Transplante de útero: quais são as limitações e diferentes perspectivas

A discussão veio à tona após Jéssica Alves, mulher trans, manifestar sua vontade de transplantar o útero e, assim, conseguir engravidar

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Entenda as limitações do transplante do órgão e outras perspectivas que giram em torno dos cuidados e das vivências de pessoas trans que possuem útero




transplante de útero e a possibilidade de gravidez após a cirurgia traz novos questionamentos com a trans Jessica Alves. Também conhecida por ser ex-Ken Humano,  a influenciadora disse que pretende transplantar o órgão para engravidar do próprio esperma que tem congelado . Entretanto, a realidade desta cirurgia não permite que o sonho de Jessica seja realizado tão cedo.

De acordo com o ginecologista Dani Ejzenberg, supervisor do Centro de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas de São Paulo e membro fundador da Sociedade Internacional de Transplante de Útero, ainda não existem estudos de transplante de útero em que as pessoas receptoras do órgão nasceram biologicamente como homens. Este tipo de cirurgia ainda tem um caminho a percorrer, apesar de mais de 60 transplantes já feitos -- e nove deles resultaram em gestações, sendo sete com sucesso --, apenas agora a Inglaterra está chamando pessoas trans para participar de um estudo a respeito.

Transplante de útero na prática

O especialista explica alguns pontos e traz questionamentos que devem ser considerados em termos de biologia, tanto para a realização do transplante quanto a possibilidade de uma gestação no futuro. Dani ressalta que tudo isso ainda é dentro de um campo das ideias, já que não foi feita nenhuma pesquisa, logo não existem resultados. 


“Primeiro que o formato da bacia do homem é diferente do formato da bacia da mulher e nós não sabemos se comporta uma gestação. Quando você vai fazer a manipulação hormonal, existe um suporte e uma produção de hormônios diferentes. Terceiro, como você vai ajustar as drogas que evitam a rejeição? Porque a gente já tem um protocolo descrito para mulheres biológicas. Agora, para homens biológicos teríamos que, provavelmente, fazer ajuste de dose no mínimo e talvez até de esquema. Por fim, como você vai fixar o útero na pelve? Porque a mulher biológica já tem uma estrutura de ligamentos, mesmo quando ela não tem o útero, e pode fixar esse útero transplantado.”

O médico fala que, por mais que Jessica tenha este desejo, para além dos estudos feitos em outros países -- que devem apresentar resultados de sucesso para consolidar a cirurgia --, ainda existe a questão da regulamentação. Precisa ser autorizado pela Central Nacional de Transplantes e Ministério da Saúde.

Outras perspectivas

Quando se trata das discussões e abordagens acerca da saúde do útero, é importante levar em consideração principalmente a existência e vivência de pessoas que possuem útero, porém não se identificam como mulheres, como é o caso de homens trans e pessoas não-binárias transmasculinas. A sociedade, que pauta o gênero unicamente em fatores biológicos, alimenta condutas excludentes com corpos trans que não se adequam às expectativas cisnormativas. 

A médica Karen Rocha De Pauw, ginecologista e obstetra, ressalta a estigmatização que homens trans sofrem por terem útero e consequentemente não serem lidos como os homens que são e afirma a importância de enxergar esses indivíduos em todas as suas especificidades. “Eles [homens trans] são homens que possuem útero, então precisamos vê-los. Esse é um serviço do profissional ginecologista, não podemos ter esse tipo de preconceito. Analisamos mamas, úteros e ovários, e homens trans possuem essa estrutura, logo, devemos estar aptos para atendê-los. Infelizmente muitos médicos são muito preconceituosos e colocam esse preconceito acima da saúde das pessoas, inserindo-o principalmente em suas falas e em seus atos”. 

As vivências transgênero, quando analisadas de perto, revelam diferentes espectros dentro da letra T. Homens trans, por exemplo, podem ou não sentir desconforto com algum aspecto do corpo que, para esse indivíduo em específico, não está de acordo com a identidade de gênero. Quando questionada sobre a vontade e possibilidade de homens trans retirarem e doarem o útero caso sintam essa necessidade, a médica explica que esse interesse não é predominante por parte dos homens trans, e a possibilidade de doação ainda é muito embrionária.

“A doação de útero é possível, mas ainda não é um método fácil. Talvez em um futuro em que as tecnologias estiverem mais avançadas, é uma possibilidade que poderemos oferecer para homens trans que queiram retirar o útero. A vontade de retirar o órgão, normalmente, não abrange todos os homens trans; essa não é uma parte do corpo que, para eles, represente algo ruim”, declara.

Possuir um útero saudável que seja capaz de gerar uma criança também faz parte da vivência de muitos homens trans, logo, ao mesmo tempo em que muitos não desejam engravidar, outros desejam. Neste último caso, quando se reforça a ideia de que “mulheres” ou “mulheres” completas possuem útero, além de colocar as vivências de homens trans em uma posição marginalizada, exclui as vivências e os torna cada vez mais estranhos aos olhos da sociedade. Karen também comenta sobre a invisibilidade dessas pessoas.

“O homem trans ainda é invisível e não visto pelos demais. Não perguntam o que ele quer ou se ele deseja ter filhos. A principal questão é falar sobre isso, afinal se um indivíduo tem útero, ele é capaz de engravidar de desejar”.

Além dos homens trans, que são invalidados por terem útero, a ideia de que o órgão é o que “valida”, por assim dizer, a identidade de gênero de alguém coloca as mulheres trans que não possuem útero em uma posição ainda mais marginal. É fundamental que procedimentos de interferência corporal não sejam interpretados como uma regra ou como um comportamento padrão. As necessidades de Jessica Alves, por exemplo, não traduzem a voz de toda a comunidade, pois cada corpo e cada vivência são muito únicos. Karen conta como essa percepção é importante. 

“Ser mulher não quer dizer ter um útero, pois diz respeito a como a pessoa se identifica e quem ela é. Ser homem ou ser mulher não depende da estrutura biológica de alguém. Se uma pessoa tem útero, ela vai sim ao ginecologista, e se outra pessoa está com algum problema nos testículos, ela vai a um profissional especializado, independentemente de ser homem ou mulher. Precisamos parar de falar que ‘o homem é assim’ e ‘a mulher é assim’. Se alguém se identifica como homem ou mulher, o externo pouco importa”, conclui.