Como entender a transexualidade de um filho; especialista explica

Em uma de suas histórias, a novela "A Força do Querer" retrata Joyce, uma mãe que não entende e não aceita a transexualidade do filho Ivan

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Na trama da novela, Joyce não lida bem com transexualidade do filho, Ivan

A reprise da novela "A Força do Querer" chega ao fim neste sábado (27) e, com ele, a paz reinou na relação conturbada entre Joyce (Maria Fernanda Cândido) e seu filho transexual, Ivan (Carol Duarte) . Assim como a personagem, que durante a maior parte da trama sofreu com os próprios preconceitos e se negou a entender a  identidade de gênero do filho, muitos pais e mães brasileiros passam por situações semelhantes na vida real.

De acordo com a psicóloga especialista em sexualidade humana Bruna Falleiros, é comum que se fale nos preconceitos da família, mas é importante lembrar que também há muito sofrimento para ela no processo de descoberta e aceitação da identidade de gênero dos filhos. “A evolução da aceitação da família costuma ser difícil e é comum que as pessoas trans ponderem sobre o momento de revelação, por não se sentirem confortáveis de causar esse sofrimento”, diz.

Esse é o caso do estudante Caíque Nascimento, de 25 anos, que apesar de já usar seu nome social entre os amigos mais próximos e os que conheceu recentemente, ainda não revelou sua transexualidade para a mãe, com quem vive, por medo do que pode causar com isso.

“Tenho medo de destruir a relação que temos. Em 2014, falei para ela que me relaciono com mulheres e, por causa disso, passamos por uma fase muito difícil na nossa relação. Ela, que é evangélica, considera a minha orientação sexual um pecado e a transexualidade também. Hoje em dia, ela até convive com a minha namorada tranquilamente, mas tenho medo que ela não consiga lidar bem com minha transexualidade e que nossa relação fique tão afetada que eu seja  obrigado a sair de casa e a não conviver mais com ela”, explica Nascimento.

Quando estão juntos em casa e alguma pessoa trans aparece na televisão, Caíque conta que sua mãe não reage bem. Além disso, ela não usa os pronomes adequados e nem demonstrar interesse em entender o que é a transexualidade. “Ela sempre fala que estou no caminho errado e que quer que eu volte para a igreja. Esses são alguns sinais que ela me dá de que não vai receber bem”, lamenta o jovem.

Segundo a psicóloga, o momento de revelação para os pais é quase sempre difícil, independentemente do quão aberto eles se apresentem e muito do que eles fazem e dizem podem dificultar ainda mais a saída do armário. “As pessoas LGBTQIA+ , em especial as pessoas trans, sempre têm pistas de como a família lida com a sexualidade e a identidade de gênero, a partir do comportamento diante de outras coisas que aparecem, na mídia, por exemplo. Muitas vezes, esses sinais que a família dá funcionam como uma barreira para que a pessoa trans converse com os pais”, detalha Bruna.

Para ela, a dificuldade dos pais em lidar com a transexualidade dos filhos passa por questões profundas como a quebra de expectativas, a preocupação sobre o que as outras pessoas vão pensar, o medo da discriminação que os filhos podem sofrer, o próprio preconceito e a falta de compreensão sobre o tema.

“A primeira marca colocada em um corpo humano é o gênero, hoje ainda mais com essa história de chá de revelação. Quando se revela, na ultrassonografia, a possibilidade do sexo biológico do feto, o gênero já vem junto e, a partir dele, se coloca um nome e se constrói toda uma fantasia de quem vai ser essa criança, essa pessoa. São expectativas que pais projetam nos filhos. Quando os filhos rompem com essas expectativas há um conflito e o choque dos pais pelo rompimento dessa primeira promessa geralmente é muito grande”, afirma a psicóloga.

“Nós vivemos em uma sociedade estruturada em normativas de sexualidade e gênero. O que escapa dessas normas é lido pela sociedade como algo errado moral ou psiquicamente. Por isso, é natural que os pais tenham uma primeira resposta carregada desses preceitos que todos pensam, sem elaborar muito. É muito raro uma primeira reação ser positiva”, completa.

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Marília Albuquerque diz que chorou muito e ficou angustiada quando o filho, Juno, começou a sair do armário

A engenheira Marília Albuquerque, de 48 anos, mãe de Juno Albuquerque, de 22, tem uma história parecida com a de muitos pais de filhos trans. No início, ela conta que demonstrou ter assimilado bem as mudanças do filho, mas por trás chorava a todo tempo, sem saber o que fazer ou como pensar.

“O meu filho era uma filha. Ele tinha um nome feminino, um universo dito feminino, tudo era apresentado para que ele se comportasse como uma menina. Um dia, essa menina, por volta dos 16 anos, me diz que é bissexual. Era uma coisa que eu não gostaria de ter vivido, mas abracei a minha filha e disse ‘mamãe está aqui com você, nós vamos seguir’. Naquele momento eu acolhi a minha filha, mas depois eu chorei muito nos cantos, no banheiro, havia tantas expectativas, minhas e da sociedade e, então, veio aquela frustração, um certo temor e o preconceito”, comenta Marília.

A engenheira, que sempre foi muito religiosa e que tinha uma visão conversadora sobre a sexualidade, não sabia o que é a transexualidade. Apesar de muito angustiada com a novidade, por amor à filha decidiu se debruçar em leituras sobre sexualidade. Foi quando encontrou o Mães Pela Diversidade, grupo que a preparou para a notícia que recebeu anos a frente: que sua filha, na verdade, era uma pessoa trans não-binária.

