Antes do nazismo, Alemanha era porto seguro mundial da comunidade LGBT
Descobertas científicas e ativismo pulsante foram destruídos por regime nazista, que enviou até 15 mil homossexuais a campos de concentração e matou 7 mil
Na última semana, o apresentador Bruno Aiub, o Monark, defendeu a existência de um partido nazista no Brasil e relativizou a ideologia, que dizimou mais de 6 milhões de pessoas na Alemanha entre 1933 e 1945. O comentário foi feito em entrevista com os deputados federais Tabata Amaral (PDT-SP) e Kim Kataguiri (Podemos-SP) no Flow Podcast, em que, até então, Monark era apresentador.
A defesa de Monark despertou indignação na internet ao rememorar os episódios que aconteceram na Alemanha Nazista. Historiadores, especialistas e pesquisadores afirmaram que a existência de um partido nazista é inconstitucional em uma democracia, já que a vertente prega por uma política de genocídio, eugenia e exclusão.
Os crimes ocorridos durante o Holocausto, período da história também chamado de Shoah pelos grupos que foram diretamente afetados, tinham como alvo principal os judeus. Nazistas e simpatizantes acreditavam que a comunidade judia pertencia a uma "raça inferior", o que comprometeria a pureza da população alemã.
No entanto, também foram perseguidas, presas e mortas pessoas negras, ciganas, comunistas e socialistas, pessoas com deficiência, prisioneiros políticos e a população LGBTQIA+ . “É um lugar de ampliar e entender o quanto aquilo é universal. Não é só particular da comundiade judaica, claro que tem um peso maior por ter o antissemitismo como base, mas é unviersal porque muitos grupos foram entendidos como um outro que não cabia na sociedade”, afirma Marcio Albino, educador social, ativista e consultor LGBTQIA+ do Memorial do Holocausto do Rio de Janeiro.
“Não há números muito precisos, mas estima-se que cerca de 50 mil homens gays foram presos. Destes, entre 5 mil e 15 mil em campos de concentração”, aponta Michel Ehrlich, coordenador de História do Museu do Holocausto de Curitiba. Números oficiais da Alemanha estimam que 7 mil pessoas LGBT foram mortas.
De acordo com Ehrlich, a homossexualidade era vista na Alemanha sob o mesmo olhar que o restante do mundo: o de preconceito e do estigma. “A homossexualidade era vista como um grande desvio ou mesmo uma doença que ameaçava o meio ao seu redor. Em diversos países, homossexuais tinham não somente direitos básicos cerceados, como podiam sofrer com prisões, procedimentos de 'cura' ou castração”, explica.
"Diferentemente do que ocorria, por exemplo, com judeus e ciganos, os homossexuais não eram vistos pelos nazistas como uma ameaça externa, mas mais um elemento que enfraquecia a sociedade alemã, uma decadência social. Por isso, embora houvesse exceções – sobretudo a homossexualidade associada, por exemplo, a ser judeu –, os nazistas não empreenderam perseguições sistemáticas a homossexuais fora da Alemanha”, complementa Ehrlich.
“Acreditar que a existência de homossexuais é o estado terminal de uma civilização ou de uma cultura era uma das ideias homofóbicas vigentes no partido nazista. Há uma relação com o antissemitismo, que apontava que judeus eram uma espécie de ‘tuberculose entre as nações’”, acrescenta Albino.
O educador social complementa que a visão dos nazistas não era necessariamente de ódio ou de raiva, mas também de nojo. “Era uma lógica higienista de que um determinado grupo trazia doenças e poderia destruir a saúde de uma sociedade, de que isso deve ser limpo e curado. Fica muito mais fácil convencer alguém de que algo é sujo e deve ser limpo do que simplesmente odiar e matar”, finaliza.
Parágrafo 175 criminalizava homossexualidade desde 1871
Ehrlich e Albino afirmam que o código penal já criminalizava a homossexualidade masculina bem antes da ascensão do nazismo. Em 1871, logo depois da unificação da Alemanha que a tornou uma sociedade moderna, foi criado um novo código penal.
