A dificuldade de acesso à saúde por parte da comunidade LGBTQIAP+ é uma realidade recorrente e que ganha espaço nos ambientes de debate. Para além da estrutura oferecida tanto pelo SUS (Sistema Único de Saúde) quanto pela rede privada, a formação dos profissionais de saúde é um tópico que merece destaque nessa discussão e, para isso, o iG Queer conversou com dois profissionais que possuem experiência com a comunidade LGBTQIAP+, especialmente pessoas trans, para saber como as instituições de ensino tratam essa pauta durante a formação dos médicos.
No caso de Thiago Cunha, dermatologista estético, ele explica que dentro da especialidade dele existe demanda tanto por parte de pessoas LGBT quanto do público cis-hétero, mas para o primeiro gurpo, o acesso é mais dificultado.
“Na minha área de dermatologia estética, há um enorme interesse dessas pessoas [LGBT] em procedimentos capazes de auxiliar na própria identidade de gênero. Entretanto, esse tipo de tratatamento ainda é restrito a uma pequena parcela da população cis-gênero e, menos ainda, da população trans. Não somente por motivos socioeconômicos, mas também pelo grande despreparo por parte dos profissionais da saúde em acolher e entender as questões particulares dessas pessoas”, conta.
Já o médico Thiago Marra, cirurgião plástico com experiência principalmente da mastectomia masculinizadora, ressalta que a formação do profissional de cirurgia plástica, por exemplo, não dá atenção às demandas do público trans. “Na grade da nossa formação, tanto em medicina quanto em cirurgias gerais e plástica, não é dado nenhum tipo de formação voltada para a área de pacientes trans. Isso é realmente uma falha curricular muito grande, tendo em vista também que é um assunto relativamente novo, que está em pauta nos últimos tempos, então não foi adaptado corretamente ou com informações adequadas sobre como lidar com os pacientes, com suas questões psicológicas e físicas”, explica.
Devido a estas barreiras na formação, a grande maioria dos profissionais não se encontra apto para atender essa população específica, o que dificulta o acesso de pessoas transgênero a procedimentos voltados tanto para o conforto físico quanto para a sua saúde como um todo. Cunha conta que, a seu ver, para além dos procedimentos de hormonização e redesignação, por exemplo, há um desfalque de profissionais para cobrir outras demandas.
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“O atendimento de pessoas trans ainda é maior nas especialidades que lidam com as patologias relacionadas à infectologia como ISTs/HIV e/ou cirurgias de redesignação. Todas as demais especialidades possuem um grande déficit humano neste sentido. Mais do que isso, muitos especialistas acabam reforçando preconceitos e estigmas sociais presentes na sociedade em detrimento do acolhimento e promoção de saúde desses indivíduos”, declara.
Com relação ao reforço dos preconceitos, citados pelo médico Cunha, Marra conta que, dentro da especialização em cirurgias plásticas, são poucos os profissionais que se interessam em aprofundar-se nos procedimentos buscados por pessoas trans, o que evidencia que, enquanto os profissionais não estiverem realmente engajados no assunto, a formação não será o único problema.
“O que a gente observa é que o atendimento a pessoa trans é realizado principalmente por profissionais plásticos, cuja a formação é concluída em dois anos de cirurgia geral e depois três anos de cirurgias credenciadas pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Em 1800 horas, você aprende todo tipo de procedimento cirúrgico, como lipo, mama, abdômen, rinoplastia, etc., então é uma gama muito extensa de cirurgias e, dentre esses, o profissional opta por atuar em determinadas áreas. São realmente poucos os que se interessam por essa área de cirurgia em pacientes trans, inclusive tem muito preconceito em relação ao atendimento a essa população, seja por ideologia ou porque são procedimentos bem específicos nos quais muitos não querem se aprofundar”, esclarece.
Cunha, por exemplo, explica que, durante a formação médica, não recebeu nenhuma orientação para lidar com o público trans, então apenas após estar formado foi que ele, como homem gay, criou consciência das necessidades de outros grupos que fazem parte da comunidade e da falta de profissionais disponíveis.
“[As pessoas trans] simplesmente não eram pauta, como se não existissem ou que pertencessem à margem da sociedade. Mesmo em ambulatórios onde a presença de pessoas trans existia, professores e médicos assistentes não abordavam o tema, não individulizavam o tratamento. Era frequente, inclusive durante atendimento, que médicos chamassem o paciente pelo nome de registro e não pelo nome social na frente de todos os demais, em situações de cruel constrangimento. Posso lembrar de várias ocasiões em que esses profissionais contrariavam o nome social, refutando-o, mesmo quando o paciente transgênero pedia para que não o chamasse por aquele nome”, relata.
Marra também precisou buscar formação por conta própria para conseguir atender ao público trans adequadamente. Ele teve um contato muito superficial com o tema durante a sua formação, então precisou complementar os seus conhecimentos para, de fato, atender o público da melhor forma possível.
“Eu particularmente tive a oportunidade durante a pós-graduação em cirurgia plástica de ter tido um preceptor que lidava com pacientes trans. Um dos chefes do meu serviço, o médico José Cesário, foi um dos pioneiros em redesignação sexual aqui no Brasil, então nosso ambulatório do SUS recebia alguns pacientes trans, porém em um volume pequeno, mas foi quando eu tive a chance de ter uma noção básica de cirurgias em pacientes trans. O que eu aprendi foi só posteriormente na minha formação por meio de pesquisas, livros, cursos e congressos no exterior”, explica.
Para garantir que o cenário mude e a população trans encontre mais profissionais competentes para atendê-la em todas as necessidades, tanto físicas quanto pessoais, no quesito de respeito à vivência e identidade, Cunha reforça a importância de uma mudança por parte do Ministério da Educação, do Conselho Federal de Medicina e, principalmente, dos próprios profissionais da área da saúde.
“Acredito que o Ministério da Educação, o Conselho Federal de Medicina e outras instituições já deveriam há muito tempo ter criado protocolos de ensino, disciplinas curriculares e ambulatórios específicos que respeitassem as particularidades dessa comunidade, ajustando a atenção de acordo com as demandas específicas", acredita. "Se pelo menos existisse uma cultura entre os próprios médicos de reconhecer esses indivíduos como existentes, com direito à saúde, dignidade e trabalho. Se houvesse maior receptividade a acadêmicos trans nas faculdades de medicina e combate ao preconceito sofrido por eles. Precisamos formar médicos, enfermeiros, dentistas transgêneros. Na prática é justamente o oposto: o mais frequente é encontrar médicos que destratam, desrespeitam, desvalorizam, agridem e subestimam a população trans como se ela não precisasse ter acesso ao cuidado”, conclui.