No dia 22 de maio de 2024, o rapper trans Jupitter Pimentel não tinha ideia de que sua fala durante a entrevista para o podcast "Entre Amigues" percorreria milhares de sites e páginas diversas da internet, acarretando ataques desde a extrema-direita até membros da própria comunidade LGBTQIA+. O motivo de tamanha confusão se deu pelo uso do termo "Boyceta".
O que é ser boyceta?
Na participação do podcast, o rapper Jupitter fez uma declaração sobre como ele compreende a própria identidade de gênero. "Eu sou uma pessoa transmasculina, mas a minha identidade de gênero é boyceta. Só que eu sou uma pessoa de gênero fluido também", iniciou.
Na fala, o músico conta que a fluidez de gênero lhe permite diversas expressões além do que o senso comum compreende de apenas feminino e masculino. "Ser boyceta me dá muita liberdade de expressar minha feminilidade quando eu quero, de ter essa identidade 'meio bicha' assim, que eu acho muito bom e bonito. [...] E não é nem que eu quero, meu gênero flui simplesmente…", exemplificou.
O termo foi construído no contexto da periferia de São Paulo e teria sido oficializado em 2020, por Roberto Chaska Inácio, um boyceta indígena, PCD, e vinculado ao rap paulistano. "Boyceta" ganhou visibilidade durante um evento freestyle da Batalha da Dominação, que reúne mulheres e pessoas trans no centro da capital.
"Comecei o uso do termo com a ideia de não aversão à genital e o medo de que nossa genital nos tornasse menos homens. Eu falava sobre dar! Sim, dar! E que isso não afetava nossa masculinidade. Ser boyceta também me significava tentar ser o menos 'macho' possível. Boyceta é sobre minha feminilidade. [...] Nunca foi só sobre genital, nem sobre binaridade ou não binaridade. Boyceta reflete toda minha vida, minha vivência. Esse termo me trouxe conforto com meu corpo e mente, me fez me aceitar melhor", escreveu Chaska em uma publicação sobre a identidade de gênero.
Furando bolhas
Desde a publicação da entrevista no YouTube, o trecho de Jupitter se autointitulando boyceta quebrou barreiras virtuais, mobilizando e atraindo milhares de internautas para a discussão. Acontece que, na terra da internet, não se tem controle da compreensão do terceiro, e muito menos da intencionalidade.
Foi nesse contexto que a fala de Jupitter foi parar nas redes sociais do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), uma pessoa pública que rejeita os direitos da comunidade LGBTQIA+ e possui um histórico de ataques contra pessoas transsexuais.
"Eu não falei nada que fosse errado, distorcido, as pessoas não estão nem distorcendo a minha fala, elas estão reduzindo a uma interpretação delas que é muito escassa sobre esse assunto. Estão reduzindo a um conceito binarista, heteronormativo, que no final das contas é a falta de compreensão delas sobre esse termo e sobre existências trans", avalia Jupitter em entrevista ao iG Queer.
Na visão do rapper, o termo "Boyceta" fala de vivências e não tem uma definição simplista. "Para mim, eu acho que basta a interpretação literal da palavra, mas é que é uma vivência, né? É vivência em comunidade, é uma vivência transmasculina acima de tudo", refletiu.
Essa não foi a primeira vez que Jupitter ganhou espaço e foi alvo de ataques por extremistas como Nikolas Ferreira (PL-MG). Diante disso, ele confessa que já era esperado que pessoas desse espectro político não aceitassem a vivência boyceta.
"Eu me senti um pouco vulnerável, comecei a ter um pouco de medo de sair na rua. Por exemplo, eu ainda sinto que estou exposto a esse tipo de violência e que ela pode partir de pessoas que eu nunca vi na vida e que eu tô suscetível a isso. Então, eu tenho um pouco de medo de estar nesses espaços públicos, mas eu tenho que continuar vivendo a minha vida. Eu não posso parar", desabafa.
