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“A maioria das pessoas trans ainda está na rua”, diz Jup do Bairro

A multiartista fala sobre a relação do corpo com seus projetos artísticos, escrita do primeiro longa, vivência travesti e expectativas para o Lollapalooza 2022

Jup do Bairro: 'Continuo sendo um corpo sem juízo e insisto em existir da minha maneira'
Foto: Isac Oliveira
Jup do Bairro: 'Continuo sendo um corpo sem juízo e insisto em existir da minha maneira'

A multiartista Jup do Bairro vai subir ao palco do Lollapalooza Brasil no dia 26 de março deste ano, mesmo dia em que se apresentam nomes como Miley Cyrus, A$AP Rocky, Alok e Emicida – e o primeiro a ter os ingressos esgotados. Jup, que tem uma carreira extensa e reconhecimento como uma das principais artistas travestis da atualidade, se apresentou em palcos importantes como este; no entanto, é mais um espaço que vai poder ocupar como um corpo travesti e, como ela mesma define, sem juízo.

“Vai ser um momento muito importante não só pra mim, mas para criar possibilidades de identificação com corpos que se reconhecem no meu”, afirma Jup em entrevista ao iG Queer. O motivo para isso é o fato de o Lollapalooza ser considerado um dos principais festivais de música do mundo. “Quero que olhem para mim e para a minha banda e digam: ‘Como elas não estiveram aqui antes?’”, diz, refletindo o número ainda baixo de pessoas trans em festivais de grande porte.

Para a artista, o ano de 2022 tem simbolizado uma grande esperança no que está por vir e acredita que terá muito para celebrar. “Sinto que estou em um dos melhores momentos da minha carreira no pior cenário do país, como uma cavaleira do apocalipse”, compara.

Seu primeiro e elogiado álbum solo, “CORPO SEM JUÍZO”, completa dois anos e ela se prepara para dar continuidade a essa narrativa em “in.corpo.ração”, o segundo disco. Jup olha para o primogênito com orgulho. “[O álbum] envelheceu muito bem. Pude experimentar e sentir situações que nunca imaginava. Realizei sonhos sem ao menos ter sonhado”.

Para somar às narrativas de seus últimos trabalhos, a artista também tem se jogado em outro tipo de linguagem: o cinema. Atualmente, Jup está trabalhando no roteiro de seu primeiro musical, já intitulado como “JUÍZO FINAL”.

O corpo, principal fonte de inspiração de Jup, é para ela a obra prima mais complexa da arte e um assunto que ela pretende continuar desconstruindo, “principalmente os corpos abjetos, marginalizados e fora da hegemonia se tornando um corpo objeto, produto”. Entre esses corpos estão os de pessoas pretas, travestis e trans, as principais fontes de inspiração da cantora.

Em seu ponto de vista, a comunidade trans e travesti tem dado muitos passos importantes para a visibilidade e a conquista de direitos. Além de si mesma, ela cita Assussena, Glamour Garcia, Mel Gonçalves e Linn da Quebrada, grande amiga que está no “BBB 22”, como exemplos, mas também exceções. “A maioria desses corpos ainda está na rua, sobrevivendo na margem e sem outra alternativa”, lembra.

Sabendo disso, aí é que está o objetivo de Jup, Linn, Mel e tantas outras travestis com papéis de destaque. “Infelizmente não existe espaço para todas, então precisamos entender que se há uma brecha, é possível implodir”.

Foto: Isac Oliveira
Após 'CORPO SEM JUÍZO', Jup do Bairro se prepara para lançar o segundo álbum, 'in.corpo.ração', e escreve o primeiro longa-metragem, 'JUÍZO FINAL'

iG Queer: Como você definiria o momento que está vivendo no início de 2022?

Jup do Bairro: Eu tenho me dado o luxo de explorar a contradição, entender que em momentos vai estar tudo certo, outros serão tudo surto. E assim vou caminhando. Sinto que estou em um dos melhores momentos da minha carreira no pior cenário do país, como uma cavaleira do apocalipse. Mas de certa forma, me sinto preparada e porosa. Acredito que teremos momentos de muita celebração depois desses anos de angústia. Outubro está aí.

iG Queer: Esse ano, “Corpo Sem Juízo”, sua estreia solo, vai completar dois anos de vida. O que mudou de lá para cá em você?

Jup do Bairro: “CORPO SEM JUÍZO” tem envelhecido muito bem. Passou tão rápido. Me lembro de 2019, quando lancei a campanha de financiamento coletivo do EP, ano caótico de uma guerra cultural que mal imaginávamos onde ia dar e eu com muita sede de criar, fazer, mostrar. Mostrei e desde então tudo tem sido diferente, mas a vontade de fazer e contar história não. Os desdobramentos de “CORPO SEM JUÍZO” vem aí com “in.corpo.ração”, que é o título do meu próximo disco. Quero investigar o que vai para além do corpo, da nossa mente. Afinal, mente é corpo? Corpo é mente?

iG Queer: Você ainda se vê como um corpo sem juízo? Acha que essa é uma definição que “ficou para trás” ou sempre será uma definição presente para você?

