O que a obra de um artista carrega em si? Alguns diriam que sentimento. Outros, um emaranhado de subjetividades e experiências pessoais. Se a segunda opção estiver correta, a obra de Airys Kury, um artista plástico mato-grossense de 60 anos, é repleta de vivências que abrangem desde o nascimento em uma região fortemente marcada pelo conservadorismo, até a mudança para São Paulo, onde ele se descobriu como pessoa queer e soropositiva.
Para entender quem é Airys Kury, é preciso começar pelo coração do Pantanal. Nascido em Cáceres, uma cidade na divisa entre Mato Grosso e Bolívia, o artista plástico descreve a região como extremamente ancestral, com uma grande concentração de povos indígenas. "Você pensa em uma ancestralidade que já tem uma natureza mais tranquila em relação ao corpo, aos costumes e tal, mas mesmo assim a cidade é uma cidade de senhores feudais", afirma Kury.
Aos cinco anos, o artista se mudou para São Paulo com a família, visando melhores condições para estudar. Uma mudança que, ainda que para a idade do pequeno não tenha refletido muito na forma como vivia no momento, pode ter ditado sua vivência como homem gay no futuro.
“As diferenças continuam sendo muito profundas. Você tem uma liberdade muito maior em uma cidade cosmopolita como São Paulo. Aqui, você pode andar de mãos dadas com seu companheiro, beijar em público e tal. Lá, nem pensar. Essa situação permanece a mesma. O tempo mudou, mas lá continua igual. Acredito que morar em uma cidade grande deu uma liberdade enorme na minha expressão. Eu passava a maior parte do tempo em São Paulo e só ia para Cáceres nas férias, para ver minha família. Claro que não senti a mesma realidade que o pessoal de lá. Aqui, por mais difícil que fosse, ainda era muito mais tranquilo viver”, explica.
O corpo é feito de arte
Falar de arte com Airys é adentrar a um mundo de possibilidades. Ainda que na atualidade ele trabalhe com artes plásticas, sua zona de interesse no início foi com a arte performática, principalmente a dança.
“Eu lembro que convivendo com as aldeias indígenas, eu via as danças, as rezas e os folclores religiosos, que tinham muita dança. Com o tempo, essa dança migrou para um campo mais erudito na minha vida em São Paulo, eu assistia aos balés. São Paulo sempre teve essa tradição, e desde criança eu me encantava com os balés no teatro, apresentados pelas grandes companhias internacionais que vinham para cá”, afirma o artista, dizendo que sonhava em ser dançarino.
Entretanto, sua vontade foi reprimida pelo conservadorismo, pois era inimaginável um homem ser bailarino na cidade de Cáceres. Então, outros campos das artes foram testados, fossem eles convencionais ou não.
Airys começou pela gastronomia, chegando a se tornar chef de cozinha. Também se arriscou na costura, fazendo roupas das filhas das amigas da mãe, mas não durou muito tempo pois isso também era mal visto na época.
“Ao longo do tempo, experimentei muitas formas de expressão artística: gastronomia, gestão de eventos, arranjos florais, figurinos, cenografias. Eram exercícios de criatividade. Hoje, me expresso através da pintura, escultura e fotografia. As pessoas perguntam por que eu não me concentro em uma só área, mas depois de explorar tantas formas de arte, é difícil limitar a criatividade a um único campo.”
Entretanto, dois eventos mudaram a forma como ele faz arte e se expressa: o envelhecimento e o diagnóstico de que portava o vírus HIV. “Quando me tornei soropositivo, foi um momento de reflexão. Aos 40 anos, não tinha mais o mesmo vigor físico para cozinhar por horas, então olhei para o futuro e decidi que a arte seria meu destino final. O HIV me estimulou a focar na minha arte e saúde, e fazer da vida de artista um propósito alinhado com minha realidade e identidade.”
“Eu me considero um sobrevivente”
O artista viveu sua juventude durante o período em que o diagnóstico de HIV era uma sentença de morte. Ele afirma que via os colegas morrendo quando tinha apenas 18 anos. “Participei de todas aquelas festas em Berlim, Nova York, Paris, quando tudo acontecia de um jeito diferente. Quando eu tinha 19, 20 anos, cada vez que voltava dessas festas, via mais gente morrer. Foi um período muito difícil, e eu me considero um sobrevivente, porque vi muitas pessoas morrerem.”
A perda dos amigos próximos o fez refletir sobre a efemeridade da vida e como o ato de existir é tão mínimo que deve ser aproveitado. “Sobreviver à AIDS e à vida é um milagre”, afirma o artista.
“A AIDS me ensinou a importância de cuidar da saúde, do corpo e da alma. A arte e a AIDS me ensinaram a viver, a focar no que é importante, e a deixar de lado o que não é. Viver com alegria e aceitação é fundamental, e ser artista é parte disso”, diz Airys.
Envelhecimento
Outro ponto que é refletido em sua arte é o envelhecimento. Para Airys, “envelhecer é um ato divino”. “É uma coisa soberana que nos ajuda a entender o medo com uma lanterna, iluminando o escuro da vida. A velhice nos deixa mais calmos, lúcidos e conscientes, mais presentes nas coisas. Infelizmente, nem todos os jovens acreditam nisso, mas o tempo mostra isso."
“A sabedoria nos permite dizer 'não vou fazer isso, não vou lá, não vou nem ver' porque sabemos que vai nos trazer problemas. Podemos usar nossa inteligência para cuidar melhor de nós mesmos. Hoje em dia, as pessoas vivem mais tempo, e eu quero viver muito, envelhecer bem, como um bom vinho. Há um ditado que diz que quanto mais velho o vinho, melhor ele é. Isso também vale para pessoas. Vinhos jovens são bons, mas os velhos são os melhores e mais valorizados”, brinca o artista.
A sustentabilidade
O trabalho de Airys vem sendo desenvolvido com o aproveitamento de materiais recicláveis. Por exemplo, ele cria patchworks com embalagens, que se transformam em capas e roupas. Esse trabalho se expande para outras escalas, incluindo projetos que utilizam descartes de cenografia. Ele observa esses descartes e enxerga imagens e formas se formando, transformando o que seria lixo em algo novo e colocando as pessoas diante desses materiais com um olhar renovado.
“Hoje, minha criatividade está sempre em ação. Eu olho para tudo ao meu redor, especialmente as embalagens, e transformo essas coisas. Tenho trabalhado com caixas de medicamentos, sacos de café, pacotes de feijão, e tudo isso se recicla. Para mim, mais do que separar o lixo reciclável do orgânico, a arte é sobre transformar o que está nas suas mãos”, afirma o artista.
Para ele, “a arte pode nos levar a tratar melhor as coisas que desprezamos, até mesmo as pessoas”. Trabalhar com a reciclagem dos materiais vai além de apenas reutilizá-los em uma nova forma, mas sim conseguir interagir. “É uma forma de estimular um olhar mais sensível para aquilo que muitas vezes consideramos desprezível”, finaliza o artista.