"O público está cansado de não se ver na tela", diz Gautier Lee

A roteirista e diretora não-binária analisa o terreno da indústria audiovisual e o poder das novas narrativas diversas sobre o público e o mercado

Gautier Lee
Foto: Divulgação
Gautier Lee

A diretora e roteirista Gautier Lee demorou 28 anos (e 130 séries assistidas) para encontrar um personagem no audiovisual que refletisse o que ela é: uma pessoa negra e não binária. Lembra que a primeira personagem não binária que encontrou foi uma lagartixa verde. Foi só na terceira temporada de “Sex Education” que conseguiu se ver no personagem não binário Cal Bowman (que ganha vida nas telas por Dua Saleh).

“Poxa, não deveria ter demorado tanto assim. A Netflix, que é o maior streaming do mundo, tem mais de 200 séries originais no catálogo e levou todo esse tempo para algo tão simples. Uma pessoa negra e não binária, são só duas características. Foi mais fácil achar uma lagartixa verde do que isso”, reflete a roteirista em entrevista ao iG Queer.

Essa falta de representatividade se dá em um período histórico da cultura pop e do audiovisual em que, paradoxalmente, diversidade é uma das principais demandas do público. As narrativas que abordam apenas o recorte hegemônico (branco, cisgênero, hétero e de classe média alta) estão defasadas, e agora estúdios, organizações de prestígio e talentos criativos correm atrás do prejuízo por não terem conseguido entender isso antes.

“Eu acho que existe um interesse muito grande porque o público está cansado de não se ver na tela. Está tudo bem em contar histórias sobre pessoas brancas heteronormativas, mas há quanto tempo a gente está ouvindo essas mesmas histórias?”, questiona Gautier.

A complexidade maior de personagens também tem se destacado, algo que a roteirista atribui ao fato de que mais pessoas de grupos minoritários estão conseguindo contar suas histórias. “Esses passos estão sendo dados bem lentamente, mas estão acontecendo. Isso vai acabar sendo uma tendência”, diz.

Gautier aponta que por mais que se aborde a diversidade e haja um movimento da indústria do audiovisual referente às mudanças para que isso cresça, o ritmo é lento. Ela cita como exemplo a reformulação de critérios de inclusão para indicação de filmes ao Oscar. “Não podemos esperar que isso se reverta de um ano para o outro. Esses novos critérios só vão passar a valer em 2024, então talvez daqui a dez anos a gente consiga ver que metade dos indicados são pessoas não brancas, pessoas trans ou pessoas não hétero. É uma jornada que está começando só agora”, analisa a roteirista.

Vitórias coletivas

Por outro lado, Gautier celebra que exista uma presença expressivamente maior desses títulos e do reconhecimento destes talentos mesmo que as cotas de inclusão ainda não existem. A temporada de premiação estadunidense deste ano, por exemplo, registrou prêmios históricos.

MJ Rodriguez, que interpretou Blanca Evangelista em "Pose", foi a primeira mulher trans a ganhar um Globo de Ouro . A série sul-coreana “Round 6” conseguiu vencer diversas premiações em categorias principais que, geralmente, são reservadas para produtos, atores ou equipes falantes de língua inglesa. No último Oscar, que foi ao ar no último domingo (27), Ariana DeBose se tornou a primeira atriz afro-porto-riquenha queer a vencer uma estatueta na história. Na mesma noite que ela, Troy Kotsur foi o primeiro ator surdo a ganhar.

“Essas vitórias são absolutamente coletivas”, começa Gautier. “Mesmo que a pessoa em si que está sendo premiada ache que não, elas acabam sendo coletivas porque refletem em todas as pessoas que fazem parte daqueles grupos que a pessoa vitoriosa também faz parte”, acrescenta.

Gautier se lembra que chegou a ser atravessada por esse sentimento quando Cleissa Regina Martins, que escreveu o especial de Natal de 2019 da TV Globo “Juntos a Magia Acontece”, venceu o Festival de Cannes pela obra. Além de ser o primeiro Cannes da roteirista, foi o primeiro que uma produção da TV Globo recebeu. O filme é protagonizado por uma família negra e traz um Papai Noel negro.

Gautier explica que a vitória de Cleissa abriu portas para que histórias de Natal protagonizadas por pessoas negras ganhassem espaço dentro da indústria. Agora, graças ao bom retorno de “Juntos a Magia Acontece”, Gautier é quem escreve um projeto natalino.

