Pessoas trans e falta de empregabilidade: como superar esse obstáculo?

No Dia da Visibilidade Trans, o iG Queer conversa com pessoas trans para saber como o mercado de trabalho precisa evoluir para acolhê-las devidamente

Foto: Rosemary Ketchum/Pexels
Iniciativas de diversidade e inclusão são fundamentais dentro das empresas

O 1° Mapeamento de Pessoas Trans da Cidade de São Paulo, desenvolvido em 2021 pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), junto à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC), ouviu mais de 1700 pessoas trans e travestis, 59% delas exercia função remunerada durante o período das entrevistas, sendo que a maior parte consistia no trabalho informal.

Além disso, o mesmo estudo indica que 43% dos entrevistados já sofreram violência física e 80% foram vítimas de agressão verbal. O cenário da violência contra essa parcela da população estende-se para todos os ambientes que ainda mantém-se despreparados para acolher devidamente as pessoas transgênero e tirá-las da margem para a qual são levadas organicamente por estarem fora dos padrões cis. O desemprego e a falta de preparo das empresas para contratar, abordar e garantir um espaço seguro são alguns tópicos que Adriana Ferreira, head de consultoria da Mais Diversidade, pontua. 

“Ainda enfrentamos imensos desafios no mundo corporativo para a inclusão de pessoas trans. As empresas e seus funcionários ainda veem o assunto como um grande mistério e carecem de maturidade para entender o tema de D&I [Diversidade e Inclusão]. Isso acaba impedindo que as empresas vão além e realizem ações dentro da própria organização. As empresas e suas lideranças precisam se conscientizar do universo diverso que já os cerca e compreender que conviver com a vulnerabilidade – para reconhecer onde estão e o que precisam fazer para melhorar – é o primeiro passo. Aprofundar-se na temática e abrir portas para um diálogo profundo e consciente sobre seus vieses e oportunidades é necessário e urgente”, explica. 

A importância da iniciativa da empresa para que ações efetivas sejam desenvolvidas em prol da absorção de pessoas transgênero pelo mercado de trabalho é reiterada por Laura Salles, co-fundadora da Plurie Br, Edtech de Diversidade e Inclusão. 

“É fundamental que se construa um plano, com iniciativas e ações em D&I, aliadas às metas da empresa. Além disso, o engajamento da alta liderança é fundamental para que as ações de inclusão prosperem e façam parte da cultura organizacional do local. Outro ponto importante é ter em conta que o aprendizado sobre Diversidade e Inclusão deve ser consistente e constante”, ressalta. 

Enquanto esses processos ainda não avançam o suficiente para que uma maior quantidade de pessoas trans consiga acesso a empregos formais, as experiências negativas nessa área continuam sendo uma realidade. Allis Matos, analista de mídias da Raccoon.Monks e transgênero não-binárie, mais especificamente bigênero, relata uma situação de abuso que vivenciou em um emprego anterior. 

“Uma vez, eu trabalhava em uma loja de conveniência em um posto aqui na minha cidade – Franca, interior de São Paulo. Logicamente, ia ‘disfarçado’ para o trabalho (vestia-me com roupas ‘masculinas’), o que era, por si só, uma grande tortura. Infelizmente só consegui esse trabalho devido a esse personagem masculino que havia criado. Um dia, quando as outras pessoas da empresa descobriram minha verdadeira identidade, fui trancade em uma câmara fria, onde guardávamos a cerveja e outros produtos, e lá tentaram abusar de mim sexualmente. Devido aos meus gritos, fui solte. Porém, ao levar o caso para a diretoria da empresa, fui informade que eu estava seduzindo os funcionários e que tinha enganado a diretoria, portanto eles não fariam nada a respeito. Pedi minha demissão na hora”, conta.

Além de violências explícitas e físicas, como foi o caso de Allis, há também a falta de respeito corriqueira, que envolve principalmente o erro dos pronomes e situações constrangedoras causadas pela falta de naturalização das vivências trans em diferentes espaços, como comenta Helenoá Trevisan, coordenador de conteúdo na Raccoon.Monks e homem trans. 