Nele, foi incluído o parágrafo 175, que comparava o relacionamento sexual entre dois homens à zoofilia, que era chamada de bestialidade. A pena prevista era de prisão e a perda de direitos civis. “Assim, a gente tem noção da postura do Estado em relação à homossexualidade, que é de condenação e punição”, afirma Albino.
Ehrlich afirma que existiram tentativas de incluir no parágrafo uma punição para lésbicas. “Mas a dificuldade de sequer definir a sexualidade feminina na época acabou fazendo com que as mulheres que se relacionavam com outras mulheres não entrassem nessa legislação”, aponta.
Albino diz que essa visão é fruto do machismo na sociedade alemã, que não relacionava que mulheres poderiam ter uma vida sexual ativa e, portanto, não se relacionariam com outras pessoas a não ser homens. “No caso das mulheres lésbicas, existe a problemática da sexualidade feminina ser invisibilizada. A ideia de uma mulher fazer sexo com outra não era uma visão comum”, explica.
O parágrafo 175 era aplicado em território nacional, mas de forma leviana durante a República de Weimar (1918 - 1933), período após o fim da Primeira Guerra Mundial. “No período também houve iniciativas parlamentares para abolir o parágrafo 175, mas sem sucesso. Para o partido nazista isso era só mais uma prova da depravação moral de Weimar”, expõe Ehrlich.
Albino lembra que o partido nazista começou a se formular e se desenvolver na república democrática de Weimar. Naquele momento, existiam vozes no parlamento alemão que eram a favor do endurecimento das punições do parágrafo 175. O educador cita o caso do deputado nazista Wilhelm Frick, que defendeu a ação.
“Nossa visão é de que, por meio do parágrafo 175, essa gente deveria ser processada severamente devido a tais vícios que conduzem a perdição da nação alemã”, afirmou o deputado na época.
Ehrlich aponta que a visão sobre a homossexualidade e o culto à masculinidade presente na ideologia nazista sustentavam este tipo de pensamento homofóbico. “Homens gays eram vistos como não só incapazes de contribuir para o esforço de regeneração da nação, mas parte dos problemas que a Alemanha enfrentava.”
Central LGBTQIA+ do início do século 20
“No fim do século 19 já haviam muitos ativistas, que hoje seriam considerados LGBTQIA+, surgindo e trazendo uma nova percepção sobre a sexualidade humana e a diversidade sexual”, afirma Albino.
No entanto, o fim dos anos 1910 foi marcado por um “florescimento do universo cultural tolerante à diversidade sexual e de gênero, sobretudo em Berlim”, segundo Ehrlich. A República de Weimar era considerada como a central LGBTQIA+ e foi palco de descobertas e momentos históricos para a comunidade.
Albino afirma que, durante o período da república, Weimar era um porto seguro para a comunidade LGBT da época. “Existiam espaços para poder celebrar, como baladas, cabarés, bares e um centro comunitário”, diz. Estima-se que, só em Berlim, existiam cerca de 20 bares gays, 5 bares lésbicos e 5 bares trans, um número extremamente alto para a época. Dentre eles, o mais popular e emblemático era o bar El Dorado, onde aconteciam apresentações de drag queens.
“Ao ver as fotos das pessoas no bar, percebe-se que havia uma experimentação de algo não normativo em sexualidade e gênero. Existia uma vida muito pulsante em Berlim nesse sentido, por mais que houvesse a existência do parágrafo 175. Neste momento, não haviam tantas prisões”, afirma o educador.
Essa atmosfera impulsionou diversas descobertas e inovações no período. Por exemplo, existia uma revista chamada Der Eigene, fundada por Adolf Brand, que abordava com naturalidade o erotismo masculino e o amor romântico entre dois homens.
Essas bases foram motivadas pelo médico judeu e gay Magnus Hirschfeld. Chamado de Einstein do sexo, ele foi o criador do Instituto de Ciências Sexuais, fundado em 1919. Já naquela época, o instituto se dedicava a estudos sobre diversidade sexual e mapeava traços de diferentes identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais. Além do trabalho como cientista, Magnus se montava como drag queen sob o nome de Tía Magnesia.
