“Eu fui criado em colégio católico e com uma família muito católica também. Tinha uma certa pressão para ter uma namorada, para gostar de meninas, mas sabia que existia algo diferente em mim, mesmo sem saber exatamente o que era. Quando olhava para Madonna, via que ela lutava contra a repressão do catolicismo. Eu me identificava muito com isso. E, assim, ela me ajudou a lutar também contra a sociedade católica e aceitar a minha sexualidade”, conta o empreendedor William da Silva, de 33 anos.
Assim como ele, outras pessoas LGBTQIA+
também se inspiram em cantoras de música pop
para se desprender de amarras sociais e sair do armário, bem como superar desafios e se inspirar para mudar suas vidas. A identificação parte de diversos elementos, as letras das músicas, os posicionamentos políticos, mas principalmente da semelhança entre histórias individuais de cada pessoa com as divas pop.
“Eu tenho mais de 20 anos como fã da Madonna. Nesse período, muitas coisas aconteceram na minha vida e ela sempre foi importante, sempre foi trilha sonora. No começo, me sentia incompleto por não ter um pai. Segui em frente, sem medo, porque via que ela estava bem, mesmo sem ter tido a mãe na criação. Ela também me ajudou a ver que pecado é não amar próximo e a aceitar a minha homossexualidade”, continuou William, que desde a infância é conhecido como “Madoninho”, por sempre ter gostado muito da cantora.
“No decorrer de toda a história da Madonna, ela sempre falou sobre aceitação, então ela me fez perceber que o diferente, que assusta as pessoas, também pode ser o normal. Hoje, sou uma pessoa 100% honesta comigo mesmo graças à inspiração de Madonna”, afirma.
Devido à forte relação do fã, ele resolveu montar uma “lanchonete pub”, como descreve, sob nome e temática de sua cantora favorita. “Lá, as pessoas se sentem em casa, livres. E as comidas têm nomes de divas. Os frequentadores comem a Beyoncé, a Shakira, a Britney, a Cristina Aguilera, a Adele, mas o prato principal se chama Madonna”, diz. Hoje, toda a sua renda vem do trabalho que desenvolve no estabelecimento dedicado a seu ídolo.
Durante a pandemia, tem ficado restrito ao delivery, o que reduziu os lucros, mas, assim como a cantora em sua carreira, ele diz que vai resistir e superar as dificuldades. “Não quero procurar um emprego e trabalhar para os outros. Vou trabalhar para mim”, afirma Madoninho.
Em 2015, o empreendedor foi, vestido de freira, para um show da turnê “Rebel Heart”, de Madonna, na cidade de Turim, Itália. Naquele dia, ele subiu ao palco, dançou com ela, sambou e conversou com a cantora. “Quando eu estive ao lado da Madonna disse para ela: ‘Obrigado por você ter salvo a minha vida, me ensinou a me expressar e não me reprimir’, que é referente a uma frase dela da música ‘Human Nature’”.
Segundo a doutoranda em comunicação e pesquisadora de música e cultura pop Mariana Lins, a maioria das cantoras desse universo musical, se “vende” contando histórias de superação, uma jornada heroica, e isso pode gerar identificação imediata. Para ela, há uma intenção em gerar essa identificação, por motivos comerciais, mas também por uma questão afetiva que independe do mercado.
“Naturalmente há uma identificação com as divas pop. Muitas vezes elas também sofreram bullying, algum tipo de preconceito ou tiveram que lutar muito para se tornar quem são. Essas histórias de resiliência são muito comuns na música pop. E os fãs acabam se inspirando nessas trajetórias, que impulsionam a vida deles de alguma maneira. Se ela chegou lá [em um espaço de prestígio e fama] passando por tudo que passou, que é muito parecido com o que o fã vive, isso é uma inspiração. A figura da diva está muito ligada a essa força”, afirma a pesquisadora.
