"É menino ou menina?": Intersexos compartilham suas vivências

Com mais de 40 estados intersexos, pessoas de diferentes gêneros contam como é ser intersexo no Brasil

Foto: Arquivo pessoal
Conheça a realidade da pessoa intersexo no Brasil








“É menino ou menina?”. Da enfermeira da sala de parto às caminhadas na rua, a resposta para essa questão era sempre a mesma: “Os dois. É intersexo”, respondia Thais Emília de Campos, mãe de Jacob, que decidiu cria-lo com uma educação neutra até que tivesse idade suficiente para decidir seu gênero .

Existem pelo menos 40 estados intersexos, que é o conjunto de alterações de desenvolvimento do sexo. Eles são caracterizados, por exemplo, por incompatibilidades entre órgãos e cromossomos sexuais, alterações hormonais e ambiguidades sexuais. Em todo o mundo, mais de 1% da população é intersexo, que é, mais ou menos, a porcentagem de ruivos no planeta.


Quando Thais estava grávida, uma ressonância fetal mostrou que Jacob apresentava uma ambiguidade sexual. Ele tinha um clítoris aumentado. “Eu não me importei com seu sexo, a nossa maior preocupação era sua saúde. Ele tinha microcefalia e um grave problema no coração”, conta a psicopedagoga e educadora sexual.

No primeiro dia de vida de Jacob, o órgão genital foi a maior preocupação das equipes médicas do hospital que o submeteram a diversos exames e ultrassons. Com o objetivo de definir o sexo da criança, os médicos sugeriram uma cirurgia de sexo. Os pais, no entanto, recusaram.

Foto: Arquivo pessoal
Thaís e Jacob


Por conta disso, o hospital se recusou a emitir um documento, essencial para dar abertura na Certidão de Nascimento. Durante dois meses, a mãe não conseguiu ter acesso à licença-maternidade, nem Jacob ao SUS e ao Convênio de Saúde, até ele ser registrado com o sexo masculino e ter o documento.

Após o ocorrido, Thaís descobriu que, desde 2012, é possível registrar o sexo como "ignorado", quando a criança é intersexo. Entretanto, ainda existe muita desinformação e preconceito.

Um ano e meio depois do nascimento, Jacob faleceu de um problema cardíaco. Por conta da sua criação neutra e por ter recusado realizar o procedimento cirúrgico, Thaís se tornou uma referência para as famílias com filhos intersexo e hoje é diretora da Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI). 

“Essas cirurgias são permanentes e não indicadas. É importante dar um tempo para que a criança comece a se expressar. A educação mais neutra é uma proteção para a criança intersexo”, explica Thaís que escreveu um livro autobiográfico sofre ser mãe de Jacob, "Jacob(y), 'entre os sexos' e cardiopatias, o que o fez Anjo?".


Cirurgia x Mutilação

Foto: Reprodução
Carol Iara


Diferentemente de Jacob, a maioria das crianças intersexos tem seus gêneros escolhidos ao nascer. Muitos, são submetidos a cirurgias e a terapias hormonais. 

Nascida intersexo, a co-vereadora do PSOL Carolina Iara, 28 anos, foi submetida a diversas cirurgias de redesignação sexual -- ou mutilações, como ela chama-- e socializada como um menino. “Passei por três grandes cirurgias na infância, uma ao nascer. Eu me lembro de duas que fiz, com seis e 12 anos. Foi algo de muito sofrimento e dor”, conta.

A mãe de Carolina foi enganada pela equipe médica e acreditava que os médicos estavam certos nos procedimentos. “Na época diziam que havia uma má formação congênita e era necessário uma operação urgente. Ninguém questionava sobre ser dos dois sexos. Um dos dois era errado, então tinha que corrigir para apenas um”, lembra Carolina.

Aos 26 anos, realizou seu processo de transição e se posicionou como travesti. Em 2020, se tornou a primeira travesti e intersexo a ocupar um vaga legislativa no Brasil. “Agora posso sublimar toda essa dor, essas mutilações físicas e psicológicas, em luta e contribuir para a quebra de alguns paradigmas de gênero”, declara.