O trabalho de Magnus foi de extensa contribuição para os saberes contemporâneos da comunidade LGBTQIA+. Por exemplo, foi ele quem criou o termo que conseguia explicar, na época, o que é uma pessoa trans e a transgeneridade e deu nome a diversas experiências da comunidade.
Além disso, Magnus conseguiu mapear cerca de 82 identidades de gênero diferentes em seus estudos, conhecimentos que seriam perdidos durante o período das grandes queimas. “Ele é uma das figuras-chaves de uma tentativa de mudar o cenário a partir da educação social e de lançar base do ativismo LGBT moderno e das demandas que perduram até os dias de hoje: de mudança nas legislações, a criação de igualdade perante a lei e a promoção de direitos humanos”, diz Albino.
Chegada do nazismo ao poder na Alemanha
Em janeiro de 1933, o bar El Dorado foi fechado pelas autoridades nazistas. “Colocaram uma placa na frente que dizia: lista número 1 de Hitler”, conta Albino. “Fechar um bar gay foi o primeiro ato do regime nazista”.
Em 31 de março de 1933, Adolf Hitler substituiu os governadores estaduais democraticamente eleitos por nazistas, o que impactou na consolidação do controle do partido em toda a Alemanha. Em 2 de maio daquele ano, os nazistas assumiram controle dos sindicatos, colocando as Tropas de Choque (SA) em escritórios e propiciando a caça a ativistas.
“Em 6 de maio de 1933, portanto menos de meio ano após a ascensão do nazismo ao poder, tropas da SA invadiram e fecharam o Instituto de Ciências Sexuais e destruíram a maior parte do acervo, que contava com mais de 12 mil livros e 35 mil fotografias” afirma Ehrlich. Esse acervo foi descartado nas queimas de livros, que ocorreram entre 10 de maio e 21 de junho daquele ano.
Em 1934, a Gestapo, serviço secreto de polícia da Alemanha Nazista, ordenou oficialmente o fechamento de bares e de redações de revistas LGBT, além de orientar que as unidades policiais locais tivessem uma lista de homossexuais, as chamadas Listas Rosas.
Neste primeiro momento, os homossexuais não eram enviados diretamente para os campos de concentração – com exceção de ativistas amplamente conhecidos ou que tinham parte significativa no movimento da época. Era o caso de Kurt Hiller, judeu, gay e socialista que ficou a frente do Instituto de Ciências Sexuais depois que Magnus Hirschfeld fugiu para Paris. Em 1933, ele foi diretamente enviado para um campo.
O procedimento comum era que pessoas acusadas sob o parágrafo 175 fossem fichadas e presas. O envio aos campos de concentração dependiam dos fatores de reincidência nas prisões comuns ou do humor do oficial nazista no momento da prisão. Albino afirma que a estimativa é que 100 mil pessoas foram acusadas sob o parágrafo.
Das 50 mil presas, 35 mil foram liberadas. “Essa palavra é bem perigosa, porque ‘liberado’ pode significar que aquela pessoa recebeu punição, foi castrada ou pode ter se comprometido a não ter mais relações sexuais”, pontua Albino.
Mesmo sendo dona de um ativismo expressivo na região, a comunidade LGBT da época não tinha tantas possibilidades de organização institucional graças ao parágrafo 175. Por esse motivo, Ehrlich relaciona um dissolvimento das redes de apoio e isolamento das pessoas homossexuais como resultado dos primeiros ataques da SA. Essa dissolução foi estratégia e tinha como esperança que homossexuais passassem despercebidos pelo partido nazista.
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“Dessa forma, quando aconteceram as deportações para campos de concentração, a comunidade gay estava relativamente desarticulada”, diz. Mesmo assim, Ehrlich e Albino ressaltam que existem registros de diversas ações de resistência protagonizadas por ativistas. Ehrlich cita como exemplo a holandesa lésbica Frieda Belinfante. Filha de um pai judeu, Frieda entrou na resistência, falsificou documentos e viveu disfarçada como homem, conseguindo escapar em 1943 para a Suíça.