Mariana explica que não somente a comunidade LGBTQIA+
pode se identificar com as divas, mas quaisquer pessoas: “Todos os seres humanos têm suas histórias pessoais de superação, de dificuldade e resiliência. São muitas as questões sociais que as divas pop mobilizam. Com Madonna, por exemplo, podemos pensar em feminismo, na liberação sexual, e, principalmente agora, na velhice; Beyoncé, automaticamente pensamos o feminismo negro, o ativismo racial; M.I.A. desperta questões relacionadas aos imigrantes, xenofobia. Cada trajetória encontra identificação com um público específico. É uma questão de representatividade, de se ver no outro e pelo o que ele está passando”.
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No caso do arquiteto Peu Carneiro, 28, que se define apenas como “LGBT+”, seu ídolo, Britney Spears, o ajudou a se expressar artisticamente. Desde a infância, inspirado pelo universo fantástico criado nos videoclipes das músicas da cantora, ele sempre dançava livremente, sem medo do que as pessoas iriam dizer ou achar. Peu acredita que Britney contribuiu com essa sensação de liberdade, que sempre sentiu, para a mudança de sua personalidade e até ajudou-o a se lançar na carreira de drag queen.
O primeiro contato dele com o produto musical de Britney ocorreu entre 2003 e 2004, quando tinha 10 anos de idade, ao assistir ao clipe da música “Toxic”. “Achei maravilhoso porque eu adorava brincar de espião, Spy Kids, Lara Croft, e eu sempre gostei de personagens femininos. Então, fiquei fissurado”, relembra.
A partir de então, nunca mais ficou distante das influências da cantora. “Ela participou de várias instâncias da minha vida, tanto pessoal quanto profissional. Desde criança, sempre fui de me expressar pelo meu lado artístico e Britney me dava vontade de me expressar. Ela tem muita feminilidade, algo muito sensual, motivo pelo qual já foi muito atacada na carreira dela, mas acabou me influenciando, como um símbolo sexual, na minha sexualidade e da forma de me expressar. Eu amava performar essa feminilidade, que é algo que sempre esteve em mim, mas que eu não conseguia expressar de forma plena antes dela”, diz Peu, que é um dos entrevistados do documentário "Bichas" (Marlon Parente – 2016)
, no qual fala abertamente sobre sua sexualidade.
“Eu era uma bichinha de colégio, sempre fui muito atacado e estereotipado. Então, sempre tentava agradar as pessoas, para não passar por isso e Britney me ensinou a não ligar para o que as pessoas falam [sobre mim]. Eu acho que isso foi muito importante na minha vida”, completa o arquiteto.
Apesar da influência, Peu reconhece que a cantora tem poucas músicas intencionalmente políticas ou sobre superação de desafios, o que não o impediu de ressignificar o que Britney cantava e fazia.
“Algumas letras são muito diretas sobre determinados assuntos e, em alguns casos, elas vão sendo ressignificadas com o tempo. Em 1984, Madonna [aos 26 anos de idade] canta sobre a descoberta do primeiro, de um amor que a faz se sentir como uma virgem, amando pela primeira vez. Em 2012, quando Madonna canta essa música na MDNA Tour, quase 40 anos depois, vira uma canção sobre solidão, de uma pessoa que está envelhecida. É um outro contexto e um outro significado. Isso é muito comum na música pop. As músicas começam com uma intenção, mas, como qualquer obra artística, nenhum autor tem controle sobre a recepção do público”, explica a pesquisadora Mariana Lins.
Segundo Peu, ele ia além das letras das músicas para buscar inspiração e conforto em Britney Spears. “Eu lia em entrevistas que as pessoas diziam que ela era muito fofa e legal e, então, eu tentava ser assim também, educado, simpático”, diz. “Britney me motiva a viver intensamente. De certa forma, ao ver as apresentações sempre impecáveis dela e que conquistavam o público, ela me influenciou até a entregar o melhor de mim no meu trabalho”.