“A vitória é dela e é maravilhosa, mas acabou refletindo em mim e em outros profissionais dentro da própria Globo. Eles têm olhado melhor para os profissionais negros da casa, e a gente teve um projeto que conseguiu isso. Quantos autores negros tem dentro da Globo e quantos prêmios não estão ali aguardando para serem ganhos quando esses projetos forem ao ar? Essas vitórias são um passo para todo mundo”.

Diversidade importa também por trás das câmeras

A roteirista vê a maneira como a representatividade funciona hoje com otimismo porque acredita que, atualmente, há uma preocupação que antes existia apenas na teoria. “Essa preocupação acontece não apenas no sentido de contratar pessoas não brancas, não cis, não hétero e fora do eixo Rio e São Paulo, mas de abrir portas e dar boas oportunidades”.

Isso porque, para além da presença diversa na frente das câmeras, quem está por trás delas também pode impactar diretamente em um processo criativo, independentemente do espaço hierárquico. Gautier explica que, por mais que haja todo glamour do cinema, no fim do dia se trata de uma pessoa marginalizada que pode ocupar um cargo de trabalho.

“Pessoas trans, por exemplo, têm sido marginalizadas e muitas delas acabam na prostituição porque não conseguem outra forma de sustento. Então, cada vez que se contrata uma pessoa trans, é uma vida que se está salvando. Essa pessoa estará em um lugar seguro, será bem paga e vai conseguir experiência para um futuro melhor”, começa Gautier.

Essa presença de profissionais, desde eletricistas, motoristas e camareiros até diretores e roteiristas, engrandece o próprio significado da obra em si. “Ter outros olhares nos ajudando a construir a narrativa junto impacta demais. Às vezes não conseguimos perceber certas situações por nossas vivências e nosso olhar, o que pode vir a incomodar outros grupos minoritários”.

A roteirista se lembra de uma situação que viveu no processo de escrita de seu primeiro longa-metragem, chamado “Love 101”, que trazia protagonistas asiáticos: uma mulher indiana e um homem trans chinês. “Mandei para um amigo descendente de japoneses e ele me apontou alguns termos e contextos que apontei como chineses, mas eram mais comuns na Coreia”, explica.

“Não era um longa que falava sobre questões raciais do continente asiático, era um romance. Só que tinha esse detalhe que, depois que ouvi, me toquei que era verdade e que não não tinha pensado nisso. Só de receber esse apontamento, percebi que poderia ter tomado uma proporção muito maior, eu poderia ter ofendido esses grupos e essas culturas”, continua. Gautier pediu para que mais pessoas descendentes de asiáticas lessem o roteiro e ajustou o que foi preciso. “Para mim, isso engrandeceu o meu roteiro e a minha caminhada, porque vou poder cometer erros novos”.

“Ajuda ter esses olhares diversos, porque por mais que a gente tenha boas intenções, a gente não vive o que outros grupos vivem. É sempre importante ter essa comunicação, ter um diálogo aberto, estudar, pesquisar, ouvir e depois criar. Tem que entender que lugar é esse de criar uma narrativa e quais responsabilidades vêm junto com ele”, reforça.

Apoio mútuo

Para ajudar com que mais profissionais diversos consigam ingressar no audiovisual, tem surgido coletivos artísticos que têm como objetivo auxiliar na ascensão de mais profissionais que fazem parte de grupos minoritários, além de garantir que mais obras conquistem novos espaços.

A própria Gautier está dentro deste eixo. Ela faz parte do Coletivo Macumba Lab, que reúne profissionais negres do audiovisual no Rio Grande do Sul; da Organization of Black Screenwriters; e do Black Femme Supremacy. Gautier também criou o festival Fade To Black, que premia produtos audiovisuais criados por pessoas negras levando em conta critérios como originalidade e qualidades técnica e narrativa para garantir mais chances para profissionais pretos.

“Essas organizações são importantes porque também se tornam lugares de acolhimento. Às vezes a gente passa por situações desconfortáveis, desagradáveis, violentas, até criminosas, e a gente enquanto indivíduo nem sempre consegue lidar com isso. Então, poder recorrer a uma instituição que é formada de pessoas que vão te compreender, acolher e ajudar, seja a encontrar um advogado ou saber se o preço oferecido por um trabalho está baixo, é importante. Tudo isso é muito importante para a gente se fortalecer”, explica.