Termo “passável” é ruim? Veja o que as pessoas trans dizem sobre isso

A “passabilidade” dentro da comunidade transgênero ainda não possui um consenso, mas é importante ressaltar todos os elementos que fazem parte deste debate

Entenda quais são as considerações acerca da passabilidade entre pessoas trans
Foto: Sharon McCutcheon/Pexels
Entenda quais são as considerações acerca da passabilidade entre pessoas trans


Dentre o vasto  dicionário de palavras relacionadas à comunidade transgênero, o termo “passável” pode dividir opiniões. Em resumo, essa expressão se refere ao quanto uma pessoa trans se aproxima dos estereótipos estéticos atribuídos ao gênero com o qual ela se identifica, ou seja, quanto mais perto ela está dessa expectativa mais “passável” ela é. A princípio parece algo simples e, de certo modo, inofensivo, mas existe toda uma discussão por trás desse termo que se relaciona diretamente aos corpos trans e como eles se expressam e se colocam perante à sociedade.

Keila Simpson , presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) , define a passabilidade como “passar despercebido pela multidão”. De acordo com ela, “algumas pessoas trans conseguem andar livremente sem deixar evidente a própria transgeneridade. No meu caso, por exemplo, tenho uma passabilidade razoável. Eu transito nos espaços e sou sempre lida com o gênero feminino. Isso me incomoda um pouco porque eu queria poder confrontar mais esse estigma que vive dentro dos indivíduos, mas para muitas pessoas trans a passabilidade é fundamental, pois assim ela vai desviar de vários preconceitos no meio em que vive”, declara. 

Ainda segundo Keila, a passabilidade permite que pessoas trans possam evitar certos tipos de situações e desconfortos a partir do momento que se aproximam da expectativa estética do gênero com o qual se identificam. “Ela [a passabilidade] só vai ser confrontada quando a pessoa precisar se apresentar em algum lugar com os documentos e eles não estiverem retificados. A partir dali, pode sim começar a discriminação”. 

Dentro desse contexto, o que pode vir à tona também é a diferença de abordagem de uma pessoa trans “passável” e de uma pessoa trans “não passável”. Yuri Carvalho Ferreira é um homem trans e conta que já saiu com um amigo que também é transgênero e ele não recebeu o mesmo tratamento simplesmente por não ter barba. 

“Cheguei em um lugar com esse amigo, que não tem passabilidade nenhuma, e nós dois nos referimos no masculino. A pessoa me tratou pelos pronomes corretos, mas não fez o mesmo com ele. Eu corrigi, falei: ‘é ele também’. Percebi que o tratamento comigo era um e com ele era outro”, explica. “Eu me senti mal porque acho que isso acabou dando um gatilho nele”. 

Yuri expõe ainda que já viu situações semelhantes a essa acontecerem dentro do próprio meio transgênero, o que torna essa questão ainda mais delicada – já que, em teoria, a comunidade deveria ser um meio seguro para todo mundo. “Eu já vi casos de meninos que têm passabilidade tratarem o outro com indiferença por ele não ser passável. Eu acho isso extremamente egoísta e preocupante porque você faz com que o outro tenha gatilhos relacionados à própria disforia, além de fazê-lo se sentir inferior. Já presenciei grupos de meninos desfazendo de alguém por não ter barba, por não ter feito mastectomia ou por não ter a voz grossa. Isso não é legal. Cada um tem que respeitar o outro pelo que ele é”, declara. 

Theodoro Arturo Sousa também é um homem trans e relatou ao iG Queer que recebe olhares bastante analíticos nos locais em que frequenta. De acordo com ele, as pessoas ficam muito atentas à aparência e a utilizam para guiar como irão se referir a ele. “As pessoas na rua, por exemplo, me olham de cima a baixo, e se encontram qualquer característica ‘feminina’, vão adotar o pronome feminino, mesmo que eu me apresente como homem. Ou então sempre ficam encarando, pois de um ângulo ‘parece homem’, e de outro ‘parece mulher’”, explica. Para ele, pessoas trans consideradas “não passáveis” estão mais vulneráveis a sofrer violências diretas. “Quem não é passável sempre tem de corrigir as pessoas em relação aos pronomes, nomes ou até mesmo ficar respondendo perguntas inapropriadas para a ocasião, pois isso vira o centro das atenções”. 

