'Você descobrir que alguém só estava fingindo gostar de você, para ver se você fica com ela, isso é muito doloroso', Estefane Carvalho
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'Você descobrir que alguém só estava fingindo gostar de você, para ver se você fica com ela, isso é muito doloroso', Estefane Carvalho

Recentemente o termo “demissexual” ganhou um novo destaque ao público geral  quando a atriz Giovanna Ewbank declarou no podcast em que apresenta que só sente atração física, ou sexual, por homens com quem também sente atração afetiva.

Pouco difundido entre o público geral, o demissexual pode ser confundido com a assexualidade ou até bissexualidade. Sim e não, pois existem controversas entre pessoas especializadas no tema.

Ao definir o que é a demissexualidade, o psicólogo Alexander Bez diz que ela está centrada na necessidade de se ter um vínculo emocional para que se possa sentir também a atração sexual. Lucas de Vito, psicólogo focado em sexualidade LGBT+, complementa ao comparar com alguém que não é demissexual, que essa pessoa pode sentir desejos sexuais por qualquer outro indivíduo, mesmo que tenha acabado de conhecer, apenas pelas características físicas.  

Quanto à bissexualidade, os especialistas explicam ao iG Queer que não existe correlação, já que alguém bissexual pode sentir atração por pessoas de ambos os gêneros, hétero e homossexual. Um demissexual pode ser ou não bi, a única questão é que a atração sexual virá somente junto à atração emocional.

Bez e Vito classificam a demi e a assexualidade de forma separadas, sendo o assexual aquele que não sente desejos sexuais por ninguém, não importando o gênero, já o demissexual parte do mesmo princípio, com a diferença de que o desejo pode surgir, como já explicado, a partir do momento em que exista também um interesse romântico pela outra pessoa.

Para Estefane Carvalho, 24, que se entende como demissexual desde os 14 anos de idade e já estuda sobre o tema há cerca de 10 anos, “demi” é apenas um termo utilizado para definição, havendo pessoas demissexuais de todas as formas e jeitos, mas que apenas não são vistas ou mostradas pela mídia tradicional.

Os conflitos da vivência demissexual

Como explica Lucas de Vito, pessoas demissexuais enfrentam um conflito muito grande, por se sentirem diferentes de outras pessoas, como se tivesse algo estranho. “[Elas] Observam amigos que entram em aplicativos para ter relações sexuais rápidas, [ouvem] comentários dos amigos que sentiram tesão ao ver uma pessoa na rua e, por não terem o mesmo comportamento, se sentem estranhas e excluídas, o que as levam a pensar que são assexuais”.

Outro conflito comum é, segundo Vito, é quando se encontram com alguém com quem tiveram uma boa relação afetiva e começam a se sentir o desejo. “Ou pessoas que só conseguem ter prazer no sexo caso tenha uma relação mais estreita com o parceiro ou parceira, enquanto, se fizer com pessoas mais desconhecidas, mesmo que seja a mesma prática sexual, não sentem o mesmo prazer”.

Alexander Bez completa que a identificação hétero impulsiona apenas demissexuais héteros, enquanto a homossexualidade impulsiona somente a conduta demissexual homossexual. “A romantização é importante, independentemente do rótulo sexual que a pessoa possui”, afirma.

O momento da descoberta

“Eu sempre fui uma criança muito curiosa, sempre queria as respostas e não aceitava um ‘porque sim ou não’. Eu queria saber o porquê das coisas”, começa Estefane. “Quando eu tinha 14 anos eu comecei a perceber que eu não sentia atração pelas pessoas e estava todo mundo se descobrindo naquela fase, tendo suas primeiras ‘paixonites’, então eu percebi que eu não tinha isso e não entendia o motivo”.

Ela conta que aos 15 anos começou a se sentir incomodada, por se sentir muito diferente dos amigos. “Até porque eu era mais velha que alguns deles e, mesmo assim, eles diziam que eu me recusava a crescer”.

Alison*, estudante de 18 anos, diz ter se descoberto como demissexual de uma forma bastante comum, pois não se sentia confortável em querer ter um relacionamento. “E, depois de algum tempo, eu parei para perceber que eu só conseguiria me envolver com alguém que eu realmente tivesse bastante intimidade”, conta ao iG Queer.

Para Carolline Aguiar, 18, a descoberta veio durante o ensino médio, ao observar o comportamento das amigas. “Enquanto elas estavam ficando com várias pessoas, [eu] nunca tive atração de ficar com meninos que eu não tivesse nenhuma conexão amorosa e quando eu fiquei, não senti absolutamente nada, era igual beijar uma parede”.