A realidade dos campos de concentração
Em 1935, uma emenda do partido nazista endureceu as ações do parágrafo 175. Três anos depois, em 1938, a Gestapo permitiu a ida de homossexuais a campos de concentração.
Os homossexuais eram submetidos a uma série de violências degradantes por estarem muito abaixo na hierarquia de poder dos campos. As práticas violentas eram feitas tanto por oficiais nazistas como por outros prisioneiros. Albino explica que só se sabe algumas das violências por meio de relatos cortados.
“Havia uma hierarquia interna nos campos, e os homossexuais estavam no nível mais baixo. Existiam abusos internos, torturas diárias e violações para desumanizar essas pessoas, fazendo com que isso fosse sentido de uma maneira mais intensa”, aponta.
Os prisioneiros eram identificados por meio de cores da tarja triangular costurada ao uniforme. A identificação de homens homossexuais dentro dos campos era o triângulo rosa, que posteriormente se tornou um famoso símbolo em memoriais. Cada cor identificava uma população diferente. Com isso, em casos interseccionais (como judeus e gays, por exemplo), era possível que uma pessoa fosse identificada por mais de uma cor.
Albino cita como exemplo o caso de Karl Gorath, luterano católico e gay que era enfermeiro e, por isso, conseguiu trabalhar na ala hospitalar em um dos campos. Lá, ele se recusou a dar uma quantidade menor de pães aos poloneses. “Em razão disso, ele foi enviado para Auschwitz por desobediência política e foi obrigado a usar o triângulo vermelho [que identifica presos por desacato]. Isso aumentava a brutalidade e o nível das punições, já que ele estava preso sob duas acusações”, contextualiza Albino.
Este reconhecimento de cores não era tão evidente no caso das mulheres lésbicas por conta da indiferença do parágrafo 175 e da mentalidade baseada no machismo. Por isso, as mulheres lésbicas foram perseguidas de maneira muito menos sistemática. No entanto, há registros de que mulheres lésbicas eram marcadas pelo triângulo preto, que identificava mulheres “associais” nos campos; assim como feministas e mulheres que se recusaram a desempenhar os papéis de “boas esposas”, por exemplo.
“Os nazistas ainda as viam como úteis à reprodução e, até por não verem nas mulheres seres politicamente relevantes, não consideravam as lésbicas como uma influência negativa ou uma ameaça à sociedade no mesmo nível que a homossexualidade masculina”, acrescenta Ehrlich.
Não há registros de separação entre pessoas trans e cisgênero entre as capturadas pelo nazismo durante o Holocausto. No entanto, Albino explica que há indícios de que pessoas trans tenham sido enviadas aos campos, mais provavelmente travestis e mulheres trans. “Isto porque, na perspectiva nazista, não havia diferença entre mulheres trans, travestis e homens gays afeminados. Ou seja, foram enviadas pessoas que foram lidas como homossexuais nesse contexto”, explica o ativista.
Ehrlich afirma que, diferentemente do caso de perseguidos por motivos raciais, como judeus e ciganos, era oferecida uma “cura” aos homossexuais, como era chamada a castração. “Assim, a castração poderia, a depender do caso, ser um caminho para reduzir o tempo de prisão. Outros prisioneiros homossexuais eram obrigados a participar de experimentos pseudocientíficos”, aponta.
Desamparo após fim da Segunda Guerra Mundial
A dissolução dos campos de concentração e a queda da Alemanha Nazista não representou uma melhora para os homossexuais. Isto porque, Ehrlich explica, os acontecimentos do Holocausto não causaram qualquer ruptura com a situação anterior a que essas pessoas estavam imersas.
“Homossexuais já enfrentavam discriminação e perseguição antes, assim como o cerceamento de direitos, as violações de direitos fundamentais – como pela castração – e a criminalização da homossexualidade. Tudo isso prosseguiu após a Segunda Guerra Mundial”, aponta o historiador.
