Quais os cuidados antes e depois das cirurgias de redesignação em pessoas trans
Especialistas da saúde com experiência com o público trans explicaram ao iG Queer quais são as condutas antes e depois das cirurgias procuradas por pessoas trans e qual a importância desses procedimentos
Faz parte do cotidiano de muitas pessoas trans o desconforto com algum aspecto corporal que, ao próprio ver, não está de acordo com sua identidade de gênero. Vale ressaltar, porém, que não é uma regra: nem todas as pessoas transgênero buscam por procedimentos cirúrgicos ou hormonais, pois cada um tem uma relação muito particular com o corpo e procurar ou não por alguma alteração não torna alguém “mais trans” ou “menos trans”.
Patricia Marques, experiente em uma das técnicas mais comuns no processo de feminização, a frontoplastia -- eliminação das rugas e das linhas de expressão localizadas na testa, glabela e reposicionamento das sobrancelhas --, comenta justamente a diferença de demandas entre cada pessoa trans, ressaltando como cada vivência é única.
“Nem toda pessoa trans vai necessitar de cirurgia de redesignação. Elas são muitas, no corpo e rosto, e não precisam ser feitas todas ou sempre. É importante que a pessoa identifique se há e qual é a característica física que gostaria de alterar e consulte um cirurgião especialista para avaliar o caso de forma cuidadosa e individual”, esclarece.
Partindo da perspectiva de pessoas trans que sentem a necessidade de certos procedimentos, é importante lembrar que, como qualquer interferência cirúrgica, exigem cuidados no pré e no pós-operatório para garantir o sucesso da cirurgia e a saúde da pessoa trans em primeiro lugar. Sobre os cuidados voltados ao público trans e travesti, o médico Wandson Padilha, que trabalha no Ambulatório de Atenção Integral à Saúde de Pessoas Trans e Travestis de Petrolina (Pernambuco) e é diretor da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), relembra a Resolução N° 2265/2019.
De acordo com ela, pessoas maiores de 18 anos podem realizar cirurgias de redesignação sexual, sendo necessário o acompanhamento prévio com uma equipe multidisciplinar por, no mínimo, um ano. Durante esse acompanhamento, são passadas instruções à pessoa trans que podem garantir resultados mais satisfatórios quanto aos procedimentos desejados.
“Apesar da Resolução do CFM [Conselho Federal de Medicina] de 2019, o Ministério da Saúde ainda não alterou suas resoluções e pelo SUS, então ainda é necessário o acompanhamento mínimo de dois anos por equipe multidisciplinar específica para a realização dos procedimentos cirúrgicos, que só podem ser realizados em pacientes com mais de 21 anos”, explica ele.
Ainda que os procedimentos estejam disponíveis pelo SUS, Patricia pontua que, mesmo que o acesso às cirurgias tenha sido facilitado, continua limitado em certos aspectos, principalmente no que diz respeito aos procedimentos faciais. “O acesso cresceu, mas ainda é muito limitado. As cirurgias corporais são realizadas por alguns hospitais de referência no Sistema Único de Saúde, a maioria na região Sudeste, mas as cirurgias faciais não, apenas em clínicas particulares. É necessário que haja mais serviços públicos e privados capacitados no Brasil todo”, diz.
Mesmo quando não se trata de cirurgias faciais, Wandson ressalta que mesmo a mastectomia e a cirurgia de redesignação, apesar de mais acessíveis pelo SUS, não conseguem saciar a demanda, pois não estão disponíveis em todos os hospitais.
“Infelizmente o acesso a esses procedimentos cirúrgicos ainda é muito difícil, tanto no SUS, como na rede privada. Pelo SUS ainda temos um número muito limitado de hospitais habilitados a realizar a cirurgia de redesignação genital. Apenas cinco hospitais no país inteiro (em Recife, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo). Em alguns desses locais o tempo de espera na fila para conseguir o procedimento cirúrgico pode ser superior a 10 anos. Levando-se em consideração que essa população tem uma expectativa de vida no Brasil de apenas 35 anos, muitas dessas pessoas acabam morrendo antes mesmo de conseguir acessar esse direito”, conta.
Sobre a mastectomia, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) incluiu a operação no ról de procedimentos que devem ser oferecidos pelo plano de saúde, mas Wandson ressalta que o acesso ainda conta com muitas barreiras. “Isso tem ampliado a quantidade de procedimentos no país, entretanto ainda é comum que muitos homens trans precisem entrar na justiça para ter acesso a esse direito”, explica.
Ele esclarece ainda qual a importância do acompanhamento multidisciplinar antes e após as cirurgias, pois elas não são procedimentos isolados. A intervenção corporal afeta outros aspectos da saúde da pessoa trans que também precisam de atenção para que ela possa gozar de resultados mais satisfatórios, sentir-se melhor consigo mesma e garantir que a saúde como um todo permaneça em bom estado.
“A cirurgia não é o começo e nem o fim do processo de transição de gênero, e é importante que as expectativas, desejos e possibilidades sejam abordadas e que todas as pessoas que passem por esses procedimentos cirúrgicos os compreendam, incluindo todas as possibilidades e limitações e que consigam compreender que a cirurgia é apenas parte do processo. Sabemos o quão importante o procedimento cirúrgico costuma ser para muitas pessoas, sobretudo no que diz respeito à sua saúde mental, visto que ajudam a aumentar a autoestima, aliviar desconfortos em relação ao corpo ou mesmo aumentar a ‘passabilidade’ social”, explica.
