Homens e mulheres são vítimas de catfish
Karolina Rabowska/Pexels
Homens e mulheres são vítimas de catfish



Quando uma pessoa LGBTQIA+ consegue sair do casulo formado pelo preconceito, encontra pela frente um catfish na internet, uma pessoa que tem o objetivo de enganar por prazer, tem medo de mostrar o rosto por algum motivo e até aplicar golpes em uma vítima. A falta de uma rede de apoio pode potencializar ainda mais a dor de quem passa por um trauma de ser enganado na web. 

Depois do boom dos celulares com câmera embutida, o catfish se tornou cada vez mais difícil, mas não raro de acontecer. A estudante de Direito Letícia*, 19, conheceu Ramona no início de 2020, em um game chamado Tibia, o qual ela e sua namorada sempre jogavam juntas. Na época, a "amiga virtual" dizia que estava no Ensino Médio e suas fotos eram de "uma moça lindíssima", com cabelos coloridos, olhos azuis, magra, um perfil padrão. 

"Nunca me apaixonei pela Ramona, mas eu sentia que minha namorada sim", salienta. "Eu a achava muito bonita, mas estava em um relacionamento, então não olharia para outra mulher. Ela estava decidida a conhecer a Ramona e eu não via a hora de me afastar. Comecei a perceber que a nossa 'amiga' estava mentindo demais, dizia que era vegetariana, por exemplo, porém estava lá comendo carne no dia seguinte", comenta.


Marcela*, 25, tem uma história similar. A estudante conheceu uma garota em um aplicativo de relacionamento e ficou encantada com as fotos dela: branca, cabelo preto, magra e tinha duas ou três fotos no perfil. Depois começou a conversar com seu novo affair por cerca de duas semanas.

"Não cheguei a me apaixonar, mas tinha interesse em conhecer a pessoa, achava estranho o fato de não ter outras redes sociais (como Facebook ou Instagram), mas não era uma desconfiança. Apesar de morar em São Paulo, capital, os rolês LGBTQIAs por aqui são poucos, então normalmente são sempre as mesmas mesmas pessoas. Em um determinado dia, eu estava enjoada disso e resolvi ir a um novo lugar que era destinado a LGBTs. Madrugada adentro, quando me dou conta, vejo a menina que eu supostamente conversava e fui falar com ela, obviamente. A garota não me reconheceu e foi aí que tudo começou: mostrei o perfil no Tinder e o número do WhatsApp. Nesse momento percebemos que era um perfil falso", conta.

Ewerton Vasques, 29, não teve tanta sorte e ficou apaixonado por Eryck, um garoto que ele conheceu em um jogo chamado Gartic. O engenheiro sempre foi fã do game e, em 2013, viu a foto de um menino atraente, puxou conversa com ele pelo chat até trocarem telefone e começarem um "romance" pela web. O fake tinha perfis falsos no Facebook e Instagram, mas nunca aceitava o desafio de enviar um selfie instantânea.

"Se eu me apaixonei? Sim, muito, de verdade", confessa. "Eu estava decidido, de fato, a conhecer essa pessoa. Ele dizia que era de Porto Alegre (RS) e eu moro em Londrina (PR), e essa distância não era nada para mim. Ameacei a visitá-lo, mas ele não quis, então isso me deixou desconfiado. Mais tarde, ele começou a namorar e a gente perdeu o contato. Um dia, me lembrei dele e resolvi reatar o contato com aquele cara que troquei mensagens por quase um ano. Procurei as redes sociais e não existiam mais, porém lembrei o nome do namorado do Eryck e perguntei por ele, mas fiquei sabendo que era tudo uma grande mentira", narra.

A psicóloga Cíntia Moreira explica que aquele que cria uma história fantasiosa, rodeada de mentiras, o faz para dar conta de uma falta que o habita em algum ou em muitos níveis. Ela afirma que a insegurança é uma das características de um mentiroso compulsivo que encontra na mentira uma forma de fantasiar um ideal de eu que não existe.

"Para dar conta dessa falta, o mentiroso compulsivo acredita em sua farsa a ponto de mantê-la, muitas vezes, mesmo quando descoberto. Por conta dessa crença desmedida, exagera em suas histórias e, ainda que de maneira sútil, vai deixando pontos em aberto, ou seja, rastros. Por isso, é importante que a pessoa que tem em sua frente uma figura 'perfeita' fique atenta às próprias percepções daquela 'realidade', pois o que costuma 'cegar' as possíveis vítimas é que elas querem acreditar naquilo que estão vendo e não se atentam às incoerências que muitas vezes aparecem."

A profissional ainda salienta que existem “padrões” no mundo virtual do catfish e é importante ficar atento às realidades que privilegiam muito a imagem. Algumas dessas pessoas tentam a qualquer custo mostrar que são influentes em seu meio, seja por meio de fotos com figuras públicas, viagens para o exterior, precisam falar demais de seus "sucessos" e de sua “benevolência”.

"O detalhe está no excesso que, vez ou outra, até suscita na vítima dúvidas, mas que ela mesma desconsidera, muitas vezes por estar frágil emocionalmente e querer acreditar no que está diante de seus olhos. Também por sentir vergonha por desconfiar daquela pessoa que está ali sempre tão disponível para ela. A desconfiança, quando em um nível moderado, é saudável e grande aliada, principalmente frente ao avanço tecnológico que diariamente nos apresenta novos recursos para construir cenários virtuais cada vez mais 'reais'”, detalha.