Por mais que a repressão do nazismo tivesse acabado, a comunidade ainda precisava enfrentar a criminalização prevista pelo parágrafo 175. “Demorou 30, 40 anos para que os homossexuais começassem a falar porque muitos se esconderam e fingiram que não estavam nos campos ou foram mandados para prisões comuns para cumprir desde o início a pena prevista no parágrafo 175”, contextualiza Albino.
Um dos casos mais famosos é o do próprio Karl Gorath, que foi condenado por homossexualidade e foi mandado para os campos de Neuengamme e Auschwitz. Karl foi um dos sobreviventes do Holocausto que, após o fim da guerra, voltaram a ser condenados e cumpriram pena.
Demorou anos até que o parágrafo 175 passasse a ser ignorado pelas autoridades e, posteriormente, extinto. "O parágrafo atravessou as Alemanhas imperial, democrática, nazista, socialista e capitalista, sendo que a versão nazista dele ficou em vigor até 1969", pontua Albino. Nesse ano, a lei passou a descriminalizar relações homossexuais tidas acima de 21 anos; e em 1973, as punições praticamente deixaram de ser aplicadas.
Foi só em 1994, com a queda do muro de Berlim e a unificação das Alemanhas Oriental e Ocidental, que a lei foi retirada do código penal. Estima-se que, entre 1946 e 1994, 63.545 pessoas foram acusadas e punidas sob o parágrafo.
Em 2018, Frank-Walter Steinmeier, o presidente da Alemanha, pediu perdão pelos crimes cometidos durante o Holocausto contra homossexuais. "Nosso país os fez esperar tempo demais. Peço perdão por isso. Pela dor e pela injustiça e pelo longo silêncio que veio em seguida”, afirmou o presidente na época. Em 2021, a Alemanha indenizou gays e lésbicas que foram condenados durante o regime nazista, pagando um total de € 860 mil. Cerca de 317 pessoas realizaram o pedido de indenização.
Memória das vítimas LGBTQIA+
Albino ressalta que, devido à demora para a revogação total do parágrafo 175 e o medo de ir para a prisão, levou muito tempo para que as pessoas homossexuais que foram perseguidas e presas pelo nazismo se pronunciassem.
Ehrlich aponta ainda que a homossexualidade também era proibida em países aliados que combateram o nazismo, atrasando ainda mais este processo. “Nessa perspectiva, os homossexuais perseguidos pelo nazismo eram encarados como criminosos comuns e não uma população perseguida por especificidades do nazismo. Praticamente não tiveram acesso à indenização e políticas de memória”.
“Mesmo no caso daqueles que, por terem sido perseguidos não somente como homossexuais – por exemplo, alguém judeu e gay –, as especificidades da perseguição aos homossexuais acabavam silenciadas”, acrescenta.
Por esse motivo, Albino afirma que é necessário que memórias vividas no Holocausto ou em outros genocídios e contextos de violência, é imprescindível ser mais do que um receptor dessas experiências, mas um transmissor para que elas ecoem no presente.
“Contar a memória LGBT da Shoah é contar a memória da Shoah como um todo. Essa memória não é nos dada, ela é continuamente construída. Nós não a recebemos como um relicário do passado para manter para o futuro, mas a recebemos não estando prontos para continuar as construindo. Essas memórias nunca estarão finalizadas”, declara o educador social.
Albino afirma que os livros em primeira pessoa, escritos e publicados por sobreviventes, são ótimas maneiras para aprender. Um dos primeiros relatos sobre a experiência de ser homossexual nos campos de concentração foi do sobrevivente Josef Kohout, que contou sua história no livro “Os homens com o triângulo rosa” (“Die Männer mit dem rosa Winkel”), publicado em 1972.
No entanto, foi só na década de 1990 que mais relatos e memórias começaram a ocupar espaço nas narrativas sobre o Holocausto. Outro registro importante é a autobiografia do francês Pierre Seel, “Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”, que foi obrigado a cumprir trabalhos forçados, além de interrogado, estuprado e torturado. “Ele tinha um namorado também preso neste campo que foi assassinado”, diz Albino.
