Laerte: “Eu não me considerava mais alguém dentro da linguagem masculina”

A cartunista Laerte acaba de lançar um novo livro “Manual do Minotauro”, coletânea com mais de 1500 tiras publicadas entre 2004 e 2015

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Laerte Coutinho tem 70 anos e revelou ser uma mulher transgênero em 2010




A cartunista Laerte Coutinho completou 70 anos em 2021 e boa parte da carreira dela tem sido dedicada aos quadrinhos. Uma das cartunistas mais importantes do país, já passou por veículos como Veja, Istoé, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, é fundadora da Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT) e carrega mais de 30 prêmios na área do desenho e roteiro. 

O livro “Manual do Minotauro” é o projeto mais recente da artista: uma coletânea publicada pela Companhia das Letras que reúne mais de 1,5 mil tiras escritas entre 2004 a 2015. Ela conta que, em 2005, houve uma mudança na forma de trabalhar. 

“O que eu não tinha feito ainda era uma reunião das tiras que compõem essa nova série. Por volta de 2005, eu mudei meu modo de fazer as tiras. Parei de desenhar personagens e parei de fazer piadas também, inaugurei uma forma pessoal de fazer as tiras”, diz em entrevista exclusiva ao iG Queer. 


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A cartunista Laerte acaba de lançar seu novo livro “Manual do Minotauro”, coletânea com mais de 1500 tiras publicadas entre 2004 e 2015


A respeito do título do livro, ela comenta que a criação veio devido à necessidade de se criar uma representação de seus sentimentos. “Eu uso o Minotauro como uma alegoria. Eu gosto muito de mitologia de um modo geral e já tem um tempo que eu venho trabalhando com a ideia de labirinto do Minotauro, de forma dramática, em histórias humorísticas ou não”, comenta.

“Envolve um Minotauro de paletó e vestido com roupas modernas e sem um dos chifres. A gente vai criando as coisas mais ou menos de uma maneira exploratória e encontra símbolos, alegorias, sinais, palavras que, de alguma forma, ecoam as nossas preocupações e os nossos modos de ver a realidade. É assim que a gente vai criando”, conta. 

Sobre a descoberta de gênero, Laerte revela que escrever sobre personagens transgêneros, mesmo antes da própria transição, foi uma forma de se autoconhecer. “Eu usava a transgeneridade e a travestilidade, fato cultural que é muito marcante em diversas culturas, de uma maneira tradicional, como aparecia nas comédias”, explica. “Sendo um homem se travestindo, o registro era quase sempre de farsa, de ridículo. Quando uma mulher se traveste, a pegada já é mais dramática. Quando eu descobri em mim mesma o desejo transgênero, passei a encarar as histórias de outro modo. Representar uma travesti, passou a ser não um estereótipo para se ter um efeito cômico, mas uma representação pessoal”, declara. 

Depois disso, o desenho passou a ser uma forma de refletir. Para Laerte, a arte se tornou um modo de entender o assunto, as pessoas e ela mesma. “A piada é um discurso um pouco impositivo. A piada não é contada para enriquecer o debate. Ela é marcada para marcar um ponto, para estabelecer um território, uma clareira que não deve ser invadida”, acredita.

“No geral, quem conta uma piada no meio de um debate não quer alimentar as coisas, está querendo terminar o assunto e achatar ele. Muitas vezes é preciso fazer isso, dependendo do debate e da discussão. Mas no meu processo pessoal, achei que não tinha sentido continuar nesse modo de encarar a travesti ou a ideia da transgeneridade do mesmo modo caricato”, destaca. 

De acordo com Laerte, a transgeneridade se apresentou para ela depois da orientação sexual. “Para mim, houve uma primeira etapa que foi me aceitar como homossexual, um homem [sic] que sentia desejos por homens. Essa etapa foi muito custosa e demorou muitas décadas até eu me entender e me aceitar”, diz. 

A cartunista também pontua que quando, enfim, aceitou a nova identidade de gênero, veio de um processo tanto interno quanto externo. Contudo, afirma que lhe trouxe paz e abriu essa perspectiva do gênero, que ela mesma ainda não havia considerado. 

“Houve um momento em que eu decidi que não fazia mais sentido eu ter duas experiências de representação, uma masculina e uma feminina. Eu achei que não fazia sentido nenhum continuar a ter uma representação masculina porque não me dizia mais respeito. Eu não me considerava mais alguém dentro da linguagem masculina”, termina. 

** Beatriz Neves é estudante de jornalismo. É estagiária de Soft News do iG desde março de 2021 e já escreveu para as editorias Delas, Receitas, Turismo, Gente, Canal do Pet e Queer. É apaixonada por tudo o que envolve livros, cinema e música, principalmente os clássicos.