Jup do Bairro: Um corpo sem juízo é um corpo pertencente a si, sua história, trajetória, potências e fragilidades sem uma regra punitivista judaica-cristã. Um corpo em movimento, um corpo presente ao seu tempo e espaço. Eu continuo sendo um corpo sem juízo e insisto em existir da minha maneira, mesmo sendo uma maneira outra.

iG Queer: No último ano você lançou alguns singles e fez parcerias com nomes como Irmãs de Pau, Fresno e Pitty, por exemplo. São artistas que estão em nichos muito diferentes. Como foi para você trabalhar com essa galera? Te proporcionou liberdade no sentido de transitar por outras sonoridades e temas?

Jup do Bairro: Eu gosto muito de colaborações, de juntar ideias e criar uma terceira via a partir do encontro. Apesar de serem corres totalmente diferentes, todos eles fazem sentido pra mim, principalmente por admirar todas essas e outras participações que fiz no ano passado, mas também por criar e imaginar com essas pessoas que admiro.

iG Queer: Suas narrativas exploram o seu próprio corpo e suas experiências, mas não só. Você comunica os desejos, preocupações e questionamentos de corpos diversos, principalmente os lidos como “inadequados”. Essa narrativa se transformou para você de alguma forma?

Jup do Bairro: O corpo é a obra-prima mais complexa da arte, principalmente os corpos abjetos, marginalizados e fora da hegemonia se tornando um corpo objeto, produto. Hoje continuo entendendo onde meu corpo e suas características podem chegar e vou além de onde ele pertence. Acredito que todo mundo se sente pertencente a algo ou alguém. Eu quero pertencer a mim, entender o interior e explorar o exterior. Como meu próprio "Médico e Monstro".

iG Queer: Existe alguma outra temática, preocupação ou problemática que tem sido nova para você e que deve explorar no futuro? Além da música, existe algum outro projeto ou formato ao qual você esteja se atraindo agora?

Jup do Bairro: Com “CORPO SEM JUÍZO”, eu pude experimentar e sentir situações que nunca imaginava. Realizei sonhos sem ao menos ter sonhado. Nessa trajetória, uma pergunta ecoou na minha cabeça: “Qual é o meu sonho?”. A vida talvez tenha me feito imediatista, “vivendo o hoje”, e a arte me faz pensar no futuro como uma extensão do presente. Quero projetar e construir o que ainda não imaginei. Nesse momento, estou escrevendo um longa-metragem musical chamado “JUÍZO FINAL”, uma outra camada da arte que ainda não vive e estou sedenta para me aventurar.

iG Queer: Falta pouco mais de um mês para você pisar no palco do Lollapalooza Brasil, considerado um dos maiores palcos do Brasil mas que, ainda assim, conta com pouca presença de artistas trans, travestis e transmasculinas no line-up. Para você, qual o significado de ocupar esse espaço?

Jup do Bairro: Eu não quero apenas ser a representação da representatividade, mas quero ser repertório. Quero que olhem para mim, para a minha banda e digam: “Como elas não estiveram aqui antes?”. Vai ser um momento muito importante não só pra mim, mas para criar possibilidades de identificação com corpos que se reconhecem no meu.

iG Queer: Seja em um reality, seja em um dos palcos mais importantes do Brasil ou conquistando mais espaço na indústria musical, na internet e no ativismo, como você julga importante a presença de travestis e pessoas trans nesses locais?

Jup do Bairro: Temos muito a comemorar, todas as vitórias de pessoas trans e travestis como o acesso em lugares que eram inimagináveis para esses corpos. Mas precisamos mencionar o fato de que Linn da Quebrada, Mel Gonçalves, Assussena, Glamour Garcia e Jup do Bairro ainda são exceções. A maioria desses corpos ainda está na rua, sobrevivendo na margem e sem outra alternativa. Infelizmente não existe espaço para todas, então precisamos entender que se há uma brecha, é possível implodir.

iG Queer: Do ponto de vista político e social, quais são suas expectativas para o ano de 2022? O que você espera que aconteça que possa contribuir para os contextos em que você está inserida?

Jup do Bairro: Travestis milionárias, churrasco e Lula 2022!

** Camila Cetrone é formada em jornalismo. Desde 2020, é repórter do iG e tem experiência em coberturas sobre cultura, entretenimento, saúde, turismo, política, comportamento e diversidade; com ênfase em direitos das mulheres e LGBTQIA+, na qual está inserida como bissexual. É autora do livro-reportagem “Manda as Bicha Descer”, resultado da apuração de um ano na casa de acolhida LGBT Casa 1, no centro de São Paulo. Coleciona livros, vinis e estuda cinema nas horas vagas. Ama contar e ouvir histórias, cantar mal no karaokê e memes autodepreciativos (jura que faz terapia).