Em 1997, foi lançado “Bent”, um filme britânico/japonês que conta a história de um homem gay que é preso em um campo de concentração na Alemanha Nazista. Adaptação de uma peça teatral de mesmo nome, o filme aborda as punições aplicadas para homossexuais nos campos. “Uma delas, que desumanizava as pessoas, era a ordem a trabalhos inúteis, como quando um general nazistas mandava um homem gay carregar uma pilha de pedras para 10 metros de distância e, ao final, ordenar que as mesmas pedras fossem trazidas de volta para o lugar”, exemplifica o educador social.
No ano 2000, foi lançado o documentário “Parágrafo 175”, que narra e analisa a perseguição cometida pela Alemanha Nazista contra homossexuais. “O filme traz registros históricos e traz alguns sobreviventes gays e lésbicas para contarem suas histórias em primeira pessoa”. O documentário está disponível na íntegra no YouTube, com legenda em inglês.
A vasta produção de conhecimento sobre a situação ao qual LGBTs eram submetidos criou a necessidade de incluir as histórias deste grupo em memoriais, museus e documentos históricos e educativos que, até então, não incluíam essas narrativas.
Em 2008, em frente ao Memorial do Holocausto, no parque Tiergarten, Berlim, foi inaugurado o Monumento em Homenagem aos Homossexuais Perseguidos pelo Nacional-Socialismo, um bloco de concreto que, em seu interior, exibe um vídeo de dois homens trocando um beijo.
No parque Gan Meir, em Tel Aviv, Israel, também há um memorial, que foi fundado em 2014. Trata-se de um triângulo rosa (símbolo de identificação usado por homossexuais nos campos) com os dizeres: "Em memória daqueles que foram perseguidos pelo regime nazista por sua orientação sexual e identidade de gênero".
No Brasil, há o trabalho do Gaavah Brasil , da qual Albino faz parte. o Gaavah, palavra que em hebraico significa “orgulho”, é um coletivo judaico LGBTQIA+ que tem o intuito de unir essa comunidade e ecoar as histórias de ativistas LGBT que tiveram parte na resistência contra o nazismo durante a Alemanha Nazista.
Essa continuidade da memória se mostra importante também para conseguir identificar no presente sinais semelhantes aos que deram vasão para que algo como o partido nazista ou o Holocausto não volte a se repetir. Para Albino, é urgente ter atenção para qualquer discurso baseado no ódio e no afastamento social que seja capaz de incentivar políticas e ideologias que visem a invisibilização, violência e morte de grupos minoritários.
“Existem comparações com o Holocausto que não são justas, mas algumas são. Uma das que uso muito é o Judenfrei, termo sinalizado em uma faixa que as cidades colocavam para sinalizar que estavam ‘limpas de judeus’. Atualmente, a gente vê na Polônia centenas de cidades que colocaram uma placa na entrada dizendo ser uma ‘zona livre de LGBTs’”, compara.
“Esse tipo de situação é exatamente a mesma. É a comparação que precisamos fazer para tornar atual ideias que se baseiam no mesmo tipo de negação do outro, de negação da alteridade. Nessa falta de alteridade, tudo cabe. Deve-se querer ter conversas mais aprofundadas, aprender mais e ouvir uns aos outros, dar nome às violências porque são grupos específicos que são ameaçados”, finaliza Albino.
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** Camila Cetrone é formada em jornalismo. Desde 2020, é repórter do iG e tem experiência em coberturas sobre cultura, entretenimento, saúde, turismo, política, comportamento e diversidade; com ênfase em direitos das mulheres e LGBTQIA+, na qual está inserida como bissexual. É autora do livro-reportagem “Manda as Bicha Descer”, resultado da apuração de um ano na casa de acolhida LGBT Casa 1, no centro de São Paulo. Coleciona livros, vinis e estuda cinema nas horas vagas. Ama contar e ouvir histórias, cantar mal no karaokê e memes autodepreciativos (jura que faz terapia).