Arte drag une casal de drag queen e drag king: ‘Representa liberdade’

No Dia dos Namorados, o iG Queer traz a história de Ginger Moon e Don Valentim, que contam como a arte drag os mudou para melhor individualmente e como casal

Foto: Arquivo pessoal
Ginger Moon e Don Valentim são drag queen e drag king, respectivamente


Celebrar o Dia dos Namorados, para um casal que foge da cis-hétero normatividade, tem um significado bem diferente do que para casais compostos por pessoas heterossexuais e cisgênero. Este é o caso de  Bruna Tieme, drag queen burlessa conhecida como Ginger Moon e pansexual, e Valentim Dias, também pansexual, transgênero não-binário e drag king conhecido como Don Valentim , que namoram há cinco anos.

Os dois se conheceram em 2017, quando Ginger foi performar na inauguração da Casa 1 – centro de cultura e acolhimento de pessoas LGBTQIAP+ em São Paulo. Ela conta ao iG Queer que queria muito performar ao lado de um drag king e fez um anúncio no Facebook em busca de alguém. 

“Ele foi o primeiro a responder”, lembra a drag, referindo-se a Valentim. “Mandei mensagem e começamos a conversar. A performance envolvia beijo, então logo no ensaio rolou uma atração”, conta com bom humor. “Desde então, não paramos mais de trabalhar juntos. Foi assim que nos conhecemos: na arte drag. Ele me deu um fora antes de namorarmos de fato, mas acabou não aguentando muito tempo e começamos a namorar um mês depois”, diz aos risos. 

Uma vez que o casal se uniu graças à arte drag, o iG Queer questionou como isso influenciou na forma como o relacionamento se desenvolveu e continua a se desenvolver até hoje e, principalmente, o que a prática drag significa para eles. 

“Mudou a gente completamente” Ginger Moon declara. “Quando eu comecei, sequer fazia ideia de onde estava me metendo e como isso iria impactar na minha vida. A drag é uma persona, um tipo de máscara que também funciona como um megafone por meio do qual você mostra uma face que normalmente não mostraria ao mundo. Tudo que acontece na nossa vida drag acaba afetando a vida fora da drag também”. 

A drag queen continua a declarar como a prática representa liberdade, “mesmo que não sejamos totalmente livres”. “Estamos sendo quem somos, independentemente do que o patriarcado quer impor. Perante à sociedade não era nem para estarmos vivos, muito menos expor a nossa verdade. Eu sempre falo que colocamos uma peruca e quilos de maquiagem para descobrirmos quem realmente somos”. 

Valentim complementa: “Não é como se as normas sociais deixassem de existir quando nos montamos, mas a drag funciona como uma armadura, uma espécie de tanque de guerra que permite que a gente passe por cima de todos os muros”. 

Bruna explica que, além do desenvolvimento pessoal, a arte drag proporcionou que ela e Valentim também desfrutassem de uma intimidade a mais no relacionamento, principalmente por estarem presentes em espaços semelhantes e dividirem essa parcela da vida um com o outro. 

“Além de termos nos conhecido por causa disso [arte drag], criamos intimidade muito rápido e de forma mais intensa do que em outros relacionamentos que eu já tive, por exemplo. Desde o começo pudemos compartilhar desejos e anseios com relação à drag, então acho que isso contribuiu para que o relacionamento se construísse rapidamente”. A drag conta ainda que essa expressão artística os mantém unidos de forma muito particular, o que nem sempre é um mar de rosas. 

“Passamos muito tempo juntos, afinal trabalhamos um com o outro também. Óbvio que nem sempre é fácil, pois costumamos dizer que são quatro pessoas morando juntas: nós e as drags. Mas, acima de tudo, nos ajudamos muito, por exemplo: ele tem um show amanhã e eu vou ajudar a fazer a peruca e o figurino, e ele também me ajuda com ideias para as minhas performances, e por aí vai”, explica. “Somos parceiros de vida, de trabalho e de arte”. 

