Do bar à balada: como criar ambientes de lazer seguros para LGBTs e mulheres?
Políticas claras de proteção, treinamento de funcionários e levar denúncias com seriedade são pilares importantes para construir espaços confiáveis
Passar algumas horas no bar com amigos ou sair tarde da noite de uma balada são aspectos comuns de um passeio bom. Para pessoas LGBTQIA+ e mulheres, essas situações prazerosas também podem significar medo de violências. Mesmo em ambientes voltados para o bem-estar, esse público está vulnerável a situações inseguras. Com isso, gera-se preocupação para encontrar espaços que estejam comprometidos não apenas a garantir segurança, mas também a agir para proteger o cliente quando necessário.
Essa preocupação não é infundada e se solidifica ao observar os índices de violência. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) aponta que, em 2020, 60 mil mulheres foram estupradas. Além disso, só no estado de São Paulo, as denúncias de importunação sexual aumentaram 24,3% até setembro deste ano, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). O total é de mais de 3 mil notificações de importunação.
Os dados são subnotificados no caso de pessoas LGBTQIA+, já que grande parte dos censos realizados não são oficiais. No entanto, o FBSP estima que, em 2020, ocorreram quatro casos de LGBTfobia por dia no Brasil. Foram 1.169 lesões corporais, 121 assassinatos e 88 estupros. No caso de pessoas trans, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) registrou 56 mortes entre janeiro e abril deste ano.
Não há especificações de quando ou onde esses crimes ocorrem, já que há vulnerabilidades até para quem está dentro de casa. Mas em bares, restaurantes, shows, baladas e eventos em geral, mulheres e pessoas LGBTQIA+ são consideradas “alvos fáceis” para agressores. Essa relação é feita, principalmente, levando em conta consumo de álcool, falta de proteção do ambiente e o horário noturno.
Um exemplo recente disso é o caso do assassinato da travesti Larraya, de 53 anos, em Sobral, no Ceará. Ela participava de uma festa pela madrugada quando foi agredida fisicamente por um homem de 43 anos, que foi detido e será autuado por homicídio. O agressor bateu a cabeça da travesti no chão ao puxar os cabelos dela, o que causou a fatalidade .
Como garantir lazer com segurança?
Para tentar reverter essa realidade, os estabelecimentos estão cada vez mais interessados em criar espaços de segurança, acolhimento e proteção. Assim, espera-se que esse público possa se preocupar menos com eventuais situações violentas e mais na diversão e lazer. Esse movimento deixou de ser preocupação dos setores, transcendendo a uma demanda pública e política.
Diversos estados brasileiros têm criado leis e projetos para que os estabelecimentos protejam frequentadoras e funcionárias que se sentirem assediadas. Alguns bares chegaram a criar pratos e drinks fictícios para que a cliente possa solicitá-lo caso se sinta em risco. No Paraná, o PL nº15.590/20, conhecido como Drink Maria da Penha, foi aprovado e obriga que estabelecimentos como cafés, quiosques, casas noturnas restaurantes auxiliem as vítimas que estejam se sentindo importunadas.
A demanda por mais segurança também é sentida pelo empreendedorismo e cada vez mais startups e iniciativas tecnológicas surgem para prestar esse serviço de segurança. Um exemplo é o trabalho feito pela femtech AliceGO em São Paulo, com aceleração da FAB LAB, que pensa soluções de segurança para bares, restaurantes e hotéis. O AliceGO é um aplicativo de geolocalização conecta mulheres a bares e restaurantes que tenham comprometimento com práticas seguras durante toda experiência, desde a chegada ao bar até a volta para casa.
De acordo com a fundadora e CEO da AliceGO, Éridan Lengruber, é esperado que as melhorias também sejam sentidas pelo público LGBTQIA+. Para ela, um problema em comum entre as frequentadoras que passam por assédios e violências é o apagamento da voz da vítima. “Isso acontece tanto como consumidora quanto como funcionário. Há ainda a habitual autorregulação dos nossos corpos. Os problemas acabam sendo bem parecidos entre mulheres e LGBTQIA+”, explica.
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Éridan explica que os bares que desejam fazer parte da rede passam por uma triagem. Assim, é possível verificar quais são as políticas e protocolos de segurança trabalhados em cada local. “Estabelecimentos com políticas bem definidas geralmente costumam ter diversidade já no seu staff. A cultura AliceGO acaba sendo uma extensão da casa, com correções e acertos mais pontuais”, explica.
“Isso não significa que um estabelecimento não possa mudar sua conduta e reescrever sua história. Porém é necessário comprometimento e alinhamento de ponta a ponta”, acresenta. Éridan afirma que algo que pode se tornar um bom indicador de espaço seguro é a gestão feminina ou de pessoas LGBTQIA+. “No entanto, essa gestão presta estar alinhada ao atendimento”.
“O mundo está mudando rápido e a necessidade de mais lideranças femininas está cada dia mais evidente. O mundo será cada dia mais conectado e diverso, e quem não entender isso hoje vai perder a vanguarda da revolução que está chegando. Acreditamos em uma sociedade 5.0 mais colaborativa e circular. Com isso, cuidar do outro é fundamental e pode ser determinante para um bom faturamento”, reflete Éridan.
Estruturando mudanças
Éridan afirma que para conseguir ambientes de lazer seguros, é preciso que o estabelecimento tenha comprometimento com as pessoas consumidoras, políticas claras que se estendam aos funcionários e protocolo de segurança. Além disso, o acolhimento de reclamações e denúncias, canais de avaliação dessas necessidades e treinamentos são primordiais.
Alexandra Di Calafiori é sócia administradora do Galeria Café no Rio de Janeiro e, mais recentemente, em São Paulo. A proposta do local é de ser um bar com galeria de arte, mas que também funcione como balada. O local é frequentado, principalmente, por pessoas LGBTQIA+. Para Alexandra, o motivo para isso é a forma como o espaço se propõe a transparecer a sensação de conforto e liberdade.
Esses pilares são bastante expressados na própria decoração da casa. A administradora define a política do bar como people friendly; "A gente tem todo um DNA pensado para o acolhimento, seja no painel com fotos de diversas formas de casais ou na nossa maneira de receber as pessoas", conta.
Alexandra também considera importante que um staff diverso também é fundamental para que a pessoa frequentadora se sinta em segurança e, caso necessário, possa pedir ajuda. "São pessoas que têm dificuldade maior de serem inseridas dentro do mercado de trabalho. É quem a gente prioriza na hora de contratar", aponta.
O treinamento da segurança do local também é um pilar que a administradora considera relevante. Os profissionais desse setor são treinados para se enquadrar dentro desse conceito people friendly. Além disso, workshops do staff com pessoas LGBTQIA+, principalmente pessoas trans, foram oferecidos para que os funcionários pudessem se educar e aprender a agir em casos de imprevisibilidade.
Por fim, ela afirma que, como espaço de entretenimento, também é importante proporcionar alegria e diversão. "Trazemos esse relaxamento, essa alma que dança e que sempre se diverte. A gente recebe as pessoas com carinho, afeto e amizade. É dos processos internos que aquela pessoa esteja ali, independente dos traumas que tenha vivido, e se sinta acolhida, como se fosse sua segunda casa", afirma.