“Acontece constantemente de errarem pronomes, principalmente em transições de time e relacionamento com cliente, existe essa pequena confusão. Como eu não sou um homem trans passável, é frequente que esqueçam do meu pronome e eu tenho que ficar relembrando as pessoas. São pequenas situações assim do dia a dia que desanimam um pouco: quando você chega no fim do dia e sabe que várias pessoas confundiram seu pronome é como se a gente se sentisse invalidado”, explica.

A psicóloga e CEO da PsicoPass, Rosângela Casseano, ressalta como a falta de acolhida do mercado de trabalho influencia diretamente a saúde emocional e a autoestima de pessoas trans. “É sempre muito difícil para qualquer pessoa não conseguir ser acolhida no mercado do trabalho. A situação da ‘não escolha’ acaba com a autoestima, pois há todo um repertório de agressões e situações de risco que envolvem a questão, promovendo ansiedade, estresse e depressão, podendo chegar ao suicídio”, expõe.

Alex Fernandes, jornalista e produtor de conteúdo na EDB Comunicação, homem trans, reforça o quanto um ambiente corporativo inclusivo é importante em termos de saúde mental, principalmente levando em consideração as violências e situações inconvenientes já comentadas anteriormente.

“A falta de respeito à pessoa trans significa que não há respeito sobre a mera existência dela naquele espaço. Ela vai sofrer todos os dias com isso, às vezes mais, às vezes menos. E, para a empresa, não faz sentido ter um ambiente de estresse e sofrimento, pois isso não só diminui a produtividade da equipe como também aumenta a rotatividade. Qualquer pessoa vai preferir trabalhar em outro lugar que a respeite. Antes da retificação, a principal dificuldade era encontrar um lugar que respeitasse meu nome social desde o início. Me sentia acuado já no momento de enviar o currículo, pois temia que o uso do nome social pudesse me atrapalhar no processo de alguma forma, mas achava melhor do que só falar na entrevista”, relata. 

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Em vista da necessidade das empresas de conseguir criar mecanismos que absorvam mais pessoas trans, Adriana Ferreira destaca algumas medidas que podem ser tomadas para que isso seja feito de modo efetivo, além de ressaltar o quanto isso indica o nível de maturidade de uma empresa. 

“Garantir o acesso às pessoas trans a todos os níveis da organização é sinal de maturidade corporativa, pois vivemos ainda com estereótipos que nos levaram a acreditar que pessoas trans ocupavam poucos e determinados lugares na sociedade. O acesso a programas de desenvolvimento profissional e oportunidades de protagonismo das pessoas trans em atividades relacionadas ao core business da empresa, é fundamental para gerar representatividade, novas formas de pensar, de resolver nossos negócios e provocar reflexões em diversos níveis da organização”, explica. 

Na visão de Allis, existem muitas falhas por parte das empresas no que diz respeito à abordagem e contratação de pessoas transgênero, desde o processo de admissão à falta de representantes LGBTQIAP+ em cargos de liderança, ainda que a corporação em questão levante a bandeira da diversidade. Além disso, Allis chama a atenção para o fato de que muitos contratantes colocam a pessoa trans em uma posição que não a expunha ao público, como forma de escondê-la.

“Há inúmeros erros: desde a fase de preenchimento de cadastro, onde só existem opções de gênero binárias (homem e mulher), até o próprio julgamento de fatores subjetivos, como beleza, apresentação e afins. As empresas que chegam a contratar pessoas trans normalmente são para serviços que não possuem contato com o público, escondendo-a dos olhos dos consumidores e normalmente com salários baixos. Não são todas, obviamente, mas a maioria. Outra parte que chega a ser irritante é que essas mesmas empresas costumam levantar bandeiras sobre diversidade, mesmo não possuindo ninguém realmente diverso em posições de liderança ou mesmo em cargos em contato direto ao público. Infelizmente, se você não seguir um padrão de cor, sexo e gênero, acaba se sentindo sucateado no meio empresarial. A falta de uma política que treine os funcionários a acolher as diferenças também é um fator bem determinante. Por isso que muitas pessoas trans escolhem trabalhos na margem da sociedade ou mesmo o empreendedorismo”, aponta. 