Apoio, aceitação e obstáculos

Bruna e Valentim contam ao iG Queer que o relacionamento, após oficializado, foi muito bem recebido tanto pelos amigos quanto pelos colegas do meio drag – “família drag”, como eles chamam. Contudo, tiveram alguns atritos com relação às famílias de sangue, como discorre Bruna. 

“A minha mãe não gostava muito”, diz. “Quando ela viu que eu estava levando uma pessoa para casa, ficou incomodada, começou a achar que estavam me levando para um ‘mau caminho’. Tentei explicar que era uma questão de trabalho, mas isso não entrava na cabeça dela, porque minha mãe achava que estávamos apenas caindo na farra e coisas assim. É muito difícil explicar que é algo válido e sério [a arte drag]”. 

Bruna nunca sentiu necessidade de “sair do armário” de fato e conta que após comunicar a família sobre o relacionamento com Valentim levou um tempo para que de fato levassem a relação a sério. 

“Estávamos namorando há dois anos quando finalmente contei para minha mãe. Não sentia necessidade de me assumir, mas querendo ou não eu ainda morava na casa dela. Quando eu a comuniquei sobre o namoro foi aquela coisa: ‘ah, mas eu queria netos’, etc. Minha mãe odiou na época, e logo depois eu saí de casa. Ela só foi começar a levar a sério quando nós dois fomos morar juntos, há dois anos”, declara. 

Diferentes modelos de relacionamento

Valentim diz que as pessoas ainda possuem uma visão muito normativa dos relacionamentos, tanto que é bastante comum que ele e Bruna sejam vistos como amigos ou uma simples dupla de trabalho, e não como um casal. “Ainda existe a visão heteronormativa do homem e da mulher que vão se unir e constituir família, e quando nos veem isso cai por terra”, explica, bem humorado. 

“Nós não nos sentimos representados, por exemplo”, complementa Bruna. “Nos comerciais de Dia dos Namorados, não é comum vermos pessoas gordas, ou pessoas gordas e trans e assim por diante. Nós carregamos inseguranças, e por nunca nos vermos representados, sempre vamos achar que jamais iremos viver um relacionamento”, pontua. 

“No começo do relacionamento eu me perguntava como isso estava acontecendo comigo porque uma relação feliz me foi negada desde a adolescência, não apenas por ser LGBT, mas também por ser uma pessoa gorda. Na minha escola, as pessoas eram majoritariamente padrão e eu tentava me encaixar nesse padrão, tanto que tenho gatilhos até hoje”. 

“Lembro que meu primeiro beijo foi aos 19 anos”, conta Valentim. “Todo mundo estava se beijando à minha volta e eu pensava: ‘Nossa, nunca vou viver isso’. Naquela época, eu achava que nunca seria amado por ninguém, e hoje em dia estou em um relacionamento de cinco anos e morando junto com a minha namorada”. 

Além de serem um casal que quebra a cis-hétero normatividade, Valentim e Bruna também abriram a relação há algum tempo. De acordo com eles, isso os aproximou mais. “Temos maior liberdade de falar sobre nossos sentimentos”, diz ela. “Aprendemos a respeitar os limites um do outro”. 

“Normalmente, nos relacionamentos monogâmicos existe o medo de falar dos próprios desejos”, desenvolve Valentim. “Nós começamos a conversar muito mais e nos abrir muito mais um com o outro, além de nos entendermos cada dia mais”. 

“Foi difícil no começo”, pontua Bruna. “Mas tudo é uma questão de conversa. Às vezes, no modelo monogâmico, não existe tanto diálogo por medo de ferir os sentimentos do outro com os seus desejos, então as coisas são varridas para debaixo do tapete. No nosso arranjo, amadurecemos muito e acompanhamos a evolução um do outro. Isso foi muito bom”, finaliza.

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