Ramo musical ainda impõe obstáculos para músicos LGBT independentes
O iG Queer conversa com artistas LGBTQIAP+ do ramo independente para entender como o mercado os enxerga – ou deixa de enxergar – esses profissionais
Além de Pabllo Vittar, Liniker, Linn da Quebrada, Pepita, Lia Clark, Jão, entre outros cantores LGBTQIAP+ que se destacam no cenário musical brasileiro em diversos gêneros, há aqueles que não possuem notoriedade nacional, mas ainda assim continuam buscando um lugar sob os holofotes. A vida dos músicos LGBT independentes pode ser resumida, entre outras coisas, à constante tentativa de conquistar espaço para expor a própria arte – de preferência sem estarem sujeitos a represálias.
Para conhecer um pouco mais sobre essa realidade, o iG Queer conversa com cinco músicos independentes que integram a comunidade LGBTQIAP+ e compartilharam as respectivas trajetórias, obstáculos e objeções sobre como a indústria musical recepciona e trata aqueles que estão começando a carreira fora dos padrões cis-hétero normativos.
Cairo Still
A carreira de Cairo, homem gay, começou aos 17 anos, quando ele se aventurou em estudar o setor audiovisual com o intuito de trabalhar com a produção artística. De certo modo, o contato dele com a música aconteceu por acaso. "Realizei algumas gravações próprias e acabei me descobrindo na música, desta vez como artista e também produtor do próprio conteúdo. Hoje, aos 33 anos, ultrapassei a marca de um milhão de streamings dos meus álbuns no Spotify , fiz parte de playlists editoriais oficiais da plataforma e realizei parceria com nomes consolidados, como DJ Lucas Beat, e gravei feat. com a drag queen Paulette Pink, um ícone LGBTQIA+ do Brasil na música ‘Ficar Contigo Não Dá'”, conta.
Cairo conseguiu realizar um sonho compartilhado por muitos músicos independentes, mas infelizmente alcançado por poucos: fazer shows. “Estive em eventos e festivais em todo interior paulista, fui convidado especial fixo da prefeitura para eventos oficiais, cantei ao lado de Sandra de Sá, levei trio elétrico com mais de 10 mil pessoas, pude realizar essa parte, o que a maioria não tem a oportunidade infelizmente”.
Quando questionado sobre como enxerga o ramo da música para artistas LGBT, Cairo explica que é um setor extremamente concorrido que não abre muitas portas para quem está fora dos padrões cis-hétero, o que por sua vez alimenta grande competitividade entre os próprios artistas. “O que acontece pelo meu ponto de vista é que há menor abertura para esses artistas [LGBT independentes] nos eventos em geral, e ainda existe também uma disputa entre os próprios que concorrem a essas poucas vagas. Eu mesmo já perdi oportunidade de cantar na capital de São Paulo em um evento consolidado, assim como também outros muitos amigos artistas independentes, porque tinham contrato com uma grande artista”.
Para o cantor, apesar da indústria musical em geral apresentar incentivos à diversidade, seja com feats que levam nomes LGBT para vários gêneros e possibilita que esses artistas tenham notoriedade, para quem segue na carreira independente falta sim visibilidade e principalmente investimento. “Esses artistas não possuem muito apoio, tanto de artistas de renome quanto de suas distribuidoras. Hoje para um artista independente ser destaque precisa de investimento financeiro. Em uma era em que não existem mais empresários, os próprios artistas devem ser seus próprios agentes, produtores, assessores de imprensa, correr atrás de apresentações, produções, gerenciamento de suas redes sociais. Há um longo caminho ainda para essa turma”, explica ele.
Entre alguns obstáculos que impedem a maior notoriedade dos artistas independentes, Cairo pontua o descaso do próprio público. Para ele, quem consome o trabalho de artistas LGBTQIAP+ deveria dar uma chance para aqueles que ainda não chegaram ao mainstream. “Boa parte das pessoas que gostam de música LGBTQIA+ consomem Pabllo, Gloria Groove e outros três ou quatro nomes de destaque, mas não abre espaço em suas playlists para novos sons. Não há muito apoio enquanto não se está na Globo ou gravando um feat com ‘os renomados’. Eu acredito que falta também um posicionamento destes grandes artistas. A fim de promover a diversidade na música LGBTQIA+, estes poderiam incentivar os fãs e consumir também mais materiais da diversidade. O segredo é quanto mais, melhor”, declara.