Aos 22 anos de idade, em 2015, o arquiteto criou uma personagem para si, a drag queen Lara Beckney, inspirada, na maior parte do tempo, na sua diva pop. “Era uma brincadeira, eu queria me vestir para brincar com minhas amigas na balada, mas ter me montado e me transformado foi incrível. Claro, não tenho a potência dela [Britney Spears], mas foi mágico descobrir essa minha faceta, que eu interpretava dentro do quarto e estava levando para fora de casa, para um palco. Vivi momentos incríveis. Eu tentava manter o olhar dela. Eu me diverti muito”.
Se pudesse encontrar com a cantora, Peu diz que, sabendo o quanto a diva tem medo de pessoas desconhecidas, não gostaria de criar um desconforto. “Eu queria encontrar ela numa fila de um Starbucks e falar algo completamente trivial, nem que fossem poucas palavras, mas que fizesse ela se sentir uma pessoa normal”, diz demonstrando estar emocionado ao pensar na situação, que, para ele, seria uma forma de agradecimento.
Atualmente, Britney Spears vive um embate na justiça para ter controle sobre seus direitos novamente, sob custódia legal de seu pai, Jamie Spears, desde que ela sofreu um surto em 2007. O assunto tem gerado forte apelo social, com comentários nas redes sociais
, protestos, lançamento de documentários
, mesmo sem que Britney esteja falando muito sobre o assunto publicamente.
A estudiosa de música e cultura pop fala sobre a importância do que essas artistas fazem ou deixam de fazer, sobre os posicionamentos políticos delas. Para Mariana, o poder de influência que possuem, não apenas sobre a comunidade LGBTQIA+, mas sobre toda a sociedade é muito grande. “As divas pop são figuras políticas, quer queiram ou não. E os posicionamentos positivos, neutros ou negativos geram impactos porque as divas são influenciadoras naturais”, afirma.
“No momento que uma delas se posiciona a favor ou contra a vacina [da Covid-19], por exemplo, isso causa um impacto político. Dolly Parton ajudou a financiar a vacina da Moderna, nos Estados Unido, e postou fotos tomando a vacina. Ela acreditou na ciência em um momento de muito negacionismo. Isso gera um impacto para os fãs. Da mesma forma que Madonna fazendo aglomerações, falando bem de remédios que não têm eficácia comprovada também tem um peso. No Brasil, Anitta foi muito cobrada para se posicionar em 2018, nas eleições presidenciais, porque ela era o maior nome da música pop nacional naquele momento”, completa a pesquisadora.
O Grupo de Pesquisa em Cultura Pop da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Grupop, do qual a pesquisadora faz parte, conduziu um estudo sobre o consumo de cultura pop em Cuba, onde isso pode ser apontado como uma contravenção ao regime político vigente. Eles encontraram um grupo de fãs cubanos da cantora Lady Gaga que se reúne periodicamente para discutir questões do feminismo e sobre sexualidade.
“Eles se reúnem para discutir questões do cotidiano, mas mobilizados por uma paixão em comum por Lady Gaga e o que ela representa. Ela é um ponto central, mas que não se encerra. Ela fala sobre alguns assuntos e eles são recebidos pelo público em todo o mundo de formas diferente. Foge do controle da intenção artística e comercial dela”, diz a pesquisadora.
Para quem tem interesse em entender melhor o impacto das divas sobre a vida de pessoas LGBTQIA+ e em outros aspectos, o Grupop, que completa 10 anos de pesquisa sobre a temática, acaba de lançar o livro “ Divas Pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática
” (clique para baixar), uma coletânea de textos produzidos diversas partes do Brasil. Investigações sobre Carmem Miranda, Pabllo Vittar, Anitta, Britney Spears, Iggy Azalea, Beyoncé e outras divas fazem parte do material, disponível gratuitamente na internet.
“É um livro para quem tem interesse nesse tipo de pesquisa, mas também para quem gosta do assunto. Pensar sobre a cultura pop e os impactos dela não é algo restrito à academia”, comenta Mariana Lins.