Desde o último Big Brother Brasil, quando o integrante Fiuk usou um vestido de lamê prateado, da marca Jay Boggo, as discussões sobre moda agênero ficaram mais acaloradas. Muito se debate sobre o verdadeiro conceito por trás dessa modalidade, mas ela nasce principalmente por conta da categorização das roupas em “masculina” e “feminina”, alimentando estereótipos binários de gênero e expectativas de como cada pessoa deve se vestir para ser vista e aceita dentro dos espaços sociais.
Yanaí Mendes , fotógrafa e professora nos cursos de moda da Universidade Anhembi Morumbi, “a definição mais literal de moda agênero, seria a de uma moda que defenda o gênero neutro. Ela costuma buscar modelagens que não definam nada muito marcante para o corpo feminino ou masculino, nem que use cores com esse estigma”. Luana Geiss, responsável pelo marketing da ‘ Made by You’ , uma empresa que confecciona peças em crochê e envia para os clientes com um kit “faça você mesmo” onde é possível explorar todas as formas de ser e vestir, destaca que as novas gerações estão aderindo ao movimento de vestirem-se com mais liberdade, sem as amarras dos estereótipos.
“É um movimento que vem aliado à busca pela liberdade individual, uma nova geração que vem lutando contra as opressões sociais e busca a liberdade de expressão e de ser, como a comunidade LGBTQIA+ ou o próprio movimento feminista. Isso reflete na sociedade como um todo, que entende que a moda é uma forma de expressão, que podemos ser quem quisermos ser e vestir aquilo que nos faz sentir bem, sem regras ou etiquetas. Observo que, aqui no Brasil, a moda sem gênero vem inspirando muitas marcas a se reinventarem, principalmente porque o movimento desperta o interesse da exclusividade no indivíduo, a busca por uma roupa que expresse a personalidade, além de subverter à dualidade de gênero, também exige criatividade para quem cria”, conta.
Para quem vive e veste essa moda, liberdade de fato é um estado real. Gui Grossi , agênero, produz em suas redes sociais conteúdos sobre moda agênero e como se sentir mais seguro usando o que gosta e o que faz bem. Ela conta que seu primeiro contato com a moda agênero foi em 2016, e desde então é algo presente no cotidiano.
“Em 2016 eu estudava produção de moda e essa discussão [moda agênero] já estava forte naquela época. De primeira, eu me interessei bastante pelo assunto. Pesquisei, troquei figurinhas com outros profissionais da área e entendi que, para a moda ser justa com todes, deveríamos seguir esse caminho: uma moda livre de gênero e que atenda todos os corpos. Foi ali que encontrei um lugar confortável, em que eu pudesse ser eu sem ser questionada e com a missão de levar esse diálogo adiante”, relata.
Yanaí relembra que o conceito da moda unissex não é atual, embora esteja ganhando força nos últimos anos. “Assim como a moda unissex nos anos 1960, que designava roupas e penteados que pudessem ser usados por ambos os sexos, hoje a moda agênero reforça novamente a ideia de que cada indivíduo, seja do sexo feminino, masculino ou se defina da maneira que se sentir mais confortável, possa vestir-se com o que bem entender, com o que lhe faz sentir-se bem, sem ter que se adaptar a estruturas pré-definidas”.
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A professora expande ainda mais o campo de análise quando traz à tona que falar sobre moda agênero não se limita apenas a debater sobre um estilo, e sim sobre questões intrínsecas na sociedade que se baseia no binarismo (homem e mulher) para reproduzir expectativas e normas que excluem todos os corpos que não se adequam a elas, desde corpos cis até corpos trans, principalmente.