Sobre as dificuldades enfrentadas por ele até o momento, é com pesar que Cairo conta ao iG Queer que já sofreu boicotes até mesmo de ONGs que deveriam, em tese, apoiá-lo para que pudesse realizar as apresentações em questão. Os gastos e os problemas com cachê são alguns dos pontos que mais causam dor de cabeça.
“Em 90% das vezes tive problemas com pessoas que deveriam prestar apoio: ONGs e produtores de eventos. Fui muito derrubado para outros subirem, vi muitos amigos meus, assim como eu, tendo que viajar, gastar com figurino, ir atrás de produção musical para estes shows e não ganhar um real sequer de cachê. Muitas das vezes, nem lugar para nos trocarmos tínhamos e não recebíamos nem água. A questão do cachê é algo delicado de abordar, pois muitas ONGs não possuem verba pública, mas há muita má intenção no meio e nunca podemos ter certeza de uma situação. Claro que não generalizo, há muitas pessoas, ONGs e produtores bons. Já aconteceu de pessoas de ONG voltada à diversidade LGBTQIA+ mexerem céus e mares e irem atrás do prefeito para mostrar prints meus reclamando de ‘buracos no asfalto’ pela cidade a fim de derrubar uma apresentação minha em show de Réveillon. Conseguiram até derrubar o primeiro cachê que eu receberia da prefeitura. Isso são apenas alguns exemplos”, conclui.
Jhon - O Rei do Norte
Cantor e compositor, Jhon é um nome em ascensão na nova geração do sertanejo. Ele é o primeiro artista transgênero solo do gênero no Brasil e descobriu-se músico aos 12 anos, mas começou a investir nesse caminho apenas dois anos depois. Jhon reconhece o peso e a importância de ser o primeiro cantor sertanejo trans do país e deseja construir uma carreira bem consolidada. De acordo com ele, assumir foi a primeira e maior barreira de todas.
“O maior obstáculo foi quando eu era Jenniffer e queria deixar o Jhon sair, mas ainda não tinha coragem por conta da família e o que as pessoas iriam pensar”. Para o cantor, alguns artistas que já são bem reconhecidos estão se mostrando mais solícitos e atentos aos talentos em ascensão. “Muitos artistas estão abrindo as portas para quem é LGBT e está começando uma carreira. Hoje em dia a gente já consegue ver pessoas que fogem da norma hétero-cis em lugares que antigamente era quase impossível”.
Apesar deste fator positivo, Jhon não deixa de chamar a atenção para o fato de que ainda há muitas dificuldades no meio, em especial o preconceito que continua afastando pessoas LGBTQIAP+ dos respectivos objetivos. “Mesmo que as coisas tenham evoluído e existam artistas LGBT no mercado, ainda há barreiras pelo fato de grande parte da sociedade ainda, infelizmente, ser preconceituosa ou até mesmo desinformada”, conclui.
Lindy XOXO
Drag queen, Lindy conta ao iG Queer que desde pequena gostava de realizar shows particulares para a família na sala de estar e para os amigos que iam visitá-los. "Sempre foi algo muito natural: a arte e a música mais especificamente eram a maneira por meio da qual eu me conectava com o mundo. Por isso, na hora de escolher a profissão, não tinha dúvidas que seria algo relacionado com música e teatro. Durante algum tempo, acreditei que o lugar ideal de união dessas coisas era o teatro musical, mas confesso que me senti um pouco sufocada. Em paralelo, a paixão pela música pop só ia crescendo, então encontrei na arte drag o espaço para não ser apenas uma cantora, mas uma diva pop ”, explica.