A surpresa e espanto ficaram por conta de membros da própria comunidade LGBTQIA+ que, com a viralização do vídeo, também proferiram ataques de ódio contra a pauta trans.
"Eu acho que o que mais me pegou não foi o ódio da extrema-direita, porque eu já lido com isso há muito tempo. Acho que o que mais me pegou foi a intolerância da comunidade LGBT mesmo", revela.
"É uma intolerância mesmo, um ódio que vem de dentro da comunidade que não faz nem sentido, né? No final das contas, a que tipo de higienismo a gente tá querendo atender? Essas pessoas estão querendo atender qual normatividade? Porque eu não tô querendo atender nada disso. O que essas pessoas esperam de mim no final das contas sendo que elas não me conhecem? Isso me pegou", detalha Jupitter.
Alvo de diversos ataques, o rapper deixa claro que a transfobia será levada para a Justiça. Além de apoio psicológico, ele também conta com assessoria jurídica e pretende judicializar os ataques de ódio.
"Eu não vou deixar barato, a transfobia não pode ser lidada com normalidade, as pessoas têm que ser responsabilizadas pelas coisas que elas fazem e falam na internet. Pode parecer uma terra sem lei, mas ela não é e eu quero ser indenizado, sim", enfatiza.
Entre o oito e o 80...
A diversidade de identidade de gênero é um assunto que vem ganhando visibilidade aos poucos. Apesar de já haver estudos avançados, a sociedade ainda trata o tema com ignorância, acarretando a marginalização das pessoas que não se identificam no sistema binarista de feminino e masculino.
"A psicologia entende o gênero como o que é, uma construção social. Comumente, ao nascimento, de acordo com a genitália de uma criança, a sociedade espera e até mesmo molda comportamentos e formas de expressão de acordo com o que entende adequado para o gênero masculino ou feminino, desconsiderando importantes nuances entre os dois e até mesmo os que não se adequam a nenhum deles", explica a psicóloga Andressa Edres.
A especialista enfatiza que características humanas são características apenas humanas, e não masculinas ou femininas. Sendo assim, é mais do que normal e esperado formas de identidade de gênero que não se enquadrem na binaridade.
"O entendimento de não binariedade e de fluidez de gênero teve início na década de 90, mas tem tomado maior força nos últimos anos, devido a um maior número de pessoas se identificando dessa forma. Os termos descrevem realidades vividas por pessoas que entendem sua identidade para além da dicotomia imposta desde o nascimento. Precisamos lembrar que entre o oito e o 80, existem muitos números - e até mesmo outros que antecedem e sucedem os mesmos", reflete.
A fluidez de gênero, a não-binaridade e diversas outras expressões de identidade, assim como o "Boyceta", são discussões que devem fazer parte da compreensão social na totalidade, e não apenas das pessoas que se identificam com elas.
"Quando uma pessoa se identifica e se apresenta como homem ou mulher, é compreendida e aceita quase que automaticamente em diferentes grupos sociais no que diz respeito a comportamentos ditos masculinos ou femininos. A falta de entendimento e acolhimento da sociedade cis e heteronormativa interfere diretamente em como essas relações se constroem com as pessoas não binárias e de gênero fluido, impossibilitando um ambiente favorável para essas pessoas se expressarem da forma que se sentem mais confortáveis", argumenta a psicóloga Andressa Edres.
Na visão da psicologia, os humanos são seres essencialmente sociais, mas dependem da inclusão para atingir o bem-estar pessoal. "Sabemos que a ânsia por integrar grupos é algo notoriamente benéfico desde os primórdios. Mas como sentir-se pleno e completo dentro de outros grupos que não entendem sua forma de se expressar no mundo?", questiona.
"A luta por essa aceitação não pode ser apenas das pessoas que se identificam com os termos, mas sim de todos, como uma forma de propiciar um ambiente em que elas possam ser elas mesmas", finaliza.
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