Militante histórico do movimento LGBTQIA+ relança “Seis balas num buraco só”, livro seminal de 1998 sobre a crise do masculino, tema que considera ainda mais urgente ser discutido após a ascensão conservadora no Brasil de Bolsonaro.
O que mudou nestas duas décadas para motivar a ampliação e o relançamento de “Seis balas num buraco só”?
A heteronormatividade está mais acuada e a estrutura patriarcal se sentindo mais fragilizada. Nestes vinte e três anos, testemunhamos uma reação muito mais poderosa e articulada ao masculino tóxico. Não estamos nem de longe em uma situação confortável, até por conta de quem está no poder em países importantes, como o Brasil, mas a vida cotidiana não é mais tão confortável para o masculino hegemônico.
Reescrever o livro fez o senhor repensar sua relação com o masculino?
Sim. Aos 77 anos, sei que não tenho problema com o masculino, embora, ou talvez até por isso mesmo, meu lugar, nele, não seja confortável. Tenho as minhas dores. Desde pequeno tive de encarar o lado não consagrado pela normatividade heterossexual. Fui jogado num rio sem saber nadar por parentes aos 9 anos pra “aprender a ser homem”. Sou homem, mas não do jeito deles. Repensar o masculino deveria ser uma questão prioritária para todos nós, pois afeta toda a sociedade. Não escrevi um manual sobre como resolver as feridas do masculino, não tenho essa pretensão, mas, por exemplo, analisar o Bolsonaro a partir desta ótica é crucial. E quem é que está falando nisso, cara? Ninguém.
A aprovação esta semana da celebração do Dia do Orgulho Hétero pela câmara de vereadores de Cuiabá ilustra bem seu ponto?
Sim. Estes vereadores querem celebrar o medo do fracasso, de perder o que veem como “espaço de direito”. Por um lado, é uma tremenda bobagem. Por outro, é admirável.
Como assim?
Admirável pois esses grupos hegemônicos estão explicitando publicamente seu desconforto, o acirramento da crise, que detectei na pesquisa para a nova edição do livro. Na Índia, por exemplo, a cultura do estupro tomou proporção ainda mais assustadora, com o aumento sensível de casos de violência sexual contra mulheres e crianças documentado pela imprensa local. E, no Brasil, entraram em cena novos atores que agravaram a epidemia do masculino tóxico.
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Que atores são esses?
O negacionismo é um deles. Para o macho negacionista, a realidade é ele quem cria, só vê o que quer. Nos anos 1990 as forças reacionárias não eram tão organizadas como hoje. Os neopentecostais estão instalados no Congresso. E, como consequência desta bancada, o bolsonarismo.
A eleição de 2018 foi um divisor de águas para que a masculinidade tóxica ficasse ainda mais exposta?
Sim, ela se instalou no Planalto. Escrevi um capítulo novo no livro, “A revanche do masculino falocrata”, dedicado ao tema. Quem governa o Brasil hoje é um macho desequilibrado e completamente desadaptado ao seu tempo e ao seu próprio país. E muitos de seus seguidores entram na mesma vibração da negação da realidade, incapazes de lidar com a ideia freudiana do pânico da castração. E como Bolsonaro dá representação a todos os temas que se podem colocar na caixinha do masculino tóxico, imagine o nível de loucura, de paranoia mesmo, que essas pessoas vivem. Estão desesperadas com a ideia fixa, irracional, de que seu falo está ameaçado mais do que nunca.
Por outro lado, na esquerda, há lideranças defendendo a retirada estratégica das pautas identitárias no debate nacional em ano eleitoral, pois elas desviariam a atenção de temas por elas considerados mais concretos, como segurança pública e educação...
Isso me tira do sério! Quando se aventou, durante os governos petistas, o casamento homoafetivo, houve quem fosse contra pois “iríamos sobrecarregar o INSS”. O masculino tóxico não está presente só na direita. É um acinte defender esta estratégia em tempos democráticos. O que se está querendo dizer é que os direitos são para alguns. Nós, os outros, que esperemos. Não entenderam ainda que não seguiremos mais na fila? São estas pessoas supostamente progressistas que ajudaram a gerar o bolsonarismo, estão cultivando o mesmo terreno. Sabe o que isso me lembra? O que vivemos no fim da ditadura, quando parte da esquerda nos via como um incômodo. O raciocínio é o mesmo, embora àquela época a violência era maior. Jamais me esquecerei das feministas apanhando de militantes do MR-8. Acusavam mulheres, negros e gays de dividirem a luta proletária.
No livro o senhor frisa ser impossível reinventar o masculino sem o protagonismo da mulher...
O feminismo é cada vez mais crucial para nós, homens. Que fique muito claro: não haveria movimento LGBT sem o projeto feminista. E de 1998 pra cá, a pauta LGBT foi virada do avesso pelo revolucionário movimento trans. Ainda bem! Precisamos aposentar o patriarcado, inclusive na política, em todas as matizes ideológicas, de Angela Merkel (ex-primeira-ministra alemã) a Jacinda Ardem (líder da Nova Zelândia). E não aceito a sugestão de que o governo Dilma tornou esta necessidade mais complexa de ser alcançada no Brasil. Não mesmo. Há uma multidão anti-hegemônica decidida a oferecer novos significados para o masculino e reinventar e afirmar múltiplas identidades.