Sobre os avanços e retrocessos dos artistas LGBTQIAP+ na indústria musical, Lindy destaca que expoentes da MPB que foram pioneiros para que os cantores e cantoras da comunidade possam, aos poucos, reivindicar o próprio espaço atualmente. Ela acredita que tudo se torna mais difícil para quem pertence a uma expressão dissidente de gênero ou sexualidade.
"Na música não é diferente, mas creio que temos tido grandes avanços nos últimos tempos e ocupado espaços muito interessantes. Não que antes não existissem grandes artistas LGBT na música brasileira. Não dá para falar disso sem pensar em Ney Matogrosso, Cassia Eller, Cazuza… mas eu tenho a sensação de que antes eles eram enxergados como ‘grandes artistas, apesar de sua sexualidade’, e hoje, com Pabllo, Ludmilla, Gloria Groove, sinto que a sexualidade é mais reconhecida como adicional positivo ao talento incrível que eles têm. Acredito que a principal barreira é sempre o preconceito e essa questão de ‘furar a bolha’”, esclarece ela.
Para a artista, o país ainda precisa se despir de muita discriminação para que haja de fato uma estabilidade com as quais os artistas LGBTQIAP+ independentes possam contar. “O nosso país ainda tem muitos preconceitos para desconstruir, e acredito que muito disso é fruto da desigualdade social. Por isso, não vejo futuro para cultura e arte LGBT brasileira enquanto continuarmos apoiando e colaborando com um sistema de desigualdade social tão profunda como vemos no Brasil”, expõe.
Para ela, lidar com o fato de não corresponder às normas cis-hétero com certeza foi uma das maiores pedras no caminho até o momento. Lindy diz que, independenteemnte de gênero ou sexualidade, ela sempre foi uma pessoa que se destacava por onde passava, seja pelo talento, pela coragem ou pela dedicação, e isso "causou muito barulho".
"Hoje em dia eu aprendi a lidar, mas quando era mais nova fui submetida a muito bullying e discriminação simplesmente por ser quem sou. Ao mesmo tempo, minha maior vitória é ter conseguido me manter verdadeira a mim mesma e sempre acreditar no meu sonho e na minha arte”, confidencia ao iG Queer.
Fernanda Reche
Para a cantora lésbica , a música traz sobretudo uma memória afetiva de quando era criada pelo avós com, como ela mesma destaca, muita honestidade e amor. Fernanda Reche detalha que, aos oito anos, começou a aprender violão sozinha, lendo cifras básicas em revistinhas de banca de jornal que o avô lhe dava. Ela ressalta que seus avós tiveram grande responsabilidade pela veia artística que hoje ela trabalha nos palcos.
"Eles me deram meu primeiro violão e foi daí que saiu tudo o que sei hoje. A minha música sempre foi feita da forma mais simples possível e isso me orgulha muito. Eu aprendi a cantar e tocar sozinha e tudo vem do mais puro feeling – eu não recomendo, ok? Estudem música. Compor é a minha paixão e tudo para mim se torna música. Cantar é consequência, mas também me encanta e me acalma. Eu canto para me acalmar, literalmente. A gente precisa de uma boa válvula de escape nesse mundo e a música é basicamente a minha casinha na árvore. É para lá que eu vou quando tudo parece assustador demais”, relata.
Sobre a trajetória de ser uma cantora LGBT independente, ela destaca não apenas o preconceito dentro do meio, que é estrutural, mas também o fato de que o artista precisa dar conta de tudo sozinho. “Praticamente tudo é tirado do nosso próprio bolso e o dinheiro do mercado artístico, num todo, não dá nem uma voltinha na esquina do mercado independente. Inclusive, justamente pelo fato de não existir espaço suficiente para nós neste ramo, a maioria tem trabalhos paralelos, às vezes em áreas completamente diferentes da arte. Se isso tudo já é difícil para quem não faz parte da comunidade LGBT e possui diversos e variados privilégios, imagina para quem faz? Nem sempre somos vistos, lembrados ou escutados”, desabafa.