Sobre sua sexualidade, assim como Estefâne, Alison se considera no espectro assexual,  “bissexual nunca passou pela minha cabeça”, afirma. Caroline ressalta que a dúvida sobre a sexualidade de um demi é algo realmente comum, então “muitas pessoas pensam que demi sente atração por qualquer pessoa independentemente do gênero, desde que haja uma conexão, mas tem como ser demi e hétero ou demi e bi”.

“Já me questionaram se sou bissexual também, mas não sou”, lembra Estefâne. “Como sou demi minha sexualidade é assexual, ‘demi’ é só um nome que nós do meio achamos para definir as coisas”.

Se reconhecendo como demissexual e o acesso à informação

Estefane Carvalho se descobriu demissexual aos 14 anos
Reprodução/Instagram
Estefane Carvalho se descobriu demissexual aos 14 anos

Quando percebeu como se sentia, Estefâne começou a pesquisar para entender mais sobre si mesma. “Eu já havia descoberto o tema ‘assexuado’, (não era assexual ainda), eu comecei a me identificar, só que eu sentia muita vergonha. Quando eu comecei a ler mais sobre o assunto ali, pelos meus 15 anos, eu falei: ‘Esse daqui que eu sou!’. E eu sabia automaticamente. Porque eu tinha amigas que eram LGBTs, e elas já sabiam do que gostavam. Eu convivia com pessoas héteros, elas sabiam do que que elas gostavam, e eu não sabia por que eu não gostava de nada”, relata.

Para Alison, ter acesso a informações sobre a demissexualidade não foi exatamente um problema. “Quando eu fui procurar mais sobre o assunto, havia pessoas que já falavam sobre isso de forma boa e eu já consegui ler alguns poucos livros que tenham representatividade de uma pessoa demi ”, conta.

Carolline lembra que em 2018, quando se descobriu, já foi possível encontrar muitas informações que a ajudaram a entender sobre o tema. “Por ser mais recente, não tive dificuldades”.

Estefâne lembra que participava ativamente de um fórum na internet onde se trazia muitas informações sobre o tema, além de diversas outras discussões. “Lá, várias pessoas de diferentes idades e partes do Brasil chegavam e davam seus depoimentos, conversavam ‘será que eu sou mesmo?’”. Ela comenta que uma grande questão para muitas pessoas demi é sobre se, ao sentir a atração sexual por uma pessoa, continuarão sentindo também por outras, e isso não acontece.

A paixão e o desejo sexual

“Eu me apaixonei pela primeira vez quando eu tinha 16 anos e, para a minha surpresa, eu me apaixonei por uma mulher e não por um homem”, relata Estefâne. “Quando eu me apaixonei, eu pensei que eu fosse começar a sentir o que as pessoas falavam que eu deveria sentir e que eu não havia sentido até então. Porque na visão das pessoas que eu convivia, eu estava amadurecendo de maneira tardia. O que não é verdade, porque eu tinha vivências muito adultas desde cedo, com relação à responsabilidade. Eu só realmente não senti atração. Mas, naquele momento, eu comecei a me questionar por que que eu não tinha essa necessidade ainda”.

Estefâne lembra que estava sentindo a atração romântica, estava apaixonada por uma pessoa, mas não tinha a necessidade de expressar sua sexualidade. Até que percebeu que o que estava sentindo naquele momento era uma atração física.

“Eu sentia vontade de tocar na pessoa, de beijar a pessoa, eu não me sentia mal em fazer isso. Eu vivenciei, eu experimentei isso, porque eu queria me descobrir. E aí, nesse momento da minha vida, eu comecei a me aprofundar sobre a demissexualidade e a focar mais nessa área, porque talvez aquilo estivesse acontecendo comigo e eu sempre pensei que eu fosse assexual, mas não sabia que tipo de assexual eu era.”.

Para ela, as pessoas demi estão em uma “área cinza”, enquanto os assexuais estritos estão em uma “área preta”.  

Aos 20 anos, Estefâne conta que já estava há muito tempo sem se sentir fisicamente atraída por ninguém, até que conheceu alguém, com quem ficou seis meses conversando. “Nós nos encontramos algumas vezes, virávamos a noite olhando um na cara do outro. Aquilo passava uma confiança e uma verdade, a sensação era de que nos conhecíamos há muito tempo. Então começamos a namorar e hoje eu estou noiva dele. Estamos juntos há mais de um ano, vamos nos casar e é a pessoa por quem eu estou apaixonada e me sinto atraída”.

O preconceito com a demissexualidade

“Sobre preconceito, eu acredito que não”, conta Alison. “Até porque minha família sempre falou que eles queriam um neto e eu sempre falei que os meus irmãos iriam dar e que eu não me imaginava dentro de um relacionamento, a priori. Depois de um tempo, eles começaram a nem comentar mais sobre o assunto. Mas, preconceito de outra pessoa, eu pelo menos, nunca percebi”, reflete.

