Louise Ricoli, 22, começou a fazer aulas de teatro quando tinha 19 anos. A principal inspiração foi o pai, que também fazia o curso, e o que via em séries e conteúdos audiovisuais. “Para mim foi um deslumbre. Eu sonhava em ser artista para passar mensagens que fariam alguma diferença”, explica. Um ano e meio depois, ela iniciou o processo de transição de gênero. Durante esse processo, a arte sempre esteve presente.
Quando se formou no ensino médico, Louise passou um ano tentando descobrir o que gostaria de fazer da vida. Por trás desse sentimento, ela tinha receio de escolher algo que a fizesse viver em um ambiente em que ela sempre seria tratada com maldade. Mesmo antes de transicionar, ela sempre foi vista como “muito diferente”. “Antes, as pessoas já me tratavam com preconceitos ligados à machismo e homofobia porque eu era muito afeminada”, explica.
Esse receio fez com que ela se lembrasse do teatro e do espaço artístico, que foi acolhido por ela como uma “válvula de escape”. Ela acreditava que aquele ambiente teria “uma mente um pouco mais aberta” para aceitá-la.
A escolha a ajudou a colocar para fora os sentimentos que passava através da arte, fazendo com que ela se entendesse cada vez mais como uma pessoa trans. “Eu sempre fiz vários personagens, experimentei diversos corpos e aí eu cheguei nesse entendimento e estava vendo diferentes recortes e identidades para entender quem eu era e quem eu não era”, diz.
Louise salienta que não foi por meio de personagens específicas que se descobriu uma pessoa trans. Ela afirma isso pois, até hoje, mulheres trans e travestis são frequentemente vistas como meras personagens ou um “faz de conta”. “Não é um botãozinho que a gente liga. Uma coisa é o palco, mas a gente tá na vida e no cotidiano normalmente”, explica.
Ao iniciar a transição, Louise foi colocada em contato com as experiências vividas pelas pessoas trans. Ela explica que os desafios que têm hoje são diferentes dos que ela tinha quando iniciou o curso. Ao perceber o que sentia e o que vivia, ela começou a transpor tudo isso para seu trabalho e cumprir com o objetivo que sempre teve: passar mensagens que fazem alguma diferença.
Espaço aberto
Vanessa Senatori, psicóloga e coordenadora do curso de teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, onde Louise estuda, explica que o espaço artístico em si pode transmitir mais acolhimento para pessoas LGBTQIA+, principalmente trans. “A pessoa se sente mais tranquila nesses espaços para fazer suas próprias escolhas e se sente confortável para se posicionar”, explica.
De acordo com Senatori, isto acontece porque o ambiente artístico tende a trabalhar preconceitos e compreender as diversas experiências e possibilidades de existências por meio não apenas do trabalho, mas do diálogo. “O teatro, principalmente, tem muito de perguntar sobre as experiências que não conhece para compreendê-las a partir de um novo ponto de vista, algo diferente da sociedade, que é bastante opressora para pessoas trans”, diz a coordenadora.
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Sobre o impacto da arte na vida de pessoas trans, a coordenadora salienta que isso não quer dizer que a arte será o impulso para que uma pessoa se torne trans. “Às vezes isso é um erro de compreensão. A arte não é um gatilho ou um estimulante, mas a maneira como ela trata a sociedade torna mais fácil que a pessoa expresse sua verdadeira essência e trabalhe seus medos”, explica.
Louise explica que, como pessoas trans ainda são vistas como algo “diferente” e sofrem muitos ataques no cotidiano, os julgamentos vão existir da mesma forma. No entanto, ela percebe que, no meio das artes, as pessoas estão mais dispostas e abertas a entendê-la. “Acho que a aceitação é bem maior do que em outros lugares. Hoje em dia, estamos tendo mais diálogo nos lugares em que a arte está”, afirma.
Senatori explica que existe um aumento na abordagem sobre sexualidade e identidade de gênero nas peças teatrais. Além de receber cada vez mais trabalhos sobre esses assuntos, a estrutura administrativa da própria fundação foi readaptada para garantir o conforto e segurança de estudantes trans. Algumas dessas ações foram o reconhecimento do nome social, prover informações a professores e familiares para que ofereçam o suporte adequado.
Apesar de não haver um núcleo específico de gênero e identidade, Senatori explica que esse papel acaba sendo desempenhado pelos próprios funcionários. Isso significa que há uma atenção para amparar alunas e alunos que estão passando por sofrimentos psicológicos ou no núcleo familiar, sejam pessoas trans ou cis.
“A questão do suicídio e da ansiedade vem nos assustando. Acredito que 90% da escola tenha algum desgaste nesse sentido”, afirma. Por este motivo, é comum que esses jovens levem as angústias para suas criações artísticas e vejam o espaço como um local de escape.
Transição exposta
O momento em que Louise começou a transição de gênero tornou as aulas e o desemprego nos trabalhos artísticos mais difíceis. Isto porque o corpo, que é um dos pontos principais da transição de gênero, é a principal ferramenta de trabalho no teatro.
“É uma transição feita com exposição constante. No momento em que eu falei para as pessoas sobre meu nome, eu não estava em uma aparência ou numa corporalidade que me sentia confortável. Não era algo que eu queria mostrar para as pessoas”, explica a artista.
Outro grande desafio que ela enfrentou foi a disforia de gênero, nome dado ao sentimento de uma pessoa que não se sente que sua identidade esteja em conformidade com seu corpo. “Tinha que ficar vendo minha imagem todo dia, ser gravada e me ver na câmera. Tive que fazer um trabalho interno para não ter medo de me mostrar assim”, afirma.
Apesar da sensação causada pela disforia, a qual ela afirma que “não deve acabar por um bom tempo”, ela se sente melhor ao ver seus trabalhos mais recentes. “Agora eu consigo me sentir bem com o que eu fiz e consigo ver uma beleza ali”, diz.
Ao observar trabalhos mais antigos, ela diz que chama sua atenção a maneira como ela interpretava outros papéis bem, mesmo que não se sentisse em conformidade com eles. Ao perceber que conseguia atuar mesmo sem estar confortável tornou o processo prazeroso. A sensação de prazer e de orgulho de um trabalho desempenhado por ela se tornou mais forte depois da transição, o que melhorou sua performance no palco.
Ao pensar no ano de 2018, quando começou as aulas de teatro, e nos tempos atuais, Louise vê muitas mudanças. “Tive a oportunidade de fazer várias coisas e ter o contato com o teatro me ajudou a me desenvolver não apenas como pessoas trans, mas em todas as outras coisas, desde me colocar no mundo, me organizar e saber me expressar”, diz.