Outro ponto levantado por Theodoro é a autocomparação. De acordo com ele, é comum que pessoas trans que não possuem grande passabilidade se comparem com as que possuem, o que afeta diretamente a autoestima e a autoconfiança. “Quando você não é passável, sempre se compara com pessoas passáveis. Digo isso pois já aconteceu comigo. Não podemos nos comparar com outras pessoas, pois cada um é cada um, mas essa comparação acontece de modo inconsciente. A autoestima fica muito abalada e acabamos bastante vulneráveis. Isso faz pessoas trans não passáveis sofrerem bastante, por dentro e por fora”. 

Cíntia Araújo é psicóloga e comenta o quanto ser reconhecido por quem realmente é afeta não apenas a autoestima em si, mas também contribuiu para a afirmação pessoal de que de fato é parte do ambiente em que está inserido: “Uma vez que uma pessoa trans é lida e reconhecida pelas pessoas em seu entorno, ela se sente respeitada e pertencente, uma coisa que deveria acontecer sempre. Isso reforça a autoestima dela, de fora para dentro, e vira chaves de dentro para fora, fazendo com que a autoconfiança, por exemplo, seja potencializada”. Ainda de acordo com ela, a “autoconsciência, autoaceitação, autoafirmação e a autorresponsabilidade são necessárias para que confiemos em nós mesmos”. 

Para Tatto Oliveira, homem trans, uma realidade muito pesada para pessoas trans “não passáveis” é a constante pressão para que estejam de acordo com o padrão estético esperado do gênero com o qual se identificam. Esse é um fator experienciado por quaisquer pessoas transgênero, mas as que estão mais longe dele acabam sentindo um mais.

“Isso acontece não só pela aparência, mas por não se enxergarem e acabam travando uma batalha interna sobre como querem ser vistos. Durante a infância, eu queria me parecer com George Clooney, mas as nossas genéticas são completamente diferentes. Fui me adequando ao meu olhar e não mais ao olhar do outro, e tem sido uma experiência incrível. Se olhar e se enxergar faz toda diferença”, relata. “A transição é individual e não precisa ser como uma receita de bolo. Cada um se percebe da sua forma, e é rico ver a pluralidade de corpos”. 

Afinal, o termo “passável” é bom ou ruim?

Esse é um debate que ainda não possui consenso entre a comunidade transgênero. Para algumas pessoas, o termo “passável” e “não passável” acaba sendo prejudicial às próprias pessoas trans, já outras reconhecem que esse fator tem grande importância para algumas vivências. 

No entendimento de Yuri, a classificação “passável” e “não passável” possui um cunho negativo. “Ser passável te impede de sofrer transfobia e agressões imediatas, o que é bom, mas quando se está no meio de meninos não passáveis, isso pode causar desconforto. Existe o risco de despertar neles o desejo de ter uma maior passabilidade, principalmente porque muitos deles podem se sentir inferiores, o que para mim não é legal. Todos nós lutamos por objetivos em comum, então se fulano não tiver barba e eu tenho, ele não está abaixo de mim, da mesma forma que se ele tem voz grossa e eu tenho voz fina, isso não faz de mim menos homem do que ele”, explica. “Essa questão de passabilidade é muito complicada. Algumas pessoas acham que eu sou passável, mas eu não concordo com isso. Às vezes eu entro em algum estabelecimento e sou tratado no masculino, já em outros locais as pessoas me olham diferente quando eu falo, porque tenho uma voz fina, mas continuam me tratando no masculino porque tenho barba. É uma balança de dois pesos”. 

Por outro lado, Keila Simpson relata ao iG Queer que não consegue dizer com precisão se a passabilidade é algo positivo ou negativo. De acordo com ela, essa é uma questão que desperta significados diferentes de pessoa para pessoa, então não há espaço para bater o martelo sobre o quanto os termos “passável” e “não passável” são bons ou ruins. 

“No meu caso, eu não gosto muito dessa passabilidade que eu transmito, mas para outras pessoas pode ser bom. Muitos vêm de um contexto de exclusão, de preconceitos e de violências, então quando conseguem atingir certa passabilidade se torna mais fácil transitar na sociedade e não sofrer tantas agressões, esse é o ponto positivo. Para mim, dentro do meu contexto, o fator negativo é não poder confrontar mais pessoas no dia a dia e fazer com elas consigam compreender a dimensão das vivências trans. De modo geral, não dá para dizer se é bom ou ruim. Existem tanto os aspectos positivos quanto os negativos”, conclui.

Agora é possível acompanhar todas as notícias do iG Queer: é só  entrar no nosso grupo do Telegram