“Essa ‘nova moda’ tende a descartar a necessidade que uma pessoa tem de recorrer ao guarda-roupa de outra do gênero oposto, a fim de encontrar peças que a façam se sentir feliz e completa no modo de expor a identidade e aparência ao mundo. Ao meu ver, essa introdução vem muito mais nas conversas sobre respeito e aceitação e na educação recebida pelas pessoas do que no guarda-roupa. Entender que uma saia possa ser usada por um homem é entender que uma saia é uma roupa, com a função de cobrir e proteger o corpo de influências externas e propor um discurso de identidade pessoal, intransferível e único, e não que é uma roupa de mulher”, explica ela.
Luana Geiss reconhece a importância da moda agênero na vivência de pessoas transgênero e ressalta ainda que o mercado também está recebendo certa demanda de pessoas cis que estão se libertando dessas “amarras”.
“É compreensível que o movimento trans ou até o movimento LGBTQIA+ são propulsores desse novo comportamento que visa se libertar dos padrões binários da moda. A moda como autenticação de um corpo mais livre e a representatividade cada vez mais ativa desses corpos nas mídias é um fator relevante para a compreensão no surgimento de uma moda sem gênero. Mas percebo o consumidor cis também se reinventando na maneira de vestir, na busca por peças mais neutras e agênero”, conta.
Gui conta com nostalgia sobre a primeira vez em que inseriu a moda agênero em sua vida e ressalta a importância da moda em si em seu cotidiano e na sua história como um meio de reinvindicar a própria existência. Tanto do começo do seu contato com a moda agênero quanto hoje, os olhares e os julgamentos estão presentes.
“A primeira peça que eu decidi incluir no meu guarda-roupa foi o cropped. Em 2016, sair com um cropped nas ruas despertou muitos olhares. Me considero uma pessoa forte e difícil de me importar com a opinião, vulgo opressão, das outras pessoas, mas também não posso dizer que foi fácil; até hoje preciso me preparar psicologicamente todas as vezes em que vou sair de casa. O que me move e me dá forças é que, acima disso tudo, estou sendo eu e isso é a coisa mais gostosa de viver: poder ser eu mesmo em todos os lugares. O meu desejo em compartilhar minhas vivências nas redes sociais é poder dar força para outras pessoas. A moda é um mecanismo puro de comunicação. Com ela, aprendi muito sobre mim e sobre a vida”, relata.
O valor histórico e as mudanças estruturais
A estereotipização não é um fenômeno atual, mas se reformulou e repaginou ao longo dos anos até que os indivíduos pudessem começar a questioná-la e alimentar movimentos que as contradigam diretamente, mostrando que há muito mais possibilidades de ser e de se apresentar do que é formalmente apresentado em todos os âmbitos sociais. Yanaí Mendes explica mais sobre esse processo.
“Até o início do século 20, o uso das cores rosa e azul era o oposto ao que estamos acostumados hoje. Após a Segunda Guerra Mundial, contudo, há uma inversão desse conceito apoiado fortemente pela Barbie, ressaltando o uso da cor rosa para as meninas parecerem sempre femininas. Nos anos 1980 veio o ‘boom’ dos enxovais com o avanço da tecnologia dos ultrassons. Como em uma sociedade efêmera, tudo muda e evolui constantemente. Um exemplo simples é vermos que hoje temos uma enxurrada de pais que buscam a neutralidade nos enxovais ou o uso de cores como laranja, verde e amarelo para que as crianças cresçam mais livres e possam escolher como se mostrar para o mundo ao envelhecerem”, elucida.
No que diz respeito à discussão sobre a moda agênero na atualidade e como ela impacta diretamente a vivência de pessoas trans que não se adequam aos estereótipos de masculinidade e feminilidade, Gui ressalta que a moda binarista exclui esses corpos que estão fora da cisnormatividade.
“A moda binária atinge diretamente as pessoas trans. Estamos lutando há anos para que o nosso gênero seja reconhecido e não nos sentimos representados nessa moda que dita tendências masculinas e femininas e que não é inclusiva. Para resolver tudo isso, é simples: basta entender que roupa é roupa. E fim de papo”, conclui.