travestis e pessoas pretas sequer podiam abrir a boca para falar alguma coisa, senão seríamos os primeiros a morrer ou sofrer silenciamento. Sem falar que quem se coloca de fora do debate e não reconhece as violências que a gente sofre está indo contra exatamente tudo pelo qual a comunidade luta”, diz. 

Lucas, que também é nordestino, afirma que desde sempre desenvolveu a própria consciência de classe por estar exposto constantemente à repressão do Estado e testemunhar como pessoas LGBT são excluídas de todo e qualquer espaço que contribua com a manutenção da qualidade de vida. 

“Eu moro em um bairro muito marginalizado, então sei de onde eu venho. As pessoas não são iguais entre si, eu não posso deixar de pensar no outro. Quando vejo uma pessoa LGBT branca e sem consciência de classe eu muitas vezes entendo que nem ela sabe do que está falando, é apenas uma reprodução do que foi ensinado para ela. Por outro lado, eu, dentro da minha realidade, já  fui expulso de casa por ser gay e todo mundo acha que é ‘mi-mi-mi’. Por isso, eu tento, por meio do meu trabalho e dos meus livros, mostrar a realidade de um homem preto e gay. Acho possível, inclusive, que estes materiais ajudem quem ainda não cultivou consciência de classe a aprender mais sobre a própria comunidade”, aponta. 

Como combater a despolitização? 

A presença crescente de pessoas LGBTQIAP+ ativas politicamente contribui não apenas para a criação de políticas públicas que amenizem os efeitos do sistema capitalista de produção na vida desta população, mas também para a conscientização individual que pode fazer toda diferença e incentivar organizações populares mais consistentes. 

Jaqueline Gomes de Jesus , professora, psicóloga, escritora e mulher trans fala ao iG Queer o que está sendo feito em prol das realizações citadas acima. “Ano retrasado fui convidada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para integrar um grupo de acadêmicos cujo objetivo era refletir sobre os acessos de grupos historicamente discriminados no processo eleitoral e na participação política deles”, começa ela. “O que se observa é que esses grupos, em especial mulheres negras e pessoas LGBT, se organizam dentro das suas comunidades, isoladamente, mas se organizam. O grande desafio é o salto para uma participação política institucional”. 

A especialista aponta que não apenas os partidos políticos como também o âmbito acadêmico são majoritariamente “avessos” a pensar na comunidade LGBT como um grupo que debate e que deveria não ter só o direito enquanto eleitorado, mas enquanto pessoas que podem se eleger. 

“É importante que não seja só uma pauta do movimento social, mas que os partidos políticos estejam engajados também e que empoderem pessoas LGBT nesses espaços. No caso das mulheres, por exemplo, elas precisam estar em outras áreas a não ser a Secretaria da Mulher. Por que as mulheres não podem discutir economia ou habitação, por exemplo?”, questiona. 

“Não podemos deixar de fora que a comunidade LGBT dialoga diretamente com o capitalismo”, ressalta Jaqueline. “O pink money é uma prioridade muito maior do que cidadania e acesso à renda, e a situação é sempre mais 'puxada' [positivamente] para o lado dos homens gays cis e brancos. Temos muitos recortes dentro da comunidade, e a precariedade de renda para a população negra, por exemplo, é massiva com ou sem os marcadores de gênero e sexualidade. A cidadania mediada pelo capitalismo e pela capacidade de consumo impacta no imaginário coletivo porque o fato de você consumir alguma coisa não quer dizer que o sistema te reconhece como cidadão”. 

Jaqueline ressalta que uma das primeiras siglas da comunidade, GLS (Gays, Lésbicas e simpatizantes), foi criada com um objetivo comercial acima de tudo. “Esse nunca foi um termo militante e sim ligado ao fluxo de consumo, especialmente em bares e boates, o que denota essa falta de compreensão política e identitária que é fundamental para essa população. A comunidade LGBT é formada por vários grupos de orientações e identidades, por isso é importante falar de uma formação política que vá além de decorar uma sigla. O foco precisa estar nas nossas necessidades”, conclui.

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