Para Fernanda, a herança de artistas LGBT nacionais já citados por Lindy XOXO anteriomente está sendo bem cuidada pelas mãos das novas gerações. Porém, ela também chama a atenção para o fato de que a distância entre os artistas que ocupam os principais pódios da música LGBT e aqueles que estão no meio underground é muito grande. “Liniker, Jup do Bairro, Linn da Quebrada, Gloria Groove, Ludmilla e Pabllo Vittar são destaques e ícones da atual música brasileira e representam o gênero muito bem. Essa recepção existe, porém, ao meu ver, as linhas que ligam o mainstream e o underground não chegam nem perto de se cruzarem, mas é muito bonito ver a galera LGBTQIA+ independente se inspirando em quem já está com metade do caminho andado. É bom frisar que alguns artistas do gênero que hoje estão no topo começaram de forma independente, por baixo. A gente até sente aquele ânimo e esperança em continuar”.
Quanto aos perrengues e episódios de preconceito que já enfrentou durante a carreira, Fernanda conta que não se recorda de nenhuma situação específica de lesbofobia, mas destaca o machismo que circula no meio. “Me lembro de, lá no começo, chegar para tocar em algum lugar e receber olhares nítidos de julgamento, onde claramente eu estava sendo vista como 'uma mulher que não vai saber tocar um violão direito'. No final, uma galera sempre vinha me cumprimentar e elogiar meu som ou minha forma de tocar ou cantar. E mesmo assim alguns elogios chegavam sempre disfarçados de uma passividade agressiva: ‘Toca melhor que muito homem, hein?’. Cito esta situação em específico justamente para trazer à tona o fato da invalidação e desigualdade de gênero na cena, independente ou não. A gente precisa estar sempre reafirmando as nossas habilidades e competências”, explica.
Shinyhog
O nome artístico de Gabriel Lira começou a querer tomar forma em 2018, quando ele decidiu compor pela primeira vez . Contudo, o apreço pela música vem desde a tenra infância. “Sempre admirei o ramo da música. Gostava de transformar uma ideia em algo que as pessoas consumiriam no dia a dia, seja apenas por entretenimento ou não. Mas só cheguei a me ver de fato no meio desse ramo em 2018, quando comecei a escrever minhas primeiras letras. Sentia como se minha alma e minha essência realmente fossem transpostas em cada verso, e foi ali que me senti de fato livre pela primeira vez. Desde então venho escrevendo para poder me sentir melhor comigo mesmo”, conta ao iG Queer.
Não-binário e pansexual, Shinyhog explica que, de acordo com o que tem observado, além da LGBTfobia generalizada no meio, dependendo do gênero musical no qual o artista está inserido, os cenários podem variar. “Acho que as principais barreiras na verdade dependem um pouco do gênero do qual se trata. Se falamos da música pop, por exemplo, encontramos diversos artistas da comunidade LGBT, porém se falamos do rap ou do trap esse número cai drasticamente. Isso se dá por conta do público que consome aquele tipo de conteúdo. Porém, aos poucos, esse público vem de fato se diversificando. Ainda assim, para artistas menores, isso acaba sendo um obstáculo da mesma forma”, pontua.
Para o artista, além do ramo da música não ser muito receptivo com pessoas LGBT+, a situação se agrava ainda mais quando o cantor ou cantora em questão não se adequa a determinados padrões ou expectativas da indústria que são empurradas garganta abaixo.
“O próprio Yung Buda é exemplo quando diz em uma de suas linhas: ‘Pensei em várias linhas, mas a massa não entende’. É o que ocorre com diversos artistas independentes. E, quando entendem as linhas, simplesmente acabam por não se encaixar nelas. Por isso, em ‘Oni’, uma música que lancei no final de janeiro, coloquei no refrão que: ‘Tua mina, teu hype e tua grana é tudo pra gang’. Essas três coisas são só o que importa para algumas pessoas que desde sempre tentam inviabilizar a nós e a nossa comunidade, transformando ela em chacota ou algo que não tem capacidade de assumir o mainstream. Mas faço questão de falar que o que é deles nós vamos aos poucos tomar como nosso, fazer nossa inscrição como parte dessa história, assim como sempre fomos”, finaliza.
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