Ewerton Vasques caiu no golpe do catfish
Arquivo pessoal
Ewerton Vasques caiu no golpe do catfish


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A verdade

Letícia só descobriu realmente que tinha sofrido um golpe quando passou a perceber nos pequenos detalhes que estava em um monte de mentiras. Ramona dizia que tinha um status financeiro alto, mas algumas de suas fotos mostravam uma casa simples e com o reboco aparecendo. 

"Eu e minha namorada pressionamos essa menina contra a parede, perguntando se aquilo tudo era real, ela falou que a gente era louca e nos bloqueou. Obviamente que estava mentindo e ainda descobrimos que ela usava fotos de um perfil do México para nos enganar", conta. "Depois disso, descobri que minha namorada estava tão envolvida com esse perfil fake que falou para ela que eu transava mal. Essa tal Ramona até hoje aparece com novos perfis falsos para perguntar se eu já aprendi a transar. Isso começou a me deixar um pouco assustada porque eu não sabia quem era", lamenta.

Ewerton também descobriu que Eryck nunca existiu. O engenheiro conta que ficou completamente sem norte e começou a se questionar como alguém pode tê-lo enganado por tanto tempo.

"Meu mundo, de fato, foi para o chão. Fiquei totalmente desnorteado. O tal namorado falou que o Eryck tinha enganado muitas pessoas que também já tinham ido atrás dele para tirar satisfações. Ele estava cansado de tantas mentiras e me pediu para não procurá-lo nunca mais. Eu fiquei sem entender. Até hoje eu não sei quem era ele. Fui atrás, mas ele deletou todas as redes sociais", finaliza.

A psicóloga avalia que toda experiência traumática carrega consigo consequências que, dependendo do nível, impõe sérios desdobramentos à saúde mental da pessoa. Por esse motivo, as vítimas necessitam passar por um trabalho de elaboração do trauma para que este deixe de afetá-las significativamente. Uma das formas mais efetivas para trabalhar uma experiência traumática é a busca por um processo terapêutico com um profissional psicólogo.

"Considerando que um trauma não se constrói e nem se encerra apenas na experiência recente vivida, investir em psicoterapia vai auxiliar a vítima a trabalhar todas as questões que serão suscitadas a partir daquela vivência. Portanto o trabalho terapêutico vai favorecer que a pessoa trabalhe o conteúdo traumático de forma ampla e possa assim se reestruturar em vários níveis. Em situações traumáticas que envolvem questões de mentiras/traições é necessário que a vítima consiga compreender que a atitude reprovável não é sua e sim daquele que a praticou. Uma das questões que reforçam o fator traumático desse tipo de situação é quando a vítima se sente responsável pelo que aconteceu, atribuindo a si o motivo que levou o agente a ter aquela atitude, quando, na verdade, é sabido que pessoas que cometem esse tipo de ação a fazem indiscriminadamente", discorre.

Crime cibernético

Nem Letícia, Marcela e Ewerton nunca pensaram em denunciar o caso à polícia, mas a  Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo criou uma cartilha para dar dicas úteis àquelas pessoas que são mais vulneráveis a cair em golpes amorosos na internet. O texto simples mostra como evitar esse tipo de golpe, principalmente quando se envolve pedido de dinheiro.

"As mentiras utilizadas pelos criminosos são as mais diversas como, por exemplo, usar a desculpa de que deseja conhecer pessoalmente a vítima e então pedir dinheiro emprestado a ela para comprar supostas passagens; ou então o estelionatário diz que está enviando um presente (joia, ouro, dólares), mas que, para retirar o pacote, será necessário pagar uma taxa, fornecendo então uma conta bancária de pessoas de confiança do próprio golpista", exemplifica o texto.

A cartilha recomenda que o caso seja levado às autoridades para que essa rede de enganações não continue e também dá dicas como "não apagar nenhuma da conversas realizadas com o possível criminoso e tirar cópia de todas e comprovantes de depósitos ou transferências bancárias realizadas, caso tenha acontecido.

"Anote os dados das contas bancárias para as quais o dinheiro foi enviado, entre em contato com o gerente de sua conta bancária e tente bloquear o valor. Em posse de todas essas informações, procure a Delegacia de Polícia mais próxima de sua casa ou registre um Boletim de Ocorrência Eletrônico através do site da Delegacia Eletrônica", recomenda a cartilha.

Moreira também alerta que dificilmente um relacionamento terá o caráter nítido da mentira para quem o vive, principalmente porque as relações são complexas e um vínculo permeado por mitos acontece entre dois agentes que se “complementam”, o que manipula e o que é manipulado.

"Nessa relação, ainda que de maneira inconsciente esses parceiros encontram na dinâmica um do outro um lugar para existir, por isso, muitas vezes, usamos o termo 'vítima' para nomear aquele que sofre a manipulação apenas por identificar que ela é a parte 'lesada' naquela relação. Em geral, essa parte (em muitos níveis) é ativa na manutenção desse tipo de relação e, de certa forma, se sente 'atraída' pelo perfil manipulador, que oferece algo que muitas vezes a pessoa não sabe o que é, mas que a faz não conseguir se posicionar contra a manipulação", explica. "O autoconhecimento é sempre um grande aliado, pois quando um individuo se conhece ele desenvolve recursos para ser um agente ativo em sua vida, minimizando assim as chances de ter relações tóxicas", pontua.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade da fonte.

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