Descoberta tardia

Foto: Arquivo pessoal
Mônica Porto


Em alguns casos, não é possível a olho nu determinar se existe alguma ambiguidade sexual. Foi isso que aconteceu com a advogada Mônica Porto, de 31 anos, que tomou conhecimento de que era intersexo aos 27. 

“Eu sempre ia ao ginecologista junto com minha mãe, mesmo depois de mais velha. Até que um belo dia fui sozinha em outro profissional”, conta.

Como de costume, Mônica levou os exames e o ultrassom. Ao examinar os documentos, o médico falou: “Você é hermadrodita”. O termo -- visto como pejorativo pelos ativistas e não utilizado por médicos especializados -- chocou Mônica. “O médico explicou que tinha ovotestis, que é um tecido testicular em volta do ovário”, conta

“Fiquei muito mal, tive uma crise identitária. Sempre me senti um pouco diferente das outras pessoas, comecei a questionar quem eu era”, conta a advogada que é Presidente da Comissão de Direito LGBTQIA + da OAB Sergipe. 

Após descobrir que era intersexo, decidiu fazer um tratamento hormonal para diminuir algumas características vistas socialmente como masculinas. Após sofrer com efeitos colaterais dos homônios, decidiu abandonar os remédios. “Eu não mudaria mais quem eu sou. Quando me descobri intersexo, me senti uma pessoa muito mais completa”, afirma.

Atualmente, Mônica se entende como genderfluid, isto é, uma pessoa que transiciona entre o gênero feminino e o neutro. “Sexo e gênero não têm nenhuma correlação. No meu caso, já escutei por ser intersexo que sou metade homem. Não, não sou”, diz. Neste ano, fundou uma consultoria em diversidade e inclusão, com o intuito de trazer maior diversidade de pessoas, dentre elas, intersexos, nos ambientes de trabalho.


Interfobia

Foto: Arquivo pessoal
Dionne Freitas


Em sua infância em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, Dionne Freitas, 31 anos, era vista como uma criança afeminada. “Desde os três anos, eu me via como uma garota. Amava brincar com os brinquedos da minha irmã e me vestir como uma, mas meu pai era da igreja evangélica e não aceitava”, lembra. 

Na pré-adolescência, quando todos os meninos engrossavam a voz e criavam barba, Dionne não apresentou nenhuma característica corporal e os pais decidiram consultar o médico. Após alguns exames, descobriram que ela era intersexo. 

O médico sugeriu um tratamento hormonal com testosterona e uma cirurgia genital. Dionne conseguiu convencer sua família a não fazer o tratamento.“Eu vejo como sorte ser intersexo, facilitou minha transição. Meu pai via como algo natural, ele dizia que Deus me fez assim. Então ele não exigiu que eu tomasse testosterona, mas não me deixava fazer a transição feminina”, lembra.

Por conta própria, começou a tomar anticoncepcional escondido e seu corpo ganhou curvas e seios. A partir daí, Dionne sofreu incontáveis casos de transfobia e interfobia. 

“Fui muito perseguida no meu bairro, levava pedradas no meio da rua. Na escola, queriam tirar minha roupa e era espancada. Sofri três tentativas de estupro. Achavam que era uma aberração biológica e que tinha que morrer”, conta.

Aos poucos, sua família aceitou e apoiou sua transição de gênero e ela se formou como Terapeuta Ocupacional pela USP. "As pessoas da cidade achavam que eu ia para a faculdade me prostituir”, lembra.

Atualmente, Dionne é mestre, educadora sexual e diretora consultora de saúde da ABRAI. É um dos maiores nomes do ativismo intersexo no Brasil e  compartilha suas vivências em vídeos no Youtube.

Para as pessoas que são intersexo, ela fala: “Nunca deixe que te tratem como alguém anormal, como uma aberração. Ter uma diferença faz parte da natureza humana e isso só faz você parte dessa diversidade. A gente faz parte do que é ser natural, não só o que está nessa norma social”.