“Demorou um pouco para o Juno admitir a sua identidade de gênero. Ele só fez isso aos 20 anos. Até lá, ele passou por um processo terapêutico longo, tentando se encaixar. Eu já estava muito mais preparada e já tinha um caminho com o Mães Pela Diversidade. O desafio foi chamá-lo pelo nome que ele escolheu, respeitá-lo nessa condição e me posicionar diante sociedade e da família. Hoje, meu filho já tem o nome retificado, o pai, que é pastor, levou o Juno para fazer a retificação do nome [veja a publicação abaixo]. Daqui a pouco, ele vai fazer algum processo de adequação para que ele se reconheça no corpo dele, embora ele seja uma pessoa trans não-binária”, conta Marilia, em tom de apoio ao filho.

“Eu mudei para a igreja anglicana [onde diz que há grande acolhimento à diversidade sexual e de gênero] há algum tempo e fiz uma releitura bíblica. Hoje, minha vida tem uma diversidade que não só envolve a questão LGBT, mas um olhar racial, para o PCD [pessoa com deficiência], para a mulher, para a diversidade religiosa. O amor ao meu filho abriu essa possibilidade de eu transicionar para ser uma pessoa melhor junto com ele”, finaliza Marília.

Estratégias para a revelação da transexualidade

Apesar da história com final feliz de Marília e Juno Albuquerque, nem sempre é assim que acontece. A psicóloga Bruna Falleiros explica que não existe um jeito correto para sair do armário e revelar a transexualidade, pois cada contexto é único e vai funcionar de maneiras específicas. Contudo, ela aponta algumas questões relevantes, como a construção de uma rede de apoio.

“É difícil dizer como cada um deve sair do armário, mas é importante que a pessoa trans tenha uma rede forte de apoio a quem possa recorrer, para não deixar toda a expectativa em cima da família nuclear, que pode, ainda que seja só por um período, virar as costas para essa pessoa trans. Às vezes, a rede de apoio pode ser uma pessoa da própria família, uma tia mais nova, uma prima. O que é importante é que essa rede saiba da real situação que a pessoa trans está vivendo e dos possíveis conflitos que ela pode enfrentar com a família, para que possa dar suporte”, afirma Bruna.

Caíque Nascimento, citado no início do texto, revela que, por medo da não aceitação de sua mãe, vem se preparando psicológica e financeiramente para sair do armário. Além disso, aos poucos está revelando sua transexualidade para amigos próximos.

“É uma experiência positiva porque me sinto livre para ser quem eu sou, para usar o nome e os pronomes com os quais me sinto bem, por falar das minhas experiências sem ter medo de sofrer alguma violência. Ao mesmo tempo é triste porque sinto que estou vivendo uma vida dupla. Na rua, eu sou Caíque e em casa outra pessoa totalmente diferente”, conta.

Segundo a psicóloga, a revelação da transexualidade para pequenos grupos primeiro é algo que acontece comumente e que pode fortalecer a pessoa trans para lidar com problemas do futuro.

“Às vezes, a pessoa trans cria um perfil nas redes sociais, com o nome social, que a família não sabe e, com isso, começa a criar outros vínculos, outras relações. A pessoa trans pode ganhar coragem para falar com amigos e familiares e ampliar essa revelação. Não é um problema que esse processo seja gradual. Conforme a pessoa vá se sentindo confortável com esse movimento, ela também pode ir recebendo aceitação dos outros, fortalecendo sua rede de apoio”, comenta Bruna.

Além dessas estratégias, a psicóloga cita a possibilidade de mostrar conteúdos midiáticos aos pais, documentários e outras produções que abordem o tema da transexualidade, para levar informações antes de sair do armário.

“Infelizmente tem coisas que são muito arraigadas na cultura e algumas situações de não-aceitação são difíceis de evitar. Se a pessoa trans tiver a percepção de que os seus pais vão ser muito resistentes no processo de aceitação, o ideal é buscar um afastamento. Se é possível sair da casa dos pais, para poder fazer esse diálogo com eles sem que estejam 24 horas por dia juntos, isso pode ser muito interessante, deixando o processo mais tranquilo”, pontua a especialista.

Em relação aos pais que estão vivendo conflitos internos e angústia por causa da revelação da transexualidade dos filhos, a psicóloga indica a procura por grupos em que seja possível trocar experiências com pais e mães que passem por situações semelhantes. “É interessante trocar experiências, além de dialogar com os próprios filhos. O diálogo não violento é sempre a melhor estratégia para uma pessoa compreender a outra”, finaliza.

Mães Pela Diversidade

Apesar de haver muito desconforto e violência, os pais também estão mudando. Há uma nova geração de pais que está muito mais aberta à aceitação. ONGs como a Mães Pela Diversidade são prova disso. O grupo se define como movimento que reúne mulheres com filhos LGBT+ que lutam contra o preconceito. Apesar disso, homens pais e outros familiares também são aceitos. Entre os principais objetivos do coletivo está a troca de experiências entre pais e mães, levar informações e acolher aqueles que são surpreendidos com a orientação sexual ou a transexualidade dos filhos.

“Geralmente sabemos muito pouco e a gente começa a se aprofundar à medida que chega na nossa casa, na nossa vida pessoal. Quando algum pai ou mãe chega no grupo, é comum que chegue impregnado de dor, de preconceito e de falta de informação, então encontrar os nossos semelhantes, nossos pares, nos fortalece muito. Antes da pandemia, nós tínhamos encontros periódicos, para atrair mães ou pais que tivessem nessa situação e muitos chegaram pelas redes sociais. A gente compartilhava experiências”, explica Marília Albuqueruqe, que se tornou integrante do grupo desde que seu filho saiu do armário.