Carolline conta que sente alguma resistência por parte de pessoas mais próximas, “minha família diz que é besteira, meus amigos ficaram um pouco confusos quando eu disse que era, mas depois que eu expliquei a maioria entendeu e me respeita por isso”. Entretanto, ela lembra, que boa parte de seus amigos (apenas homens cis) acham que para se ter atração sexual não se depende de uma conexão amorosa, “eles acham engraçado quando eu comento sobre isso”.

Estefâne lembra que quando se descobriu sentia muito medo de que as pessoas percebessem que “faltava algo”, para pesquisar sobre o assunto, fazia escondida, temendo que alguém a visse e ela precisasse se explicar por que não sentia atração física por ninguém. “Porque todo mundo estava descobrindo onde se encaixava, qual era o seu estilo, quais eram os seus gostos, e eu estava me perguntando o que havia de errado comigo”.

“Naquela época, 10 anos atrás, havia muito preconceito com isso. As pessoas chamavam de frigidez. Era um traço de transtorno mental. Então era muito complicado. Mas graças a estudiosos e pesquisadores, como Elizabete Oliveira, que me plantaram a sementinha do conhecimento eu consegui passar por cima disso, para poder ajudar outras pessoas e para conseguir me entender”.

Quando a pessoa demissexual se torna um alvo

Uma história que provavelmente a maioria das pessoas LGBTQ+ já ouviram ao menos uma vez na vida é a de que “apenas não encontraram a pessoa certa”. Estefâne conta que já foi vítima de inúmeros assédios apenas pelo fato de ser demissexual, além de, por não se sentir atraída fisicamente pelas pessoas com as quais não se sentia conectada, se tornou um objeto de conquista para homens.

“Eu já sofri assédio por ser assim, já fui agarrada a força porque disse 'não'. Já passei por situações que a pessoa fingiu gostar de mim porque acreditava que dessa forma eu iria desenvolver algum interesse. Já passei por situações de ser tratada como um prêmio, porque não levavam [a demissexualidade] a sério”.

Por ser uma mulher que escreve contos eróticos  e tocar em temas que ainda são tratados como tabu nas redes sociais, a fim de ajudar pessoas que passam por histórias parecidas, ela conta que sofre com situações bastante desagradáveis.

“Já aconteceu de eu fazer um  texto sobre isso no Facebook e receber um monte de fotos de órgãos genitais, eu detesto isso. Eu detesto, acho que toda mulher tem pavor de ser assediada, mas você ser assediada por prêmio ou por alguém falando que ‘se tu ficasse comigo, tu ia se curar, porque tu não ficou com a pessoa certa ainda’. Isso, para mim, é o pior. Pelo simples fato de que eu não tenho nada de errado, não há nada de errado com ninguém por não se sentir atraído por ninguém”, desabafa.

“Essa foi a coisa mais pesada que já aconteceu comigo. As pessoas fingirem que estão gostando de mim e depois de um bom tempo conversando [sem desenvolver o sentimento], a pessoa me atacar dizendo que eu não sou tudo isso para me fazer de difícil. Você descobrir que alguém só estava fingindo gostar de você, para ver se fica com ela, isso é muito doloroso”.

Busque por alguém que te entenda

Estefâne relembra sobre não ter tido dificuldades para encontrar informações, por ter ido à fonte certa. Como fóruns dentro e fora do Brasil. Ela destaca novamente o trabalho de Elizabete Oliveira – ela menciona uma entrevista que a pesquisadora deu para a apresentadora Marília Gabriela, em 2013.

“São muito esclarecedoras, então eu não posso dizer que eu tive dificuldade, mas eu sempre busquei levar esse conhecimento para as pessoas, porque nem todo mundo vai procurar. Às vezes é mais fácil você ver essa informação ou pedir para alguém, ou perguntar para alguém nos nossos grupos. Nós chamamos de lar, tem bastante intimidade, podemos conversar ali sobre questões pessoais e ninguém julga ninguém. Então, em um ambiente mais acolhedor, entre amigos, às vezes é mais fácil de você se encontrar. No meu caso eu fui pela insistência mesmo [risos]”, diz.

“Na minha família, quando eu contei para minha mãe ela falou: ‘Que é isso minha filha?’. É confuso, mas eu acho que não importa muito, eu nunca tive necessidade de contar para os meus amigos ou para minha família esperando uma reação deles, porque isso não me importa, para ser bem sincera. O que me importa é se eu estou entendendo, me importa se eu estou vivenciando a minha vida de maneira ampla, se estou me permitindo me conhecer e conhecer as possibilidades ao meu redor e me importa muito mais se eu posso ajudar alguém com isso do que o julgamento em si. Porque eu fui muito julgada a minha vida inteira por muita coisa. E não é ser exigente, não é ser santo. É isso!”, completa.

*Alison é um nome fictício e agênero, a testemunha pediu para não ser identificada.

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