Afinal, quais são os cuidados antes e depois dos procedimentos cirúrgicos?
Wandson fez um apanhado dos cuidados pré e pós-operatórios tanto no caso da cirurgia de redesignação sexual quanto no caso da mastectomia. Cada um desses procedimentos exige condutas específicas para que os resultados sejam os esperados pela pessoa trans que os busca.
Redesignação sexual para mulheres trans e travestis: a depilação a laser na região genital próxima à base do pênis, de acordo com o doutor, ajuda no resultado da construção da neovagina. A presença de pelos na região pode dificultar o processo de higienização pós-cirúrgica e causar incômodo à paciente. O ideal é realizar a depilação cerca de três a seis meses antes da cirurgia, para evitar inflamação no local.
Além disso, a avaliação da pele do saco escrotal e da base peniana é fundamental. “Pessoas que fizeram bloqueio puberal podem ter quantidade reduzida de pele, o que fará o cirurgião pensar em técnicas diferentes para a construção da nova vulva e da nova vagina”, conta. Já no pós-operatório, é necessário que a mulher trans mantenha-se internada por sete dias com os devidos cuidados para evitar o risco de trombose, como: uso de meias compressivas e medicamentos anticoagulantes específicos.
“O curativo vaginal costuma ser retirado por volta do 5º ou 6º dia após a cirurgia. É recomendado usar modelador vaginal por pelo menos um mês e dilatador vaginal por pelo menos seis meses após a cirurgia (esse tempo pode variar bastante caso a caso, a depender da técnica cirúrgica e de fatores da própria paciente). Em geral, as relações sexuais com penetração da neovagina estão permitidas após o 6º mês de pós operatório”, explica o médico.
Mastectomia para homens trans: uma das principais orientações no pré-operatório é evitar o uso de faixas e binders muito apertados por um longo período, pois, de acordo com o médico, “esse uso pode alterar a estrutura das mamas ou mesmo lesioná-las, limitando as possibilidades cirúrgicas e podendo resultar em um resultado não tão satisfatório”. Já no pós, os cuidados com os curativos podem variar de acordo com a técnica utilizada durante a cirurgia. Quando se opta pela técnica de enxerto na aréola, por exemplo, deve-se evitar molhar o local por 7 dias.
“Em algumas situações podem ser recomendado também o uso de cintas compressivas pós cirúrgicas para modelamento do tórax. A fisioterapia pode ser importante para garantir a manutenção da amplitude de movimento dos membros superiores, redução de dores e melhora da cicatrização”, conclui ele.
Além desses cuidados que fazem parte do protocolo, há a fisioterapia pélvica, que é recomendada quando se faz a cirurgia de redesignação sexual. Angelise Mozerle, supervisora no consultório de fisioterapia da UniAvan, explica que “realizar a avaliação fisioterapêutica prévia, irá beneficiar na conscientização da musculatura pélvica e na transmissão dos dados, das orientações sobre prevenção. Se identificada alguma alteração, será reabilitado e receberá orientações de como será o tratamento no pós-operatório. As disfunções mais comuns são: dor, incontinência, estenose da neovagina e mudanças nos níveis de sensibilidade”.
O atendimento na UniVan começou há nove meses, fomentado por duas acadêmicas que se formaram em fisioterapia na instituição e apresentaram o tema da fisioterapia pélvica e atendimento às pessoas trans em seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). O serviço é oferecido de modo 100% gratuito e Angelise conta que “o primeiro atendimento foi realizado com pacientes de São Paulo, de forma on-line por troca de informações, avaliação de pacientes e orientação. Também foram realizadas pesquisas e coleta de dados com pacientes de diversas regiões do Brasil como Rio de Janeiro, Tocantins, Bahia, Distrito Federal, Santa Catarina e Paraná que realizaram a cirurgia”.
Ela conta que, na primeira consulta, é feita uma análise detalhada, incluindo levantamento da história e trajetória da pessoa trans para saber se possui alguma doença pré-existente, se usa medicamentos, se realiza atividade física, etc. “Muitos indivíduos são constipados e isso causa alteração no assoalho pélvico, então precisamos ter todas essas informações, todos os detalhes para preparar o tratamento ideal para cada caso e assim, assegurar a melhor qualidade de vida e bem-estar dos pacientes”, explica.
Também são realizados testes específicos, como o diário miccional, no qual verificam a frequência das idas ao banheiro, se acorda durante a noite para isso e se tem perda de urina. Além disso, a postura também é avaliada, pois ela pode interferir na sobrecarga de alterações pélvicas. ”Nessa fase, realizamos também a inspeção de palpação pélvica, em que solicitamos a contração dos músculos do assoalho pélvico e verificamos se eles apresentam coordenação, avaliamos o tônus, força muscular, controle, sensibilidade, dor, entre outros. Podemos também utilizar o aparelho Biofeedback Eletromiográfico Miotool que capta a contração dos músculos do assoalho pélvico”, esclarece.
Antes de realizar o tratamento, também se averigua a qualidade de vida da pessoa, pois todas as rotinas precisam estar sob conhecimento da equipe, afinal qualquer detalhe pode interferir no bem estar do indivíduo. Já no pós-operatório, Angelise conta que “o paciente é reavaliado e, se for detectada alguma situação, ele será reabilitado. Utilizamos de vários recursos, como a cinesioterapia, que provoca uma resposta muscular do paciente, dilatadores, eletroestimulação e o Biofeedback Eletromiográfico feito por equipamentos que quantificam o nível da contração muscular”.