Helenoá também chama a atenção para a necessidade de capacitação de pessoas trans, para que consigam impulsionar a carreira e progredir dentro do mercado, uma vez que, devido a conflitos familiares e transfobia nos ambientes acadêmicos, por exemplo, muitas pessoas trans sequer têm condições de concluir os estudos. “Não adianta só abrir vagas para pessoas trans se sabemos que a maioria delas vive uma realidade totalmente diferente do esperado pelas empresas. É necessário ver o que a instituição espera dessa pessoa e como podemos capacitar mais profissionais para ingressarem nas empresas”, pontua. 

Adriana traz à tona a importância das empresa de transformarem os discursos e as intenções de inclusão em prática, moldando-as em ações efetivas que visem um processo gradual de absorção de pessoas trans, cada vez mais promovendo um ambiente seguro e saudável na qual elas possas evoluir na própria carreira. 

“Para além do discurso padrão sobre o valor da diversidade para os negócios (em termos de lucratividade), sabemos que a inclusão efetiva, verdadeira e intencional gera maior conexão entre as pessoas, compromisso coletivo, engajamento e senso de pertencimento. O resultado? Uma transformação gradativa dos ambientes danosos em saudáveis, a individualidade em coletividade, a indiferença em intencionalidade, fazendo bem para as pessoas, para os negócios e para a sociedade como um todo”, diz. E ainda declara o quão fundamental é que as mudanças se iniciem nos atos do dia a dia, nas coisas que podem parecer simples, mas que para pessoas trans, cujas identidades são constantemente questionadas, têm imenso valor." 

“Aceite e respeite o lugar de fala de pessoas trans e travestis, pois cada uma tem diferentes necessidades e prioridades. Aja com respeito, faça o seu melhor e continue tentando. Respeite a diversidade linguística que as pessoas trans usam para se descrever”, destaca. 

Além do acesso a uma vaga, saber que está sendo respeitado e reconhecido dentro do ambiente de trabalho é um fator de fundamental importância para pessoas trans e se expande em diversos âmbitos pessoais, como explica Allis. “É uma conquista em níveis estratosféricos. Ser reconhecide como profissional e ter minhas habilidades valorizadas é, no mínimo, gratificante. Hoje, posso afirmar que sou viste como o ser humano que sou. E falo isso não apenas no ambiente profissional, mas também na vida. A autoestima de saber que sou respeitade, que tenho um trabalho digno na carreira que escolhi, me acompanha em todas as áreas da minha vida”, declara. 

Para Helenoá, conseguir ocupar o espaço no qual está hoje é essencial para conseguir desenvolver os próprios talentos. “Para mim, estar em um ambiente de trabalho que reconhece e respeita é essencial para garantir qualidade de vida no trabalho, segurança, produtividade, tudo isso. Não dá para produzir e ser criativo e exerce todas as nossas funções no time se estamos em um ambiente transfóbico. É essencial que o acolhimento e o respeito existam para que nós continuarmos com vontade de existir e de trabalhar, consequentemente”, afirma. 

Partindo do pressuposto que o cenário cada vez mais acolhedor para pessoas trans no mercado de trabalho é o que se espera, torna-se necessário refletir sobre o cenário atual, o que ele oferece e deixa de oferecer e o que precisa ser feito para que cada vez mais transgêneros consigam uma vaga na qual desenvolver os respectivos talentos, vocações e crescer profissionalmente. Laura Salles chama a atenção para isso. 

“Quando pensamos no meio corporativo, uma reflexão é importante: quantos líderes trans tivemos ou conhecemos? Com quantas pessoas trans já trabalhamos? Isso mostra o quanto temos que evoluir na empregabilidade dessas pessoas”, conclui.